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MARCELO NOVA - O GALOPE DO TEMPO
MARCELO NOVA - O GALOPE DO TEMPO
MARCELO NOVA - O GALOPE DO TEMPO
E-book281 páginas3 horas

MARCELO NOVA - O GALOPE DO TEMPO

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Sobre este e-book

Um anarquista conservador. Um pterodátilo em termos de informática. Um incansável colecionador de discos de rock, blues e jazz, aficionado por Bob Dylan e filmes noir. Um pai e avô orgulhoso. Um sujeito antissocial, mas muito educado com quem é educado com ele. Uma pessoa que se reinventou ao longo da carreira e adora estar nos palcos sem nunca deixar de lado os óculos escuros. Esse é Marcelo Nova. Em O galope do tempo, Marcelo conta sua história pessoal e profissional de forma diferente: por meio de entrevistas feitas pelo jornalista André Barcinski ao longo de três anos. Ele fala da infância e da adolescência em Salvador (e de como sua alma urbana nunca se sentiu em casa nessa cidade praiana), da relação com os pais, das influências musicais que o moldaram desde pequeno, da formação do Camisa de Vênus e do sucesso meteórico de canções como Só o fim e Eu não matei Joana D Arc , da carreira solo, da parceria e amizade com Raul Seixas (ou Raulzito ), dos detalhes da produção dos álbuns, de seu processo de composição, dos filhos, da paixão pela música e muito mais tudo em meio a digressões sobre os mais diversos assuntos. Como diz Barcinski no prefácio: Tem gente que fala muito e não diz nada. Marcelo fala muito e diz muito . Um relato autobiográfico e, ao mesmo tempo, uma conversa sobre a cena musical do Brasil e do mundo vista pelos olhos de um dos grandes letristas brasileiros.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de mar. de 2023
ISBN9788557171695
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    Pré-visualização do livro

    MARCELO NOVA - O GALOPE DO TEMPO - André de Medeiros e Albuquerque Barcinski

    capafolhalogo_editoraeditora_somos_benvira

    Av. das Nações Unidas, 7221, 1º Andar, Setor B

    Pinheiros – São Paulo – SP – CEP: 05425-902

    SAC 0800-0117875

    De 2ª a 6ª, das 8h às 18h

    www.editorasaraiva.com.br/contato

    Presidente Eduardo Mufarej

    Vice-presidente Claudio Lensing

    Diretora editorial Flávia Alves Bravin

    Editoras Débora Guterman

    Paula Carvalho

    Tatiana Vieira Allegro

    Produtoras editoriais Deborah Mattos

    Rosana Peroni Fazolari

    Suporte editorial Juliana Bojczuk

    Preparação Alyne Azuma

    Revisão Mauricio Katayama

    Diagramação Bianca Galante

    Capa Deborah Mattos

    Foto de capa Gui Gomes

    Impressão e acabamento

    ISBN 978-85-5717-169-5

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Angélica Ilacqua CRB-8/7057

    Nova, Marcelo.

    Marcelo Nova - O galope do tempo : conversas com André Barcinski / Marcelo Nova e André Barcinski. - São Paulo : Benvirá, 2017.

    264 p.

    ISBN 978-85-5717-169-5

    1. Nova, Marcelo, 1951- Biografia 2. Músicos de rock – Biografia 3. Rock – Brasil 4. Camisa de Vênus (Conjunto musical) I. Título II. Barcinski, André

    CDD-927

    17-1199 CDU-929:78

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Músicos – Autobiografia

    Copyright © Marcelo Nova e André Barcinski, 2017

    Todos os esforços foram feitos para identificar a autoria das fotos deste livro. Estamos prontos a dar os devidos créditos a todos aqueles que se manifestarem.

    Todos os direitos reservados à Benvirá, um selo da Saraiva Educação.

    www.benvira.com.br

    1ª edição, 2017

    Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Saraiva Educação. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

    CL

    670735

    SUMÁRIO

    Prefácio

    1. A cidade do axé, a cidade do horror

    2. Abrindo as portas da percepção

    3. A banda que era um insulto

    4. Estranhos no ninho

    5. Bota pra fudê!

    6. Raulzito e Marceleza

    7. Eles fizeram pior, acabaram com o Simca Chambord

    8. Acústico ou plugado?

    9. Please don’t let me be misunderstood

    10. Nasci no país errado

    11. Em busca do tempo perdido

    12. Dançando na lua

    Epílogo – O passado e o futuro

    Apreciação crítica: discografia do Camisa de Vênus e de Marcelo Nova

    PREFÁCIO

    André Barcinski

    Entrevistar Marcelo Nova é a coisa mais fácil e mais difícil do mundo.

    Fácil porque o cara tem muito a dizer. Você sugere um assunto – pode ser qualquer coisa, música, política, TV, tecnologia –, e ele sai falando a mil por hora, sempre com uma opinião ácida e engraçada.

    Por outro lado, entrevistar Marcelo é difícil devido a esse tsunami verbal que lhe é característico. Manter o sujeito preso a um assunto é impossível. A mente dele funciona a 78 rotações por minuto, non stop, um assunto puxa outro, que puxa outro, que puxa outro. O papo pode começar num disco do Camisa de Vênus, passar por algum filme, pular para uma aparição ridícula de uma celebridade na TV e terminar com uma eulogia a um disco do Howlin’ Wolf.

    Tem gente que fala muito e não diz nada. Marcelo, desde que o conheci pessoalmente, há quase 30 anos, fala muito e diz muito.

    Lembro a primeira entrevista que fiz com ele. Foi em 1991, no lançamento de Blackout. O papo deveria ter durado 45 minutos, mas passou de duas horas. Quando voltei à redação e ouvi a fita (sim, naquele tempo pré-histórico ainda gravávamos entrevistas em fita cassete), fiquei impressionado com a maneira como ele expressava suas ideias. As frases eram perfeitas, bem construídas e articuladas, sem vacilos nem interrupções. Sua verve era irretocável.

    Antes disso, já admirava Marcelo de longe. Fui aos primeiros shows do Camisa de Vênus no Circo Voador, no Rio de Janeiro, no início dos anos 1980. Ouvi Camisa de Vênus, Batalhões de estranhos e Correndo o risco, mas foi Viva que me tornou um fã. Ouvi aquele disco até furar.

    É difícil explicar o impacto que Viva teve em mim. Eu morava no Rio, mas não me identificava com a brodagem festiva da cena musical carioca. Odiava aquelas bandas new wave vestidas em cores cítricas e me identificava mais com o punk que vinha de São Paulo, com Ratos de Porão e Garotos Podres. Por isso foi um choque ver, em cadeia nacional, uma banda como o Camisa de Vênus, muito mais alinhada com a anarquia barulhenta do punk do que com o espírito solar e praiano do pop brasileiro dos anos 1980.

    Depois do fim do Camisa (o primeiro fim!), continuei a acompanhar a carreira de Marcelo. Sou grato a ele por ter tirado Raul Seixas do ostracismo e dado ao Maluco Beleza um fim de carreira digno e comovente. O show da dupla no Canecão, em 1989, poucas semanas antes da morte de Raul, foi um dos mais emocionantes que já vi (aliás, gostaria de lembrar que a foto de Raul e Paulo Coelho no palco, que circula por aí sem crédito, é minha e foi tirada para o Jornal do Brasil).

    Nesses anos todos, toda vez que encontrava o Marcelo eu dizia que ele devia escrever uma autobiografia. Até que em 2014 ele finalmente decidiu tirar o projeto do papel. Quando ele me convidou para escrever junto, propus que o texto fosse publicado em formato de entrevista, e que não nos prendêssemos à cronologia de sua vida e carreira, justamente para aproveitar a abrangência e o ecletismo de suas opiniões. Seria um desperdício limitar nossos temas a uma agenda rígida, quando suas viagens e divagações são tão ricas e interessantes.

    Espero que você concorde.

    1.

    A cidade do axé, a cidade do horror

    MARCELO, QUAL É A SUA PRIMEIRA LEMBRANÇA?

    Nasci em 16 de agosto de 1951. A essa altura, minha primeira lembrança é difusa. Uma das primeiras coisas que lembro é bem traumatizante: eu caindo de uma rede e arrebentando o queixo. Eu tinha 4 anos. Quando me vi todo ensanguentado, fiquei apavorado e corri pra casa. O acidente foi na casa de um amigo. Ele tinha uma rede, e a brincadeira era ficar dentro dela enquanto o outro balançava. Aí ele balançou forte demais, girou a rede, e eu despenquei lá de cima, de queixo no chão. Tomei três pontos. Naquela época tomar ponto era um negócio muito esquisito, o cara literalmente enfiava uma agulha em você e saía costurando de qualquer jeito. Essa foi uma das primeiras lembranças, se não a primeira…

    E LEMBRANÇAS DE FAMÍLIA?

    Lembro que meus pais não tinham o hábito de ouvir música em casa, a música não fazia parte da nossa vida. Lembro que minha mãe tinha um disco da [cantora peruana] Yma Sumac, imitando pássaros de tudo quanto era canto. Meu pai tinha um disco de baladas natalinas de Bing Crosby, e minha irmã, Maria Alice, ouvia bossa nova. Ela era 12 anos mais velha que eu. Hoje isso não faz diferença nenhuma, mas naquela época eu tinha 5 ou 6, e ela, uns 18. Meu pai jogava tênis, e eu ia com ele aos sábados para o Clube Baiano de Tênis, onde não entrava preto, embora o secretário do clube fosse um mulato de cabelo carapinha e olhos verdes, Waldir, que entrou para a história porque barrou Pelé…

    ELE BARROU O PELÉ DO CLUBE?

    Sim. Pelé chegou lá com uma entourage, num carnaval nos anos 1960: Eu vou entrar, Não, aqui não entra, aquela discussão, e Pelé mandou um Vou entrar porque eu sou Pelé, e Waldir respondeu: Você é Pelé para suas negas; aqui você não entra! (risos) Essa história é lendária, o Pelé no auge da popularidade. É muito curioso isso acontecer numa cidade onde 80 por cento da população é negra, não é mesmo?

    VOCÊS ERAM SÓCIOS DO CLUBE BAIANO DE TÊNIS?

    Meu pai e, consequentemente, a família toda. Ele jogava tênis lá, e eu pegava uma sessão de cinema, porque havia um cineminha. Você ia num sábado e via um filme com Jack Palance, que na Bahia era Jaque Palânce. (risos) Antes dos filmes, que normalmente eram de caubói, eles exibiam seriados como Zorro e séries policiais que eram sensacionais. No fim do episódio o mocinho estava com a ponta da lança na cara, ou caindo do avião, você achando que ele ia morrer, aí acabava e recomeçava na semana seguinte, mostrando como ele conseguiu escapar. Os seriados levavam meses, porque eram vários episódios. Eram histórias absurdas, uma época muito mais ingênua. E as pessoas vibravam no cinema, havia verdadeiras ondas de excitação dentro da sala quando acontecia um beijo. O beijo na boca era saudado com gritos e urros. Quando o mocinho beijava a mocinha, e o cara não era bom de jogo, a plateia se manifestava: Viado! Viado! (risos) As pessoas literalmente interagiam. Ir ao cinema era um evento. A televisão praticamente não existia no Brasil…

    VOCÊ TINHA TELEVISÃO EM CASA?

    Meu pai viajou pela primeira vez para os Estados Unidos em 1957. Eu tinha 6 anos, e ele trouxe de lá uma televisão pequenininha. O diretor da emissora local, a TV Itapuã, Mario Augusto da Rocha, era amigo dele e ligava para casa para que meu pai contasse como estava a imagem, como se fosse um teste ao vivo. Pouquíssima gente tinha TV em casa na época, a transmissão ainda estava em período de testes. Lembro que meu pai ficava no telefone dizendo: Ó, a imagem está tremida, vira a antena mais pra esquerda!

    Quando começou a TV Itapuã, entrava no ar às seis da tarde e saía às oito, eram duas horas por dia de televisão, o que já era suficiente para juntar a família inteira para ver aquele veículo novo e desconcertante. Uma vez estava passando um filme, e perguntei a meu avô: E aí, vô, tá gostando? Ele disse: Não estou entendendo nada: entra um, sai outro, entra um, sai outro, eu não estou entendendo é nada! (risos) As pessoas estavam acostumadas a uma narrativa linear pelo rádio, e a edição da TV confundia a cabeça delas. No rádio, quando na história tinha vento, o programa tinha que ter o som do vento: Está ventando! Aí você ouvia o som de alguém fechando a janela, era uma narrativa muito formal e didática. Quando entrou a imagem, confundiu um pouco por causa da edição. O cara estava dirigindo um carro, aí cortava a cena, e aparecia a mulher em casa. Para a cabeça do meu avô, aquilo era demais: Eu não estou entendendo é nada, entra um, sai outro, entra um, sai outro. (risos)

    SEU PAI ERA MÉDICO?

    Sim, era médico. Nossa família era de classe média, média. Meu pai tinha um apartamentozinho alugado de três quartos. Quando eu era criança, minha irmã foi para São Paulo estudar Belas Artes e passou a morar na casa da minha tia, Daisy, irmã da minha mãe. Então virei filho único. Morávamos num apartamento de três quartos: o quarto dos meus pais, o escritório do meu pai e o meu quarto. Meu pai era fisiatra e criou, em Salvador, o primeiro centro de reabilitação para o que se chamava, na época, de criança defeituosa…

    ERA ESSE MESMO O TERMO USADO? CRIANÇA DEFEITUOSA?

    Sim, e ainda tinha pintado na lateral da Kombi IBR – Instituto Baiano de Reabilitação e um desenho de uma criancinha com duas muletas. As crianças eram chamadas de defeituosas, não havia o termo politicamente correto de hoje, com necessidades especiais. Ele criou esse instituto depois de voltar de uma viagem pros Estados Unidos, onde tinha ido fazer um curso de especialização em fisiatria e reumatologia. Voltou com essa ideia fixa, e criou o Instituto Baiano de Reabilitação, onde trabalhava das oito da manhã ao meio-dia e não ganhava um tostão furado. Das duas às seis da tarde, ele trabalhava no consultório dele, que é como sustentava a família.

    COMO SE CHAMAVA SEU PAI?

    Fernando da Silva Nova, o dr. Fernando Nova. Meu pai era um homem de moral ilibada, um cara que, quando dizia qualquer coisa, morria de vergonha se alguém suspeitasse que ele poderia, talvez, quem sabe, não pagar a conta de luz, entende? Não era vergonha de estar envolvido em um esquema de corrupção, não: se a conta do bujão de gás estivesse atrasada, a conta de luz, isso mexia com ele. Era um homem muito tímido e sisudo, introvertido, de poucas palavras.

    O SOBRENOME NOVA VEM DE ONDE?

    O Nova, da parte de meu pai, vem dos espanhóis. E minha mãe era Drummond, escocês. Então eu sou uma mistura de escocês com espanhol, quer dizer, um pé na nobreza e um pé na lama! Um pé no castelo, outro na padaria! (risos) Minha mãe se chamava Hélia Drummond Nova. Ao contrário de meu pai, que era um homem monossilábico, minha mãe era uma mulher comunicativa. Ela tomava conta da casa e da família. Era ela que dizia o que tinha que ser, como tinha que ser, como não tinha, e meu pai só ouvia. Ela tinha personalidade muito forte, já meu pai era mais retraído, mais ponderado. Minha mãe, não, ela encarava e ia pra cima, fosse qual fosse a situação. Ela era dona de casa, mas, a partir do momento em que meu pai fundou o centro de reabilitação, ela fez um curso de terapia ocupacional para poder trabalhar com crianças. Os meninos a adoravam. Lembro de crianças com aparelhos, aquelas botas muito primitivas ainda, com ferragens que desciam da coxa até o pé, chamando-a de tia Hélia. E eu ficava o dia inteiro sozinho, eu e Zelita, que era a empregada lá de casa, minha babá. Imagine, Marcelinho solto, solto com a babá, enquanto papai e mamãe trabalhavam… Enquanto eles lidavam com as crianças defeituosas, eu arrumava alguns atos com defeito e me envolvia em circunstâncias defeituosas também.

    O QUE VOCÊ ACHAVA DE SALVADOR NESSA ÉPOCA?

    Morávamos na Graça, um bairro classe média e média alta. Diferentemente de hoje, não havia essa disseminação turística em Salvador. Nós éramos produtos do meio, e nas férias meu pai alugava uma casinha em Mar Grande para passar dois meses lá. Mar Grande é uma ilha perto de Itaparica.

    Quando comecei a vir para São Paulo, logo de cara me apaixonei, porque o clima de São Paulo era o oposto do clima de Salvador. Lá, quente e ensolarado; aqui, frio e sombrio. Falar nas ruas de São Paulo e ver a fumaça saindo da boca, aquilo pra mim era magia pura, me atraía. A minha referência na Bahia era a praia, aqui eram os arranha-céus, tudo muito diferente. Minha tia Daisy, que morava em São Paulo, era uma mulher aventureira, no bom sentido. Ela tinha deixado Salvador porque achava que tinha que ir em busca de algo que ela, por alguma razão, não encontrava na Bahia. Então foi para São Paulo e se envolveu com um americano chamado Robert Lawrence. O engraçado é que o nome dela na verdade era Hildélia, mas, depois de se mudar para São Paulo e se casar, ela própria mudou o nome oficialmente para Daisy – porque, na cabeça dela, Hildélia Drummond Lawrence ia parecer coisa de baiano.

    Bom, tia Daisy teve uma filha com o Robert, só que ele era casado nos Estados Unidos. Aqui ele tinha uma empresa de isolantes térmicos chamada Magnebras, mas, como ele não podia ficar muito tempo no Brasil porque tinha família lá, sempre que viajava ele entregava a empresa na mão de minha tia e, para surpresa dele, ela fez o negócio se desenvolver em poucos anos. Tia Daisy enriqueceu e comprou uma casa na rua Desembargador Mamede, em pleno Jardim Paulistano. Ela tinha um Oldsmobile automático que era um mistério, com rabo de peixe, um carro lindo. Eu ia visitá-la e ficava fascinado. Ela tinha amigos americanos, italianos, franceses, russos, a casa dela era um polo cultural, quase uma open house. O baianinho chegava lá e ficava fascinado com a quantidade de idiomas que ouvia: um falava inglês, o outro respondia em italiano, de repente chegava um russo, e eu não pescava nada, todo mundo falando ao mesmo tempo. Eu era o pirralhinho…

    QUANTOS ANOS VOCÊ TINHA?

    Quando comecei a vir pra São Paulo eu devia ter uns 7 ou 8 anos, mas só tive noção realmente daquilo um pouquinho depois, lá pelos 12. Minha tia era uma mulher muito generosa, me levava a todos os lugares, me dava autorama de presente. A vida que eu não tinha em Salvador, porque meus pais não tinham esse poder aquisitivo, ela me dava. Era uma pessoa que não se importava com dinheiro, quem chegasse na casa dela ficava amigo em dez minutos. Ela acabou se ferrando por causa disso também, perdeu tudo o que tinha. A história da minha tia é fantástica. Ela era uma maluca sem droga, uma pessoa que nunca valorizou nada de dinheiro. O que tinha dava para todo mundo, torrava tudo, dava de presente baixelas de prata. Em determinado momento o tal do Lawrence teve que se mandar de vez porque a barra pesou pra ele nos Estados Unidos, acho que a mulher descobriu. Aí ele fechou a empresa e deu pra tia Daisy uma fazenda perto de Sorocaba. Essa fazenda acabou virando um sítio, que ela vendeu depois para montar uma loja de decoração para a filha, dentro do Shopping Iguatemi. Gradativamente ela foi perdendo tudo o que tinha conquistado, até que chegou uma época, nos anos 1990, em que ela vinha almoçar aqui em casa, e eu dava o dinheiro para ela pegar o ônibus de volta. Aos 80 anos de idade, ela tomava ônibus, dormia num albergue, e nunca reclamou, nunca, estava sempre sorrindo, sempre disposta a fazer uma brincadeira, sempre de bom humor…

    ELA ESTÁ VIVA AINDA?

    Nobody knows… Essa é a cereja do bolo: ela desapareceu, nem a família sabe dela. Ela sumiu, nunca mais deu notícia. Eu gosto de pensar que ela está em algum lugar gargalhando. Minha tia é uma mulher inteligente, culta, a casa dela era recheada de obras de arte, de quadros, mas ela vendeu tudo, ou deu, ou perdeu. Ela saiu do zero, chegou aonde chegou, até comandou uma empresa, e depois perdeu tudo. Ela me deu um anel, que até hoje eu guardo. Aliás, coloquei isso na letra de uma canção chamada Imagens na memória: Daisy me deu tantos presentes, ainda tenho o seu anel.

    VOLTANDO À SUA INFÂNCIA: VOCÊ NASCEU EM 1951, OU SEJA, ANTES DO INÍCIO DO ROCK ‘N’ ROLL.

    Não, eu dei início ao rock ‘n’ roll: quando Bill Haley gravou Rock Around the Clock, foi em 1954. Eu já estava lá. Então eu fui o cara que inventou o rock ‘n’ roll. (risos)

    QUAL O PRIMEIRO DISCO QUE MARCOU VOCÊ?

    Esse aqui, ó [aponta para a estante onde está uma cópia em vinil de Aqui Little Richard, versão brasileira do disco Here’s Little Richard]. Naquela época se traduzia o nome das músicas e dos discos. A edição brasileira é Aqui Little Richard. Esse disco saiu em 1957 e foi o primeiro álbum do Little Richard. Eu ouvia esse ritmo totalmente alienígena e não sabia falar inglês. Eu não sabia que diabo era esse Little Richard. Só sei que estava passando na rua Chile [rua no centro histórico de Salvador] com meu pai, e numa travessa, cujo nome eu não lembro, tinha uma loja de discos chamada C. Sampaio. Passamos em frente à loja, e ouvi um negócio pesado, agressivo. Eu não sabia o que era aquilo, não sabia quem cantava, não sabia o que era rock. Eu só disse: Meu pai, você compra este disco pra mim?, e ele comprou. Levei pra casa e me deu uma vontade enorme de pular no sofá da minha mãe, porque era uma selvageria. Olhando em retrospectiva, penso que a vontade de pular veio exatamente da selvageria da voz do Little Richard, do piano dele e da banda, que era um frenesi, dos solos de saxofone antológicos. Jenny Jenny, Tutti Frutti, Long Tall Sally, puta que o pariu, e eu ali, pulando no sofá de mola que dona Hélia tinha comprado em Deraldo Móveis. Ela me deu uma série de chineladas, então pensei: Isso é que é o tal do rock ‘n’ roll?.

    E VOCÊ NEM FALAVA INGLÊS?

    Nada, nada, nada, zero. Meu pai falava o suficiente

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