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Voltar para fim de ida: Da história à estória em Tutameia
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Voltar para fim de ida: Da história à estória em Tutameia
E-book389 páginas6 horas

Voltar para fim de ida: Da história à estória em Tutameia

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Sobre este e-book

Nesta aventura literária, Maria Lucia Guimarães de Faria se vale do mitológico deus Hermes, o eterno viajante, o "entremundos", para nos conduzir pelos quarenta contos (ou "poemas") que compõem uma das obras mais significativas da língua portuguesa: Tutameia: terceiras estórias, de Guimarães Rosa. A deliberação de causar estranhamento, por parte do autor, está presente não apenas na linguagem e na sintaxe, mas também na forma do livro, com seus quatro prefácios e dois índices, ordem alfabética rompida, título estúrdio, símbolos de coruja e caranguejo ao final de algumas estórias, glossário cheio de palavras que não constam do livro e acentuadas erroneamente, fora outros "exotismos" e "novidades".

Voltar para fim de ida se estrutura em duas partes: a primeira, "As parábases: o autor se põe em cena", analisa os quatro prefácios de Tutameia, discutindo o modo rosiano de se "desesconder" do leitor, assumindo um diálogo semidireto para falar de sua arte; na segunda, "As estórias: a legenda da vida", a autora investiga 21 dos 40 contos a fim de destrinchá-los nos seus profundos detalhes, convidando os leitores a se aventurarem de vez na exploração de uma obra de riqueza inesgotável.
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento11 de jan. de 2023
ISBN9786559054848
Voltar para fim de ida: Da história à estória em Tutameia

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    Pré-visualização do livro

    Voltar para fim de ida - Maria Lucia Guimarães de Faria

    Voltar-para-fim-de-ida_CAPA_epub.jpg

    Sumário

    introdução: a reversa harmonia do livro

    As parábases: o autor se põe em cena

    Do cômico ao excelso: "Aletria e hermenêutica"

    Verborum insolentia: Hipotrélico

    Estar-no-mundo: Nós, os temulentos.

    Do absurdo nasce a luz: Sobre a escova e a dúvida

    as estórias: a legenda da vida

    Tudo para mim é viagem de volta: Antiperipleia

    O último lugar do mundo: Arroio-das-Antas

    A obra abria: Curtamão

    Inédito poeta e homem: Desenredo

    O querer outras larguras: Esses Lopes

    O nariz no que era de sua conta: Estória nº 3

    O irremediado intervalo: Estoriinha

    Viventes à boca dos ventos: Faraó e a água do rio

    Os ocos da máscara: Hiato

    Erguer a cabeça ante o estremecer dos prados: Intruge-se

    Amar é luz lembrada: João Porém, o criador de perus

    O estilo dos pássaros: Grande Gedeão

    Amor à futura vista: Reminisção

    O último íntimo: Lá, nas campinas

    O sabor de oscilar: O outro ou o outro

    A refusa imensidão: Quadrinho de estória

    Para mim mesmo sou anônimo: Se eu seria personagem

    O gosto de segunda metade: – Uai, eu?

    O mundo, vão de descomedir-se: Umas formas

    Tudo se inteira num arredondamento: Vida ensinada

    Outra espécie de alegria: Zingaresca

    referências bibliográficas

    sobre a autora

    texto de orelha

    Para Olavo e Maria Alice in memoriam

    Introdução: a reversa harmonia do livro

    Tutameia é um livro tragicômico. Mobiliza os limites do humano, a angústia do existir, extremos da paixão e da loucura, tenebrosas ações dos subterrâneos da alma humana. Tendo cometido o louco ato, o salto mortale (Rosa, 1981, p. 68), a pessoa tem que, paciente e dolorosamente, refazer o seu caminho. Os personagens das Terceiras estórias não estão aprendendo, mas reaprendendo, após a experiência radical de suas existências. Páthei mathos, saber pelo sofrer, súmula do ensinamento de Ésquilo, constitui a chave trágica de Tutameia. Esta aprendizagem póstuma, contudo, é o resultado de uma prova de fogo: quem sobrevive não se queima outra vez. A perda revela-se um ganho, a aquisição de uma qualidade vital que não será subtraída ao ser humano. Os personagens de Tutameia são os perdedores-vencedores, cujo ingresso numa dimensão inédita significa uma proclamação de independência e originalidade. Libertos da tutela das sombras, impelidos por um novo alento vital, eles não são mais personagens, mas ascenderam ao estatuto existencial de personagentes, conceito cunhado por Guimarães Rosa na estória Darandina (Rosa, 1981, p. 124).

    Quem superou o dualismo antagônico do bem e do mal usufrui de uma alegria ambivalente, que permite rir, com o dinamismo de uma fonte que jorra. A chave trágica gaiamente se converte em chave cômica. Páthei mathos é a senha para o Humor, concebido como forma superior de conhecimento. O trágico é o passaporte para o cômico. Tutameia, que se revela, no fundo, um livro trágico, desvela-se, na superfície, um livro cômico. Trágico no fundo, cômico na superfície, ou vice-versa, já que os extremos se intercambiam ao sabor de oscilar, de acordo com a sabedoria encarnada na figura emblemática do cigano Prebixim, que se prefigura na reciprocidade alternativa do título da estória que protagoniza, O outro ou o outro (Rosa, 1979, p. 106).¹ As Terceiras estórias são tragicômicas ou comitrágicas, como a própria vida, cercada de morte por todos os lados.

    A principal aprendizagem de Tutameia é aprender a rir, como a Sinhá Secada, que, após a descida ao inferno da dor e do sofrimento, pôde finalmente sorrir, gesto que a transfigurou na Sinhá Sarada. Nas Terceiras estórias, comicidade e humorismo atuam como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosaico (p. 3). Por isso é possível, após as antiperipleias (p. 13), as tresaventuras (p. 174), as reminisções (p. 81), os hiatos (p. 61) e os desenredos (p. 38), a nova orientação (p. 108), que permite dar tratamento gaiato às estórias, a despeito de seu substrato trágico. O trágico tornado cômico, o happy end, até parece conto de fadas... Hei que ele é: o livro tem uma estrutura subliminar de contos de fadas, com elementos fantásticos, reviravoltas surpreendentes, fatos incríveis, feitos inverossímeis. Há monstros (os Lopes, Pajão), personagens mitológicos (o Boi), príncipes encantados (o Moço de Arroio-das-Antas, Melim-Meloso, Prebixim, o cigano Florflor), figuras estranhas ou grotescas (Jeremoavo, Mechéu), tesouros (Como ataca a sucuri), gigantes (Grande Gedeão), personagens quase sobrenaturais (Rebimba), mocinhas míticas (Drizilda, Dídia Doralena), pessoas que se metamorfoseiam (a Drá-Pintaxa). Mas o conto de fadas não é algo banal. Em seu centro, está o sujeito humano em confronto com o mundo, e a imagem desse sujeito que ele propõe é a de alguém que possui a capacidade de se elevar acima de si mesmo, alguém que aspira a realidades mais altas e é dotado das condições de conquistá-las. No conto de fadas, tudo pode acontecer, e o ponto central nas transformações que se encenam é a capacidade de metamorfose inerente à criatura humana (Luthi, 1970).

    Páthei mathos se converte em humor transcendente. O trágico se transverte em cômico, mas o cômico dá um pulo ao excelso, e o ridículo ou o grotesco se corrigem em sublime (p. 11). O fim se metamorfoseia em início, a perda se metaformoseia em ganho. O infernal ascende ao celeste, o abissal se transfigura em alado. O pesado vira leve, o grave se torna ligeiro, o triste se transforma em alegre. O personagem se promove a personagente. A vida se transmuda em morte, mas o morrer é que é o nascer. O ser se divulga como nada, o nada que é tudo. Em Tutameia, tudo se transmuta. O narrar se revela o operador poético das profundas transmutações do espírito. O narrador narra aquilo que lê, porque a vida também é para ser lida (p. 4). Não ao pé da letra, mas em seus interstícios e alvéolos, em demanda do que se oculta do lado do outro lado (p. 169), a fim de iluminar o obscuro das ideias, atrás da ingenuidade dos fatos (p. 105). A vida não é para ser lida literalmente, mas por detrás da letra, deletreando-se as pegadas do silêncio no rastro do mistério geral, que nos envolve e cria (p. 4). A vida deve ser lida no nada.

    Entretanto, não basta ser lida. Tem que ser interpretada, por alguém que transite por dois domínios: o da luminosidade, que permite esclarecer, e o da obscuridade, que possibilita decifrar. Alguém que faça a mediação entre o céu e a terra, entre o além e o aquém, entre a vida e a morte. Intérprete é que intermedia, quem vai e vem, quem leva e traz, quem transita do oculto ao revelado, na tentativa de captar o incognoscível (p. 5). Este é Hermes, o noturno senhor das encruzilhadas, o enigmático deus que pertence tanto ao Olimpo quanto ao Hades, o "sedutor e letal guia de almas, o gentil psychopompos" (Kerényi, 1986, p. 9). O seu desempenho dramático, que consiste em não ler ao pé da letra (a-letria) e interpretar na eterna travessia alterna do ser ao nada (hermenêutica), configura o título do primeiro prefácio e sugere a disposição anímico-intelectual adequada à leitura do livro.

    Hermes é o grande patrono de Tutameia. A seu mundo pertencem os aspectos mais dissonantes. Nele convivem dois princípios opostos: um, de natureza olímpica, hierárquica e cosmogônica; outro, de fundo pré-olímpico, confusamente insubordinado e caótico (Aguiar, 2004, p. 122). Deus do duplo domínio, Hermes congrega em si mesmo, reunindo-os, inúmeros pares de dualidades antagônicas:

    Hermes integra nele mesmo a oposição originária do caos e do cosmos como modalidades de manifestação do titânico e do olímpico. Não surpreende, portanto, que Hermes transite com facilidade entre os mundos e possa perfeitamente ser tanto o mensageiro dos deuses como aquele que é mais próximo dos homens (Aguiar, 2004, p. 122).

    Com seu passo rápido, o chapéu com asas e as sandálias de ouro, Hermes é o levípede senhor das estradas. A noite é o seu elemento privilegiado, porque a escuridão torna as coisas igualmente próximas e distantes, não se pode discernir o vivo do morto, tudo é simultaneamente animado e sem alma. É um mundo no sentido pleno do termo o que Hermes comanda, um mundo que abrange o bem e o mal, o desejável e o desabonador, o sublime e o vil (Otto, 1954, p. 119-20). Guardião dos jardins e dos túmulos, condutor que leva as almas embora e as traz de volta, onde quer que ele esteja, aquele é um local de vida e de morte (Kerényi, 1986, p. 69). Hermes é o escuro abismo do ser, no qual o humano se origina. Manifestando a ambiguidade do real, ele é o nome divino para a instalação do domínio do mistério em meio à vida ensolarada do cotidiano (Aguiar, 2004, p. 125). No mundo concebido sob a visagem de Hermes, a fonte primordial da vida promana do reino dos mortos.

    Mas o deus não pertence mais aos mortos do que aos vivos. É de sua natureza não se fixar em nenhuma localidade e não possuir morada permanente. Ele é o eterno viajante, sempre na estrada, entre o aquém e o além. Estar a caminho é a sua característica mais genuína, porque o caminho ele mesmo é, para Hermes, um cosmos próprio. Hermes é o entremundos, porque a sua morada se dá no pôr-se-a-caminho. Uma esfera intermediária entre o ser e o não ser, o estranho vazio do entre, constitui o domínio de Hermes e a fundação abissal de seu serviço de mediador. O seu dom de mediar provém fundamentalmente do seu ofício de condutor de almas. Sem o contínuo ingresso no domínio ctônico, ele não poderia ser o intermediário entre os vivos e os mortos. O elemento mais essencial da sua natureza, portanto, é a alternância vida-morte-vida (Kerényi, 1986, p. 84). Por seu constante transitar entre dois reinos, Hermes é também hermeneus, o intérprete, o mediador entre o oculto e o revelado. Um esplendor emergindo das profundezas e para lá retornando incessantemente: este é Hermes.

    Hermes atravessa Tutameia de ponta a ponta, de Antiperipleia a Zingaresca, conduzindo o livro adiante e o trazendo de volta ao ponto inicial. O contínuo ir e vir é ritmado, no livro, pela alternância dos símbolos do caranguejo e da coruja, que assinalam, respectivamente, um voltar e um transcender, um vir aquém e um divisar o além.² O ofício de condutor e viajante das estradas é o mais frequente na obra. São guias de cegos, guiadores de gado, tangerinos, vaqueiros, boiadeiros, viandantes de toda espécie, que se cruzam pelos caminhos e veredas do livro e se reúnem no gran finale. Prudecinhano vagavaz (p. 16), Hetério vogavante, vogavagante (p. 26), Seô Quim joãovagante (p. 108) são denominações que não só valem para tantos outros personagens como definem o permanente endereçar-se em viagem, que constitui o anelo básico das terceiras estórias.

    Viajar, no trânsito entre o aquém e o além, é manter-se em travessia, na incessante busca da transcendência. O contínuo atravessar que Hermes patrocina está, por exemplo, em Hetério, que se arranjou ao travessio, dedicando a vida a transpor gente e carga, de banda para banda (p. 24). Parentes próximos de Hermes são os ciganos, que parecem percorrer o livro todo, aparecendo e reaparecendo em estórias. Não somente por serem comerciantes e tidos como ladrões, astutos e velhacos, alegres e desordeiros, afeitos igualmente aos prazeres do corpo e às sutilezas do espírito, eles se aproximam de Hermes, mas, principalmente, por viverem quase à boca dos ventos (p. 59), na intensa mobilidade do devir. A ambivalência do deus, por exemplo, está encarnada no cigano Prebixim. Outro que em tudo é herdeiro de Hermes é Melim-Meloso. A sagacidade, a presença de espírito, a esperteza, a simpatia, o golpe de sorte bem como o súbito azar, o gosto pela eloquência assim como pelo silêncio, são características que têm a chancela do deus. Por sua vez, Mechéu, o maramau (p. 89), aproveita o lado titânico do divino patife. Na função de psychopompos, o condutor de almas, Hermes leva e traz o fantasma de Dídia Doralena em Umas formas. O constante transitar entre domínios contrapolares garante a Hermes o dom da metamorfose, que ele também prodigaliza às terceiras estórias: a Livíria, Rivília ou Irlívia, de Desenredo, se converte na ambígua Vilíria; a Xacoca, por apelido Rita Rola, de Orientação, se transforma em Lolalita; e, a mais notável de todas, a Drá-Pintaxa, de Reminisção, se transfigura em Nhemaria.

    Não é apenas em atributos isolados de personagens que Hermes comparece em Tutameia, senão, sobretudo, na própria alma do livro. A inextricável conexão da vida e da morte, a proximidade entre o além e o aquém, a convergência do tudo e do nada, a oscilação do diurno e do noturno, que singularizam o universo de Hermes, compõem o cosmos em que florescem as Terceiras estórias. Precisamente porque esse cosmos se desdobra na conjunção de um duplo domínio, ele requer a presença do hermeneus – o intérprete, mediador, mensageiro – portador da hermenêutica – a arte poético-pensante de interpretar os sinais esparsos que escrevem a legenda da vida, num contínuo ir e vir dos cimos aos abismos.

    A articulação conjunta das oposições é feita, em Tutameia, pelos números 3 e 4. O número 3 assinala uma unidade dual, em cujo seio se inscreve a complementaridade dos contrários, já anunciada no título do livro, que reúne o tudo e o nada. De acordo com o estranho glossário incluso no quarto prefácio (p. 166), tutameia significa nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada, mas, para além da etimologia e do dicionário, propõe o autor para tuta meia o significado de mea omnia, toda minha – a minha construção, desconforme a reles usos, para citar o outro construtor, o de Curtamão (p. 35) – perfazendo, na denominação Tutameia, o nada que é tudo.³

    A dinâmica do 3 liga-se fortemente, em Rosa, à problemática amorosa. O amor não brota gratuito, como o fluxo de uma paz e de uma tranquilidade. Ao contrário, o amor é a aliança de complementaridade, a reversa harmonia, que resulta da luta entre as forças opostas de contração e expansão, negação e afirmação, recusa e doação, fechamento e abertura, mistério e revelação, egoísmo e prodigalidade, que se defrontam no interior do ser, e que, por fim, atingem a concórdia de uma reciprocidade gratificante.

    Nas Terceiras estórias, Eros desempenha papel capital. Quase todas as terceiras estórias são, de alguma forma, estórias de amor. Os triângulos amorosos se acumulam. Dezoito das quarenta estórias põem em cena triângulos amorosos, seja como ponto central ou elemento subsidiário, mostrando a complexidade da trama de dualidade e unidade que a relação amorosa encerra. O triângulo amoroso constitui o falso 3, por oposição ao verdadeiro 3 da tensão harmônica dos contrários. O 3 do triângulo amoroso é falso, porque ele é exterior, e não interior, ao par. O autêntico 3 realiza-se dentro da relação, como unidade da dualidade e dualidade da unidade. Nele, a unidade não é fruto de uma síntese, mas de uma concordância, o que implica que a dualidade não desaparece, e a unidade – radicalmente dinâmica – tem de ser sempre buscada.

    O 3 do triângulo, por sua vez, é sinal de desencontro. Ele assinala que a unidade não foi encontrada, e, portanto, não houve criação conjunta. Sobretudo, o 3 do triângulo amoroso denuncia que os 2 não compuseram uma conjunção carnal e espiritual, mas o corpo e o espírito precisaram satisfazer-se separadamente, o que equivale a dizer que ambos permaneceram insatisfeitos. Sem uma intervenção do espírito, o corpo não se sacia, e, sem uma participação do corpo, o espírito não se aquieta. A maciça presença de triângulos amorosos no livro acentua a enorme dificuldade de se urdir essa aliança do dois que é um e do um que são dois.

    O sujeito amante e o objeto amado encontram a plenitude da vida no reino do amor, que é o Terceiro, diz Berdiaev, ao explicar que a Trindade é o número sagrado, o número que significa a vitória sobre a luta e a divisão. E acrescenta:

    O encontro do um e do outro tem o seu desfecho no terceiro. O um e o outro chegam à unidade, não pela dualidade, mas pela trinitaridade, na qual alcançam a sua essência comum, a sua meta. Se o ser fosse um, ele permaneceria em estado embrionário, em estado de indiferença. Ele seria desesperadamente desunido e dividido, se ele não fosse senão dualidade. Ele desvela o seu conteúdo e manifesta a sua diferença, conservando a sua unidade, porque ele é trinitaridade. Esta é a natureza do ser, o fato original de sua vida. A vida do homem e do mundo é um momento interior do mistério da Trindade (Berdiaev, 1984, p. 194-5).

    Apresentando o pensamento de Ibn‘Arabi, pensador místico da passagem do século XII para o XIII, Henri Corbin explica que a estrutura de cada ser é constituída como um unus ambo, sendo a sua totalidade realizada simultaneamente nos planos divino e humano: "Nem o um que é dois nem os dois que são um podem ser perdidos, porque eles só existem na medida em que formam um todo essencial interdependente" (Corbin, 1981, p. 300).

    A integralização no 3 é a plenificação: do ser consigo mesmo e com o outro. Em nós mesmos, precisamos alcançar um equilíbrio dinâmico entre as porções terrestre e celeste que nos compõem, entre as tendências opostas a negar e a afirmar. Com o outro, no enlace amoroso, atingir a terceira potência significa transcender a oposição e aceder à complementaridade. Dentro do universo rosiano, alimentado pela dinâmica unitrinitária, o amor é uma conjunção do corpo e da alma. No dizer de Benedito Nunes: A harmonia final das tensões opostas, dos contrários aparentemente inconciliáveis que se repudiam, mas que geram, pela sua oposição recíproca, uma forma superior e mais completa, é a dominante da erótica de Guimarães Rosa. Nela o amor espiritual é o esplendor, a refulgência do amor físico (Nunes, 1969, p. 147).

    No número 4, por sua vez, repousa a divina harmonia do universo. São quatro elementos fundamentais, quatro pontos cardeais, quatro direções colaterais. Nos quatro vértices do quadrado pode-se sustentar a totalidade do cosmos. Em Tutameia, são quatro prefácios e quarenta estórias: Tutameia é um mundo que se inaugura, fundado na harmonia que o amor favorece, assentado sobre o equilíbrio de quatro vértices, que são os quatro prefácios, e quarenta vezes retomado e refeito. Prefaciar-se quatro vezes significa estar sempre pronto a recomeçar. Cada vez que a pessoa se renova, um novo prefácio se escreve. O primeiro prefácio do livro ensina a disposição anímica necessária para compreendê-lo: uma aletria, solidária de uma hermenêutica. O segundo celebra a irrestrita liberdade de criar. O terceiro aborda ironicamente o estar no mundo. O quarto se abisma nos fundamentos poético-existenciais desse novo universo, perscrutando o seu mistério.

    A quaterniformidade do livro arranja-se dentro de uma circularidade, configurada pelo eterno retorno de Zingaresca a Antiperipleia. A articulação unitrinitária, a equiponderância quaterniforme e o movimento giratório esboçam a imagem de um quadrado inscrito dentro de um círculo. Esse era o plano de fundação das antigas cidades romanas, inspirado na sabedoria etrusca, que embasava as edificações como um mysterium (Kerényi, 1951, p. 25). Um quadrado inscrito dentro de um círculo é uma harmonia dinâmica, num mundo sempre em gestação. Esses elementos reunidos arquitetam um todo coeso. De acordo com Paulo Rónai, era essa a visão que Guimarães Rosa tinha de Tutameia:

    Em conversa comigo, deixando de lado o recato da despretensão, ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos tivessem de fragmentário. Entre estes havia interrelações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto (Rónai, 1991, p. 528).

    Ao encontro desse comentário, vem a observação de Benedito Nunes de que prefácios e estórias formam um todo poeticamente ordenado (Nunes, 1969, p.209) e a assertiva de Vera Novis de que "as estórias de Tutameia se acham fortemente interrelacionadas e, de fato, formam uma só estória" (Novis, 1989, p. 111). Pertinente é, ainda, a citação que Heloísa Vilhena de Araújo faz de Schopenhauer, de O mundo como vontade e representação, do qual Rosa retira as epígrafes aos índices inicial e final:

    Já que, como disse, toda esta obra é o desdobrar de um único pensamento, segue-se que todas as suas partes têm, entre si, a mais íntima conexão. Não só cada parte está em relação necessária com aquela que a precedeu imediatamente e, assim, pressupõe que esta última esteja na memória do leitor, […] mas toda parte de toda a obra está relacionada a toda outra parte e a pressupõe. Por esta razão, requer-se do leitor que se lembre não só do que acaba de ser dito, mas também de toda observação anterior, para que seja capaz de ligá-la ao que está lendo em qualquer momento, qualquer que tenha sido o volume de observações que interveio entrementes (apud Araújo, 2001, p. 89).

    Ressalta, dessas considerações, não apenas o zelo na execução de um projeto calculado, como a noção de uma totalidade arquitetônica conscientemente buscada pelo escritor.

    Em carta de 22 de fevereiro de 1959 à sua tradutora americana Harriet de Onís, Guimarães Rosa admite que talvez tenha sido excessivamente rigoroso nas críticas que teceu à tradução do conto A hora e vez de Augusto Matraga, feita por J. C. Ghiano e Nestor Kraly e publicada na revista Ficción, porquanto, tendo escrito os contos como quem escrevesse poesia, ficou exigindo deles, mesmo inconscientemente, que os traduzissem como se se tratasse de poemas. Apesar de fazer algumas concessões à dificuldade do empreendimento, ele se ressente em particular da traição aos ritmos e contra o tom geral, que, no seu texto, quer ser intencionalmente novo e anti-lugar-comum (Verlangieri, 1993, p. 60).

    É certo que, em toda a sua obra, Guimarães Rosa escreve prosa poeticamente, trabalhando laboriosamente a língua, aplicando extensamente os recursos do ritmo, da aliteração, da assonância, da onomatopeia, da musicalidade, acoplando som e sentido, tecendo enredos simbólico-imagéticos, enfim, esmerando-se num tratamento verbivocovisual⁴ do texto e esforçando-se para motivar a sua linguagem. O resultado é, como ele aponta com inocente ‘humour’ à mesma tradutora, em carta de 8 de abril de 1959, uma língua especial e bárbaro-preciosa – o português-brasileiro-mineiro-guimarãesroseano (Verlangieri, 1993, p. 72).

    Se, no entanto, nos ativermos à reivindicação de que seus contos sejam encarados como poemas, talvez os de nenhum outro de seus livros façam tanto jus à denominação quanto os de Tutameia. Neles, para além do extremado artesanato da linguagem, entra em cena uma exigência de síntese e condensação que dá testemunho de um exemplar e obsessivo rigor de construção. A sintaxe, jamais relevada em seus textos em geral, revela-se aqui ferramenta mestra de composição para a obtenção de efeitos de surpresa, suspensão e enigma, encontradiços em todas as estórias. O manejo engenhoso e surpreendente da sintaxe colabora para o engendramento de conceitos, atiçando um pensar poético-filosófico que não apenas aturde os bons hábitos estadados de leitura, mas perspica-nos a inércia que soneja em cada canto do espírito, como diz bem-humoradamente o prefácio Hipotrélico (p. 64), desmanchando concepções confortáveis, ampliando percepções estreitas ou mesmo dando a ver sob prisma tão diferenciado velhas e singelas noções que elas parecem acabadas de nascer de broto e jorro (p. 66).

    Ainda alertando a tradutora americana para as trapaças e artimanhas do idioma guimarãesrosiano, diz o escritor em carta de 2 de maio de 1959, entre parênteses, como quem confessasse um segredo:

    (Deve ter notado que, em meus livros, eu faço, ou procuro fazer isso, permanentemente, constantemente, com o português: chocar, estranhar o leitor, não deixar que ele repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões domesticadas e acostumadas; obrigá-lo a sentir a frase meio exótica, uma novidade nas palavras, na sintaxe. Pode parecer crazzy [sic] de minha parte, mas quero que o leitor tenha de enfrentar um pouco o texto, como a um animal bravio e vivo. O que eu gostaria era de falar tanto ao inconsciente quanto à mente consciente do leitor. [...]) (Verlangieri, 1993, p. 100).

    O enfrentamento de que fala Rosa não assoberba o leitor apenas no que tange à linguagem. A deliberação de causar estranhamento acomete também a forma, em particular de seu último livro, com seus quatro prefácios, dois índices, ordem alfabética rompida, título estúrdio, símbolos de coruja e caranguejo ao final de algumas estórias, glossário cheio de palavras que não constam do livro e acentuadas erroneamente, fora outros exotismos e novidades. A concentração e o ciframento das estórias não são menos provocadores. O obstinado investimento contra o lugar-comum é plenamente alcançado em todos os níveis de realização do projeto do livro.

    Um dos eficazes expedientes de construção dos poemas de Tutameia é a orquestração. Não apenas no âmbito singular de uma estória, mas também na articulação conjunta do livro, temas, ideias, tramas, imagens retornam, compondo uma estrutura fugata que confere uma musicalidade partitural à obra e lhe outorga uma coesão profunda, talvez não perceptível à primeira vista. Os elos que solidarizam as estórias do livro são sutilmente entretecidos e requerem uma comparticipação ativa do leitor, a modo de enredar fios que, entrelaçados, lançam as estórias numa dimensão mais ampla e deixam transparecer algumas cláusulas que animam e sustentam o universo de Guimarães Rosa. Não sem razão as epígrafes de Schopenhauer, que encabeçam os índices de abertura e fechamento do livro, defendem enfaticamente a releitura. A segunda, em particular, chamando a atenção para a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, solicita do leitor que experimente a concatenação deste organismo que é o livro, não em sua sequência bruta e aparente, mas em seu traçado subjacente e esquivo. Não se trata tão somente de entender as estórias, mas de surpreender diálogos silenciosos nelas e entre elas, cuja audição descortina planos de sentido menos imediatos, mas fundamentais para a urdidura global da simbólica rosiana. Tudo deve ser cacho de acordes, advertiu o escritor a seu tradutor italiano Edoardo Bizzari (Rosa, 2003, p. 71).

    As quarenta estórias de Tutameia são encenações de um único drama: o drama da transmutação humana rumo à transcendência. Desenha o livro o grandioso painel do périplo humano em busca de um acréscimo de ser, que permita inventar uma nova transformada realidade, mais alta e mais certa (p. 40). Encalçando os passos desse trajeto, deletreando esse rastro tão longo, as interpretações que se seguem, dos quatro prefácios e de vinte e uma das quarenta estórias, procuram realizar a viagem dessa viagem⁵ (Rosa, 1956, p. 620).

    As parábases: o autor se põe em cena

    Do cômico ao excelso: Aletria e hermenêutica

    Em Tutameia, o autor se prefacia quatro vezes, num procedimento análogo ao adotado por Sterne em The Life and Opinions of Tristram Shandy, que só apresenta o Prefácio do Autor no capítulo 20 do livro III. Um autor tem o direito de decidir como, quando e quantas vezes deseja prefaciar-se. Os prefácios instalam o domínio do autor, o jogo da autonomia da criação e da liberdade de invenção do seu universo próprio. É também em seus prefácios que Fielding instaura a nova província do escrever (Livro II, capítulo 1, p. 20). O Prefácio do Autor, de Sterne, conjuga os dois elementos-chave de uma obra inovadora, wit and judgment: a sagacidade, a originalidade, a audácia criativa e o discernimento crítico.

    Em fundo e forma tão distintos de Sterne, Rosa tempera, também, a sua obra com um balanceamento entre a paixão criadora e a razão reflexiva, dois ingredientes básicos da grande tradição literária ocidental. O prefácio é aquele ponto médio, no qual poesia e pensamento se aliam, no qual a imaginação se urde com a razão, o engenho e o juízo unem forças, e mais fecundamente pode vicejar o diálogo entre o autor e o leitor. No prefácio, o autor se desesconde do leitor, e mesmo se, ao gosto de Rosa, ele continua a praticar um certo brincar de esconde-esconde, nem por isso deixa de se revelar, velando, ou de se velar, desvelando, comprazendo-se, como diz Bachelard da natureza, num ritmo de máscara e ostentação⁶ (Bachelard, 1948, p. 10).

    Prefaciar-se quatro vezes significa ver-se sob quatro pontos de vista diferentes, em quatro momentos diversos de escritor, atitude que coloca a criação sob um perspectivismo, que divulga o quanto ela tem de brincadeira, confissão, autobiografia, ebriedade, caos, cuja mistura compõe o subsolo selvagem da obra, infenso a qualquer determinismo lógico e afeito àquela loucura sagrada que constitui a fonte da inspiração. Quatro vezes prefaciar-se significa, também, incessantemente recomeçar, de modo a jamais se enquistar numa modalidade única de criar e de sentir, mas abrir-se aos quatro ventos, endereçar-se às quatro direções cardeais, buscando o princípio quaterniforme sobre o qual se assenta a harmonia do universo. Significa, sobretudo, enfatizar que a obra literária se engendra na interação constante do vigor e do rigor – vigor criativo e rigor técnico –, no diálogo entre o criar passionalmente e o refletir criticamente.

    A antiga comédia grega tinha uma figura para a intromissão crítica do autor no universo criativo da obra: parábase. Em ensaio intitulado Introdução à poética da ironia, Ronaldes de Melo e Souza explicita esse procedimento poético-pensante:

    A parábase ocorre quando o coro momentaneamente se desliga do contexto das ações e, sozinho em cena, transmite ao público o apelo do dramaturgo. Disponível, na estrutura da comédia ática, para as múltiplas reflexões e polêmicas que são inseridas no próprio texto das peças, a parábase é o contraponto crítico das questões relativas à representação teatral. […] O interlúdio coral da parábase […] veicula a metalinguagem crítica que o comediógrafo insere na trama das ações (Souza, 2000, p. 29).

    Ampliando e aprofundando a abrangência da parábase, Friedrich Schlegel a propõe como o grande procedimento artístico da modernidade literária:

    A revolução crítica de F. Schlegel consiste em elevar a parábase ao estatuto privilegiado de princípio supremo da composição artística. Axiomaticamente se considera que a grandeza da poesia do verso e da prosa é pendente da intensidade constante do movimento parabático. A obra literária é considerada superior se apresentar um movimento parabático contínuo. Postula-se que a literatura, além de representar acontecimentos, tem de ser uma forma de conhecimento. O primado artístico da parábase intensifica a força cognitiva do discurso literário. Uma

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