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Pedra Semente: Contos e Crônicas
Pedra Semente: Contos e Crônicas
Pedra Semente: Contos e Crônicas
E-book151 páginas2 horas

Pedra Semente: Contos e Crônicas

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Sobre este e-book

Uma série de contos e crônicas com distintas vertentes. Temáticas que focam o sertanejo, em distintas nuances; “lendas urbanas” e casos outros do nosso desvairado cotidiano.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de mar. de 2023
ISBN9781526072597
Pedra Semente: Contos e Crônicas

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    Pedra Semente - HELIO BACELAR

    Hélio Bacelar

    Pedra Semente

    Contos e crônicas

    Sumário

    Pedra Semente

    Urubu – Rei

    A fera da Serra da Babitonga

    A jeguinha do coronel Libório

    Nossa Senhora da Lata de Banha

    Caipora da Catinga de Ypsilô

    O homem do chapéu engraçado

    Carne e Osso

    Vi um Anjo!

    Quarentenária

    O autor

    Pedra Semente

    Se me atrevo a contar, aqui, essa minha história, é porque careço de aquietação do juízo.

    O quengo ferve, a essa medida dos anos. São muitos e tão de muito pesar nessa cacunda minha: a carcaça velha já não tá de aguentá a castigância da labuta com a vida.

    Vida madrasta, pode crê!

    Vida encruada e encavacada, no pelejado do muito persistir! No insistir de viver, em contradito à lei que governa o viver-Sertão: poucos morrem de velho – esse era o preceito!

    Nos tempos de maior calejado, quase tudo morria no chumbo das balas. Moléstia era muita, mas uns poucos tinha primazia de morrer de doença; muito poucos de velhice. Está eu aqui, no afirmar que não minto: sobrou eu só, dos muitos parceiros de luta.

    Só eu! E tô aqui no apreceio do vai e vem da vida e da morte, nesse Sertaozão sem quase findo que por muitos anos foi regado com o sangue dos muitos sertanejos. Se não de jagunço ou cangaceiros era de qualquer filho de Deus, mesmo que sendo um pobre inocente.

    Já vejo as aves de mau agouro, de manto escuro, varejando no meu redor; já tô di’vêos ponteiro do tempo se achegando pro meu acabado.

    Os tempos são outros e só Deus sabe como resisti a tantos.

    Vida madrasta!

    Vida calejada, a vida-labuta que nóisviveu!

    A vida de agora não é tanto assim muito boa – resmoneio por demais –, mas em nada comparado com à rapinagem do ferrenho de uns tempos de muito desapego da vida; mas de grande apegado à honra do pelejado maldito que tinha por nome cangaço.

    Não sei se hão de querer ouvir, mas tô de querer contar e vou contar por desafogo! Ok!

    Vou contar e vou só contar – com a enfeitice que me é direito, com todo o redondo do pesponteio da contação, o que já foi contado mil’e uma vez, em roda de beira de fogo e outros cantos mais –, pois que desta feita é no escutado de um escrevedor.

    Não sou das letras... – aquelas do ensinado nas escolas –, mas a ensinação da vida me deu diploma e pesponto de dotôdasvivênçamuita; senhor das lambanças desse existir, sem existir; autor desse fazer, sem de todo fazer..., rufião dessa puridade que só anjo há de ter..., desse destempero que só Deus pode deslindar, se porventura há de querer descanjicar.

    O tempo me ensinou a viver, seu moço! Dei nó em pingo d’água! Engabelei a danada da morte e tô aqui no ponteio dos feitos que, de vera, era só enganação: nóis fazia mermo era matança e chamava de honra de cangacêro.

    Os escrevidos nessas falas bonitas, de letrado, é na tenção de ser melhor entendido. Domino a fala dos que pouco sabem – e deveras, são muito sabedores; dos que são de nada instruído.

    Não sou de vez o escrevente, pois o escrevente tem o saber das letras. Coisa que muito faltou a mim. Mas falta mais não há de fazer. As iscrevências de Deus são de todo entendida até mesmo pelos que de nada sabe soletrar, mas que são bons no escrever e ler a própria sorte que por ser maldita é de todo compreendida – mesmo que se por inteiro seja analfabetizado.

    E seu dotô! ..., numfáisiscrevedô só de palavra minha, pois quem havéra d’intendê? ..., mas pode usar uns poucos dos meus ditos que é pra dar’infeitação.

    Passando ao historiado, de fato e de direito, e se ajeitando no contado do que foi meu viver e o viver dos muitos que comigo ficaram de saracotear pelos Sertões e matando e engambelando a morte.

    Um penar desmedido por essas brenhas de Sertão, que era de crueza de mais tamanho que clemência pelos pobres nele nascido.

    O Sertão era por demais birrento. Os viventes todos, num renitente existir cheio de percalços, se afligiam com a seca e padeciam nas mãos dos que se achava dono de tudo e de todos: os coronéis de papel comprado e os políticos safados, de falcatrua e falsidade..., e o sertanejo peitando a vida na tenção de ter vida decente, mas não era mais que bicho manso de pasto e curral.

    O sujeito caía em desgraça e a saída, pra não perder o vivendo, era se enfronhar no cangaço.

    Seja lá quem fosse! Jurado de morte, pela injustiça dos existentes de mais posse, o jeito era caçar maneira de viver da espingarda e se embiocar no cangaço. Daí por diante passava a ter nome de guerra e passava a ser o cangaceiro.

    Os tempos eram de bala e de faca e de facão e o mais forte tinha mais poder e os mais fracos eram servos dos que de mais poder se achavam ter:isso por força só da chibata e das balas de carabina. E era u’a desgracêra dasaprumosa!

    Voltando aos contraditos!

    Estava no meio d’um desespero desmedido de tamanho. Eu e mais sete, arrodeados de cabras do sargento finório que tinha nome de bicho – creio eu que por agravo aos tadinhos dos bichos: chamar o peste de sargento Bezerra, afronta tudo e mais ainda as vacas.

    Era tiro muito, era grito muito – de mando e de dor..., e era um desalentado desapego à decência e à coragem. Estar de pronto a morrer de bala ou de faca ou de coisa outra qualquer, no meio de luta de tal faceta, vira frouxo e se avexa pra não morrer – ao menos dessa desatinosa morrência.

    Nessas horas não tem quem se ajeite homem, nem quem aprume tenência de vida. É o que Deus quer e o que as balas deixam. Chumbo de calangos de volante – marimbondos que ferra mais na macheza que na carne –, faz o cabra se cagar nas calças quando se vê frente à morte.

    E não venham de dizer que tem valente que não trema nas pernas quando está de ver a morte chegando na forma do chumbo ligeiro e sujado de ódio.

    Quando a morte é de susto..., de jeito que não se sente morrido – até quando se vê frente aos querubim dos inferno –, é coisa que não se discute. É coisa de muito pouco desespanto. Até tem uns cabras que enfrentam sem fazer bazófia.

    Mas quando o sujeito tá na mira de arma qualquer, que nem sabe qual vai ser a hora nem adonde será o chuchado..., é tudo diferente. Se morre logo de vez, até que nem dá tempo pra choramingar. Mas se fica de se estrebuchar, se esvaindo de sangue e vida! ..., aí a coisa é outra: grito, choro, esperneio..., e não tem cabra bom, nessas hora,pra se conformar com tal fadário.

    Mas voltando a contação..., o avexado do momento não era de muito pensar na bala que era de a mim justiçar: nem de quem vinha, nem de onde vinha, muito menos onde é que ia ser acertada.

    Dois desses diagramados de chumbo maldito, vindo sei lá de onde, passou tão perto que até vio alumiado dos óinho dos querubim! – não fez estrago qualquer porque se foram, perdidos não se sabe onde.

    Daí fiquei de bendizer a sorte e se distraí, pensando no que não era pra pensar..., a terceira bala me acertou na canela esquerda e fez um estrago na carne..., e u’a vontade doida de matar um peste me subiu aos gurguminho. Antes mesmo de dar um grito de dor, meus dois tiro di parabélum foi certeiro: um caiu e o outro ficou de percurar chão pra seestrebuchá.

    Duas balas certeiras, dos tiros que dei com tanto gosto que ganhei dois defuntados.

    Aí dei meu grito de dor e chamei pelo santo de devoção. Mas esse peste, que não gosta de se meter nessa história de briga de gente – e tem meu respeito –, não me acudiu e eu chorei que nem cabrito desmamado.

    Era dor muita, seu moço – as água saía dos’óio e marejava a cara inteira.

    Doía na alma!

    Doía tanto que nem quase que dava pra resfolegar!

    Aí sim que o alumiado dos óinhosdos querubins, que Deus mandou pra me valer, foi acendido de vez!

    Fiquei de conter o grito, mas o grito saiu – afrouxado e quase que emudecido. Foi aí que se aquietei um pouco; foi aí que se acovardei mais..., pois era dor muita!

    Tava afrouxado de vez!

    Tava amachucado na canela e não dava pra ver todo o estragado, mas queria me ajeitar e amarrar um taco de pano acima do joelho: pra não perder o sangue todo, pois que sangrava em borbotão.

    Choramingava, mas não tinha acudimento: nem do santo da devoção nem dos companheiros que tava tudo pior que’eu!

    No que tô tentano se ajeitápro sangue não sair mais muito – amarrando um taco de pano sujo na perna esquerda –, um disgramado de um soldado da volante se achega. Pula de lá, sacode de cá e me vê desafogado da luta e dá mais um tiro de fuzil que me pega na cintura e só sinto o quentinho do sangue. Isso pois que na vontade de matar o disgramado, nem dor deu pra sentir. Um tiro certeiro meu, com o parabélum que tinha na mão – que por pouco não faía pelo empapado do sangue na caixa das bala –, acertou feio o disgramado.

    Misturou sangue meu com sangue da injúria que veio cair nos meus pés. Deu ainda pra dar um chutão nas ventas do sujeito com a perna sã!

    Aí pude ver bem a perna. Não fosse a perneira de couro tinha torado no meio – a bala do disgramado. Mas pelo estragado devia de ter faxiado o osso da canela e a dor era dor muita!

    Agora que ela tinha chegado de vez, era dor muito da grande!

    Os outros tudo, da cabroeira, nem estava mais vendo. Eram sete, com mais eu oito, mas do lado nosso já se ouvia tiros poucos: ou foram matados ou se acabou a munição – foi o que ajuizei, no que tava de poder ajuizar.

    Ajuizei e fiquei sossegadinho no encostado da pedra, rezando e buscando forças pra se alevantá. Mas os neuvo tava de tremura tanta que nem força nas mão tinha mais. Quando dou conta de querer levantar, óia que acho outro furo: essa d’agora, no ombro direito, nas’altura dos osso de cima, mais pro lado do coração. Não tinha muito sangue correndo, pois parece que foi entupido pela bala, mas se pegou num nervo..., e a coisa que já tava preta ficou mais preta por demais.

    Não dava pra se’alevantar, não dava pra se mexer muito..., o jeito foi ficar que nem morto. Que nem pedra. Que nem semente de pé de pau no chão seco a esperando chuva. Sossegadinho e de cunvesê com o santo da devoção.

    Os tiro de cá, dos meus,já tava calado. Os tiro do povo de lá, que parecia ter munição mais, ainda acontecia, vez por vez..., e eu se aquêtei, sossegadinho, se afetando de morto.

    ..., e foi tiro muito, no miolo do fuzuê, desde quando a coisa principiou. Bala avoava sem ter carne onde se encravar e se encravava nos pé de

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