Fantasmas: Contos
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Sobre este e-book
Gledson Sousa
Gledson Sousa (Juazeiro do Norte, 1972), mora em São Paulo e é formado em História, com especialização em História da Arte. Publicou os livros O ovo: meditações sobre a semântica do mundo (Janos, 2004); A iconografia interior: Kandinsky e a teosofia e O livro das novas mutações ou O oráculo da natureza (Apenas Livros, 2014). Participou de inúmeras obras coletivas Presença do feminino no relato dos viajantes, Desigualdade no Feminino e A Religião que Anda no Ar (Apenas Livros, 2009 e 2014), em Lisboa. Em 2017 gravou um programa para a Rádio Terra e Fraternidade, do Porto (Portugal), lendo poemas de sua autoria selecionados pela escritora Estela Guedes. Poeta, prosador e ensaísta. Casado, pai de duas filhas e um gato.
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Fantasmas - Gledson Sousa
Dois universos, uma só poesia
Claudio Willer
A propósito de Fantasmas, de Gledson de Souza, excelente poeta que estreia na publicação de narrativas em prosa, não resisto à transcrição do famoso soneto de Gérard de Nerval, Versos dourados
, de As quimeras:
Homem! livre pensador! serás o único que pensa
Neste mundo onde a vida cintila em cada ente?
De tuas forças tua liberdade dispõe naturalmente,
Mas teus conselhos todos o universo dispensa.
Honra na fera o espírito que fermenta...
Cada flor é uma alma em Natura nascente;
Um mistério de amor no metal reside dormente;
Tudo é sensível!
E poderoso em teu ser se apresenta.
Receia, no muro cego, um olhar curioso:
À própria matéria encontra-se um verbo unido...
Não te sirvas dela para qualquer fim impiedoso!
Quase sempre no ser obscuro mora um Deus escondido.
E, como um olho novo coberto por suas pálpebras,
Um espírito puro medra sob a crosta das pedras!
Aqui, em alguns dos relatos de Fantasmas, é dada voz ao espírito que fermenta
na fera
, no animal; o metal
nos conta seu mistério de amor
; há união de matéria
e verbo
. Mas em Nerval também se encontra o lamento pelo fim do idílico mundo pagão: em um dos sonetos de As Quimeras, A J-y Colona
, os deuses de argila
de um Templo, de imenso peristilo, foram destruídos; porém,
sob as palmas do túmulo de Virgílio/ A pálida hortênsia se une ao loureiro verde". Condensa o já sintético e sincrético As Quimeras: os sonetos são lamentações pela perda, não só da sua amada Jenny Colon, mas do tempo em que os mitos eram reais. Subsiste, porém, a esperança em uma síntese, que promoverá o retorno dos antigos deuses, o reflorescimento do paganismo.
Relatos do illo tempore
, pretérito, paradisíaco, quando os animais falavam, quando o ser humano e a natureza se comunicavam, seja em fábulas e obras de literatura clássica, seja em modernos são marcados pelo antropomorfismo. Há humanização do natural. Aqui, não. Em Drina
, uma impecável prosa poética, os ventos estavam prontos para o nada
e o pássaro foi tecendo de sol a manhã incompleta
. Impossível não evocar Baudelaire, sua ideia do poeta como tradutor universal e as cinestesias, as correspondências entre realidades distintas, diante de Berry, planta animada, metáfora da natureza viva, que sabia cantar em vermelho chinês, violeta, lilás e até mesmo azul profundo, mas também em ocre terroso, verde limão pálido e rosa desbotado, canções tristes quais cicatrizes no útero da terra
. E cujo choro saiu em cores de frutos nunca imaginados
.
Nesse relato, são mencionados devas: seres invisíveis, regentes da natureza em mitologias da Índia, incorporadas ao hinduísmo e correntes do budismo. Catástrofes relacionadas ao refluxo dos devas, à retirada dos deuses, em Fantasmas, levam-me a evocar o ensaísta Roberto Calasso, que, em A literatura e os deuses, observa que: Os deuses são hóspedes fugidios da literatura. Deixam nela os rastros dos seus nomes. Mas logo a desertam também. Toda a vez que um escritor esboça um texto, tem que reconquistá-los
.
Notoriamente, os deuses do paganismo morreram, conforme ilustrado pela conhecida história da notícia da morte de Pã ressoando nas antigas Colunas de Hércules. Quem os baniu? Quem promoveu o desencantamento do mundo? Os grandes monoteísmos, as religiões institucionais que confiscaram o sagrado? A crítica racionalista acompanhada pela representação mecanicista do mundo, consagrada pelo positivismo? A retirada dos deuses foi lamentada por Hölderlin, o fulminado por Apolo
em 1802. Legou-nos uma pergunta em Pão e vinho
: O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer? / Não sei: e para que poetas num tempo de indigência?
No mundo contemporâneo, porém, observa Calasso, os deuses ainda estão presentes.
Não no Olimpo e outras montanhas; nem, necessariamente, em altares de templos pagãos: A via do culto está obstruída. [...] E Prajapati encontra-se só nos textos.
Daí que: Esta, podemos dizer, passou a ser a condição natural dos deuses: aparecer nos livros. [...] o fenômeno grandioso que está diante de nós e não é mencionado é outro: a altíssima, inaudita concentração de potência que se acumulou, e se está acumulando, no puro ato de ler.
Calasso introduz uma categoria: literatura absoluta
. Nela, nos interstícios daquele teatro, já se abrem, diante dos olhos de todos, as vastas cavernas onde ressoam, como sempre, os nomes dos deuses.
Observa: Se os deuses chegaram ao céu por meio de uma forma, mais ainda os homens terão necessidade da forma para alcançar os deuses.
Contudo, vai além: tal modo de expressar-se é a própria divindade. Deuses são formas, em primeira instância. As musas [...] fazem que as formas se apossem de nós e nos levem a falar segundo regras que podem ser mais ou menos ocultas [...] Mas, se as musas são as supremas fontes e guardiãs das formas, o que são formas? Outros seres femininos: aqueles metros que se transformaram em pássaros com corpos feitos de sílabas
. Metros transformados em pássaros: ou pássaros, em Drina
, e vegetais animados, em Berry
, transformados não só em metros, mas em séries deslumbrantes de imagens poéticas.
Retenho outra observação importante de Calasso, ao examinar Lautréamont: o mundo abandonado pelos deuses – aquele exposto em Os cantos de Maldoror – é ocupado por fantasmas. Não por acaso, Fantasmas é o título escolhido por Gledson. Se alguns dos relatos são a expressão do puro encantamento diante do mundo mágico, outros são histórias de horror, mistério e pavor que situam seu autor em uma vertente composta por Edgar Poe, algo de Guy de Maupassant, um H. P. Lovecraft sem as cosmogonias, algo de nossa Lygia Fagundes Telles. O humano surge como resultado de uma catástrofe; a reversão ao estado natural é impossível, a não ser através de uma completa degradação. Torna-se uma patética planta, como no pungente Tristeza
, não por acaso aquele, dentre os relatos, mais nitidamente situado no cenário urbano contemporâneo, em um trecho decaído desta nossa decaída São Paulo. Em O hospital
, que fecha o livro, uma experiência efetivamente vivida pelo autor, prostrado por um infarto e submetido a dolorosos procedimentos, com enfermeiras que podem ser vampiras e assombrações a circularem. Metáfora do mundo atual e uma declaração de que não há transcendência, não haverá superação da condição presente; a passagem para outro plano é impossível. Diria que as partes do livro no registro do sublime – e do atemporal - contribuem, por efeito de contraste, para acentuar a abjeção do presente.
Pessimismo? Certamente. Ocasião para tratar da literatura como exorcismo? Provavelmente. Gledson, em boa parte dos textos que compõem Fantasmas, escreve como um gnóstico pessimista. Oferece-nos a visão de um mundo regido por um mau demiurgo e seus asseclas, arcontes ou demônios, soltos entre nós, a circularem por aí. Contudo, Mircea Eliade, o historiador das religiões, observa que o dualista radical é aquele que mais anseia pela unidade. E os trechos de elevada prosa poética deste livro equivalem ao contato com essa unidade. Ensinam-nos que a poesia está aí, a nos abrir as portas para a reversão da