Fundamentos De Relações Governamentais
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Fundamentos De Relações Governamentais - Eduardo Ribeiro Galvão
Fundamentos de Relações Governamentais
Eduardo Ribeiro Galvão
Fundamentos de Relações Governamentais
Eduardo Ribeiro Galvão
Brasília
2016
PREFÁCIO
Esse é um livro completo. Quando digo completo não estou afirmando que ele fala de tudo sobre Relações Governamentais e muito menos com todos os enfoques possíveis. Isso é inalcançável, sabemos todos nós. E ainda que isso fosse possível, um livro desses seria um fracasso. Afinal, nenhum mortal inteligente persegue saber de tudo. Justamente por ser inteligente, ele persegue saber sobre o que realmente importa.
Mas a questão é: o que realmente importa saber? Essa seguramente não é uma questão trivial e, portanto, um livro dedicado a carregar no seu título o termo fundamentos sempre será um enorme desafio.
Mas desconfio, e o leitor atento vai concordar comigo, que o Eduardo sabe selecionar realmente o que importa sobre Relações Governamentais. Apesar de muito jovem, nesse livro ele dá essa demonstração quando se dedica, de forma equilibrada e didática, às duas tarefas fundamentalmente necessárias a uma boa formação introdutória: aprender com a história e refletir sobre a teoria e a prática.
Aprender com a história tem pelo menos dois aspectos importantes. O primeiro é entender que nada é estático e, portanto, quando o chão se mover embaixo dos seus pés, fiquem sabendo todos - e o profissional de RelGov também - que em boa parte das vezes não é a primeira vez que isso acontece. O segundo ponto, derivado do primeiro, é a capacidade que a reflexão histórica nos dá, nem sempre aproveitada é verdade, de não cometermos os mesmos erros. E isso pode ser chamado também de inovação. Sendo assim, a viagem histórica que Eduardo nos oferece, que vai da fundação da Praça de Comercio da Bahia em 1811 ao complexo sistema de representação de interesses do Brasil contemporâneo, oferece o lastro para que o profissional de RelGov entenda os múltiplos contextos políticos, econômicos e de mercado nos quais terá que atuar.
Refletir sobre teoria e prática, por seu turno, é outro elemento constitutivo e fundador para qualquer profissional. Assumir que a formação deveria ser voltada mais para a prática, o que se ouve com frequência mais do que merecida, nada mais é do que incorrer num erro brutal. Erro infelizmente bastante persistente. Não existe prática sem teoria, ou seja, não existe ação sem significado. A prática não se aperfeiçoa sem teoria. No limite, elas sequer se separam. O fazer profissional na verdade deveria ser práxis, sintetizado pela conexão entre ação-reflexão-ação. Eduardo faz perceber nesse livro, e ensina, que o arcabouço sobre teoria contemporânea da democracia é essencial. Não sem razão ele o mobiliza com amplitude e rigor conceitual. No fundo, penso que o que o autor quer mostrar é que um profissional de RelGov não pode ter sua prática dissociada da noção e do compromisso com a democracia. E não de qualquer noção básica de democracia, mas de noções sofisticadas de democracia. Afinal. Esse é o valor político mais relevante do nosso tempo.
Em seguida, em capítulo especialmente dedicado a um debate conceitual sobre os muitos nomes
da profissão, o autor coloca no centro a problemática da nomenclatura associada à atividade. Ciente de que as palavras têm significado e que boa parte de uma guerra se vence pela comunicação, o autor oferece um amplo debate acerca dos diferentes termos que, não raro de maneira errática, associam práticas a preconceitos. O debate sobre a carga pejorativa do termo lobby, por exemplo, é inescapável. E mais uma vez aqui ele é, no limite, uma relação entre teoria e prática. É práxis profissional, claro, pois como já assinalado, não existe ação sem significado. Existe práxis.
Ainda no plano da teoria/prática, o autor oferece uma excelente oportunidade para o leitor - em formação - pensar sistemicamente como o estado contemporâneo lida com o problema da intermediação de interesses em sociedades cada vez mais complexas. Os enfoques, ou correntes teóricas se preferir, que constituem a teoria contemporânea dos grupos de interesses são aqui também mobilizados. O pluralismo, o corporativismo (e suas derivadas) e o neoinstitucionalismo são trabalhados e na verdade criam a oportunidade para o leitor pensar o contexto no qual está inserido.
Tanto o pluralismo quanto o corporativismo são tradições teóricas que dão conta de fenômenos relativamente particulares. O pluralismo como uma ampla descrição do que acontece no processo de intermediação de interesses nos Estados Unidos e no Canadá, ao passo que o corporativismo (em suas versões mais atenuadas) tenta dar conta das democracias parlamentares europeias. A viagem comparativa sugerida pelo autor, tal como a viagem histórica do primeiro capítulo, ajuda fortemente o profissional a pensar seu contexto, que no caso do Brasil é híbrido pois combina velhas e autoritárias leis e práticas associadas ao corporativismo ao mesmo tempo em que convive paradoxalmente com um pluralismo cada vez mais acentuado.
Por fim, teoricamente bem informado sobre o debate acerca das democracias contemporâneas, quase que por dever de ofício o autor vira a chave teórica para uma abordagem econômica da democracia. Essa virada, obrigatória para quem pretende oferecer uma visão plural da teoria contemporânea, é importante. A política vista como mercado, e não como fórum, é uma abordagem especialmente relevante para quem quer entender como é difícil lidar com noções simplistas – e pouco factíveis – de interesse comum, vontade geral e, muitas vezes, até mesmo a vaga noção de interesse público. A competição por influência, típica de democracias economicamente desenvolvidas e suficientemente fragmentadas em múltiplos interesses organizados é, por excelência, conflito de interesses. Qualquer profissional de RelGov que não entender isso está em risco.
Ao final do livro o autor coloca o debate em torno da problemática da ética e da regulamentação do lobby. Ciente da amplitude do problema e de sua difícil equalização, Eduardo faz questão de deixar o leitor no olho do furacão
. Recentemente têm crescido no mundo inteiro, inclusive no Brasil, iniciativas de regulamentação do lobby. Nesse momento em que escrevo o prólogo do seu livro, Eduardo encontra-se intensamente envolvido no processo de discussão sobre a regulamentação da atividade no Brasil. A julgar pelo capítulo que escreveu sobre o tema, espero que os atores políticos responsáveis pela decisão levem realmente a serio o que ele está dizendo em Brasília.
Escrever um manual não é tarefa fácil. Num manual, ou livro de fundamentos se preferir, nada importante pode ficar de fora, ao mesmo tempo em que muitas vezes é preciso sacrificar alguns aspectos caros ao tema. Portanto, a necessidade de combinar profundidade com parcimônia coloca o autor diante de um trade-off. Esse difícil equilíbrio ocupa permanentemente quem se compromete com esse tipo de empreitada. Deixa-me feliz, e creio que a toda a comunidade de RelGov, que Eduardo tenha feito isso com mestria em seu livro. E isso não é pouca coisa.
Boa leitura!
Manoel Santos
Professor e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
NOTA DO AUTOR
Escrever este livro foi um desafio e uma experiência ímpar.
Motivado pela imensa importância que a atividade de Relações Governamentais, enquanto objeto teórico e metodológico, pretendi oferecer uma contribuição aos acadêmicos e profissionais consolidando e registrando alguns conhecimentos assimilados com base na doutrina e na experiência profissional de mais de 15 anos de atuação executiva, em palestras e nas aulas ministradas em cursos de pós graduação e de MBA.
Acredito que o maior desafio foi consolidar e estruturar o conteúdo de uma forma coesa e que agregasse subsídios de ordem prática. Assim, trouxe ao leitor os elementos que considerei fundamentais para o conhecimento sobre a atividade: a história, as bases constitucionais, os conceitos, as teorias, os modelos institucionais e a legislação aplicável. Procurei demonstrar com a análise de casos reais a aplicação prática de conceitos, teorias e modelos, com a intenção de mostrar ao leitor as diversas nuances e aplicações do conhecimento e ainda convida-lo à reflexão e à crítica.
O prefácio do livro ficou por conta do Manoel Santos, que professor e pesquisador da UFMG e um dos brasileiros que mais se dedicou ao estudo da participação dos grupos sociais no processo decisório político. Profundo conhecedor do assunto, o professor Manoel tem uma visão ampla e realista e tem muito a nos ensinar. Me deixa particularmente contente e honrado que tenha aceitado meu convite.
Aproveito para agradecer à Associação Brasileira de Relações Governamentais (Abrig) pelo apoio, à Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) pelos anos de atividade profissional, aos colegas de profissão, com quem aprendo todos os dias, e à FGV, ao Ibmec e ao UniCEUB pela oportunidade de ministrar aulas em seus cursos de pós-graduação e MBA.
A você, leitor, ofereço e compartilho tais conhecimentos, com o desejo sincero de que essas contribuições sirvam para o aprimoramento das Relações Governamentais. Que possa ser-lhe útil em sua vida profissional e acadêmica.
Eduardo Ribeiro Galvão
À Aline e ao Ian, meus amores e minha motivação.
Relações Governamentais no Brasil
Breve história das Relações Governamentais no Brasil
A história das Relações Governamentais no Brasil tem forte relação com a formação econômica do país. A compreensão do contexto histórico, econômico e político é importante para entender as razões que levaram os grupos a se organizarem em torno de interesses políticos comuns e também para entender porque determinados setores são tradicionalmente mais organizados e influentes na discussão de políticas públicas.
A participação social no processo democrático foi impulsionada pelos ciclos econômicos e pela ascensão de classes, que motivaram a organização dos interesses de grupos econômicos e sociais. Como resultado dessa evolução da atividade é que houve a constitucionalização de direitos como o de associação, de pluralidade de pensamentos e de petição aos tomadores de decisão.
Mesmo o período em que a participação dos grupos foi reprimida serviu para o amadurecimento social na participação em processos de discussão de políticas públicas.
A história mostra que a atividade de Relações Governamentais viveu diferentes fases no Brasil e continua a evoluir. A cada fase, uma diferente roupagem, um diferente foco e uma diferente forma de atuação. A atividade foi ao longo do período se proliferando, se constitucionalizando e se institucionalizando na organização da defesa de interesses.
A empresa agrícola portuguesa
A atividade econômica que prosperou no Brasil colônia envolvia grupos internacionais que tinham interesse na manutenção do lucrativo negócio. Esses interesses defenderam políticas públicas que mantivessem ativo o empreendimento econômico do qual faziam parte.
A economia agrícola se estabeleceu no Brasil pela necessidade de ocupação do território em colônias de povoamento de reduzida importância econômica e com fins de abastecimento e de defesa. A exploração agrícola foi a saída para cobrir os custos dessa ocupação. Assim, a experiência da economia reprodutiva europeia foi trazida para a América, cuja técnica e capitais foram aplicados para produzir bens destinados ao mercado europeu.
A empresa colonial agrícola portuguesa dispunha de algumas vantagens comparativas. A experiência no cultivo do açúcar, especiaria muito apreciada no continente europeu, fomentou o desenvolvimento da indústria de equipamentos para engenhos e permitiu a solução de problemas técnicos de produção.¹
O financiamento da atividade e a criação de mercados foram viabilizados a partir da participação dos holandeses na empreitada. Detentores de grande capacidade econômica, investiram grandes capitais no financiamento da atividade produtiva do açúcar. Sua capacidade comercial (especialização na organização comercial e na distribuição no comércio intraeuropeu) permitiu que se criasse mercado para o açúcar, que era um produto relativamente novo.²
Os fatores naturais eram abundantes e favoráveis na colônia: terras cultiváveis, água e clima.
A mão de obra necessária e a custo baixo inicialmente foi solucionada pelo mercado africano de escravos, do qual os portugueses gozavam de conhecimento e capacidade por causa de sua experiência na captura de negros pagãos em operações de guerra realizadas no século anterior.
Todos esses fatores foram favoráveis para o surgimento de uma grande empresa agrícola para abastecer o mercado europeu, que envolvia financiamento, produção, exportação e distribuição. O mercado consumidor de açúcar cresceu fortemente, criando uma grande demanda. Esse era o mercado gerido por Portugal, no qual Lisboa servia de entreposto para a distribuição na Europa.³
Da abertura dos portos ao Primeiro Império
A ocupação de Portugal pelos franceses é que desencadearia, logo depois, a organização dos interesses empresariais no Brasil e sua pressão por políticas públicas.
Os acontecimentos da Europa na virada do Século XIX provocaram grande mudança econômica, social e política no Brasil. Com a ocupação do reino português pelas tropas francesas, tornou-se inviável o papel de Lisboa como entreposto do comércio com a colônia.
A abertura dos portos às nações amigas de Portugal foi uma consequência, decisão necessária para manter a empresa agrícola que era de interesse tanto dos portugueses quanto dos financiadores e distribuidores holandeses e do mercado consumidor europeu. Nessa decisão teve papel importante José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú, economista e político brasileiro, que defendia os interesses dos produtores e comerciantes da colônia. Sua obra intitulada Princípios de Direito Mercantil, de 1801, demonstrava as vantagens que adviriam da abertura do portos brasileiros as nações amigas de Portugal e serviu de argumento e fundamento para a abertura portuária.
Isso desencadeou o aumento da atividade comercial na Bahia, que, por sua vez acarretou a necessidade de organização da classe produtiva agrícola colonial. Nesse período as classes produtoras criaram as primeiras instituições de representação de interesses no Brasil. Em 1811 foi fundada pelo o governador da Província da Bahia, dom Marcos de Noronha e Brito, a então chamada Praça do Comércio da Bahia, que depois viria a ser renomeada para Associação Comercial da Bahia, marco do início da organização do setor mercantil no Brasil.⁴
A Praça tornou-se um importante centro de discussão de políticas públicas e de decisões de grande relevância econômica. Teve participação ativa na fundação de entidades voltadas à defesa de interesses do setor empresarial e de sindicatos patronais. A atuação da Praça do Comércio da Bahia é apontada como defesa de interesses de associados e parceiros junto ao Congresso Nacional durante a Primeira República.⁵
Foi também na virada do século XIX que a maçonaria instalou-se no Brasil por meio de lojas maçônicas. Durante o processo de independência do Brasil a maçonaria, exerceu influência decisiva junto a Dom Pedro, bem como em