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Sociologia E Literatura
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E-book210 páginas2 horas

Sociologia E Literatura

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Sobre este e-book

Este livro possui como tema a literatura de José Saramago e sua relação com conceitos clássicos e contemporâneos da sociologia. Analisa a conexão entre a literatura de José Saramago e a sociedade contemporânea e, de modo geral, a relação entre sociologia e literatura como narrativas complementares acerca do universo social. A questão central que se impõe é sobre a possibilidade de articular, através da obra de Saramago, sociologia e literatura como formas de expressão dos mesmos dilemas que marcam a experiência humana de estar-no-mundo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de fev. de 2020
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    Sociologia E Literatura - Raphael De Souza Cruz

    7

    1 INTRODUÇÃO

    A arte não avança, move-se.

    José Saramago, Cadernos de Lanzarote

    Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

    Livro dos Conselhos

    Uivemos, disse o cão.

    Livro das Vozes

    8

    1 INTRODUÇÃO

    Dizer que a literatura exprime a sociedade constitui, nos lembra Antônio Candido, verdadeiro truísmo1. Como toda construção social, a literatura está imbuída dos valores e visões de mundo existentes no momento de sua produção. É possível, no entanto, superar esta obviedade e se utilizar da literatura para compreender de modo mais completo a configuração social contemporânea. Trilhar esse percurso, no entanto, não implica em buscar, à maneira de Hippolyte Taine, uma leitura determinista que condiciona a produção artística aos elementos históricos e sociais que o circundam. Nesta leitura, a obra de arte é epifenômeno direto da estrutura social e a questão da agência humana – a autoria – é completamente enublada, pois o próprio autor é também epifenômeno. Tampouco é frutífera uma análise meramente formalista ou imanentista, que considera a obra pura genialidade a-histórica e atemporal, seja porque tal método é antitético à sociologia, seja porque não há obra fora de um campo que lhe estruture e permita o seu florescimento – e analisar sociologicamente uma obra de arte não é diminuí-la, mas situá-la no contexto social que lhe pauta. A compreensão ampla de um trabalho artístico passa, necessariamente, pela análise de suas condições sociais de produção.

    Mais revelador, talvez, seja explorar as possibilidades de interação e complementaridade entre a obra sociológica e a obra literária – mesmo porque a literatura, como toda forma artística, não se limita à constatação da realidade, mas se dedica à extrapolação figurada do que é objetivamente possível, desvelando não apenas o contexto existente, como também as utopias e distopias projetadas.

    Este livro possui como tema a literatura de José Saramago e sua relação com conceitos clássicos e contemporâneos da sociologia. Tomando como corpus principal, porém não exclusivo, o livro A Caverna (SARAMAGO, 2016), analiso a relação entre a literatura de José Saramago e a sociedade contemporânea e, de modo geral, a relação entre sociologia e literatura como narrativas complementares acerca do universo social. A questão central que se impõe é sobre a possibilidade de articular, 1 Nessa linha, Goldmann (1976, p.14) afirma que sempre foi possível mostrar que a crônica social refletia, mais ou menos, a sociedade da época, e para fazer essa verificação, francamente, não é preciso ser sociólogo.

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    através da obra de Saramago, sociologia e literatura como formas de expressão dos mesmos dilemas que marcam a experiência humana de estar-no-mundo.

    O Capítulo 1 inicia esta discussão justamente tematizando a relação entre sociologia e literatura, a partir de textos de Wolf Lepenies (1996), Zygmunt Bauman e Ricardo Mazzeo (2016) e Irene Martinez Sahuquillo (1998). Ainda neste capítulo desenvolvo comentários acerca da obra de Saramago e da sua proximidade com a sociologia, bem como elaboro os questionamentos norteadores da pesquisa.

    O Capítulo 2 trata do romance A Caverna e de sua relação com a sociedade de consumo líquido-moderna e a adiaforização que lhe é correspondente (BAUMAN; DONSKIS; 2014). Neste capítulo, desenvolvo a ideia da modernidade como expressão utópica, tanto na literatura quanto na sociologia, e do Centro ou do shopping center como modalidade de utopia degenerada (SARLO, 2016) da sociedade de consumo, tendo como aporte principal as leituras de Bauman (2005; 2014) e Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015).

    O Capítulo 3 pode ser considerado uma espécie de interlúdio em que se discute a noção de utopia na modernidade, como cidade ideal não-localizada e ucrônica.

    Desenvolvo, neste capítulo, a crítica à utopia como Palácio de Cristal tal qual elaborado, de diferentes formas, por Fiódor Dostoiévski (2000), Emil Cioran (2011) e Peter Sloterdijk (2008).

    O Capítulo 4 retorna a A Caverna para encontrar no romance elementos que permitam escapar a uma ética da resignação e formular seu potencial utópico, tendo como ponto de partida a remodelagem da noção de utopia como interdição do presente (um ainda-não) e exploração das possibilidades latentes existentes no real, efetuada por Ernst Bloch (1996; 2000; 2005). Nesse sentido procuro realizar, em um primeiro eixo, um exercício que contemple a função mitopoética (STEINER, 2003) das narrativas elaboradas pelas ciências humanas, me utilizando da figura de Sísifo de Albert Camus (2004) como símbolo da resistência de Cipriano Algor, herói de A Caverna. Um segundo eixo procura demonstrar como sobrevivem, nos romances de Saramago, e em especial em A Caverna, mesmo tendo-se em vista o aparente pessimismo e inconclusividade da obra, as potências afetivas que dialogam, contrapõem-se e, em último caso, se insurgem contra forças que oprimem os personagens. O terceiro eixo articula a noção de utopia com o esforço de resistência

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    política, com o compromisso ético-solidário e o trabalho de criação e autocriação que deve prevalecer, mesmo em face da contingência do mundo contemporâneo, para que não se perca de vista a possibilidade de elaboração de novas relações sociais.

    Ao longo do capítulo aprofundo o diálogo com as ideias de Bauman (1999; 2005; 2007; 2009; 2011), em sua teorização da modernidade ambivalente e na mais recente reflexão sobre a sociedade líquido-moderna. Servem de aportes também, particularmente no momento de discussão sobre resistência e alternativas políticas atuais, textos de Isabelle Stengers (2015), Slavoj Zizek (2012; 2014) e Naomi Klein (2008; 2017).

    As considerações finais apresentam um reforço à defesa de que a obra de José Saramago apresenta contribuições importantes para a análise sociológica, na medida em que tematiza questões contemporâneas relevantes. Advogo ainda por uma maior proximidade entre a literatura e a sociologia, no sentido de superar a dicotomia hermenêutica-positivista que marca grande parte da produção sociológica desde a criação da disciplina. Sob este aspecto, em um plano propositivo, sugiro a possibilidade da obra literária ser considerada fundadora de discursividade, nos termos propostos por Michel Foucault (2001) para obras teóricas e defendo a prática de uma sociologia menor, consoante a análise realizada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2015) da obra de Franz Kafka como uma literatura menor.

    Do ponto de vista metodológico, os capítulos que se seguem tomam a forma de ensaios, conforme a definição de Theodor Adorno (2003), isto é, exercícios de interpretação necessariamente próximos da teoria, mas que se desenvolvem com mais liberdade do que a tradição científica instrumental e hermética permite. Trata-se, por óbvio, de uma pesquisa bibliográfica. Procurei identificar nas obras escolhidas passagens que subsidiem a hipótese de que a literatura de José Saramago, em particular a obra A Caverna, pode ser tomada como uma forma de significação e leitura da realidade que se aproxima daquela realizada pela sociologia. Com isso não se pretende resumir o mérito da obra saramaguiana aos seus aspectos sociológicos, mas demonstrar como se encontra na arte, em especial na literatura, elementos hermenêuticos que permitem a interpretação da realidade social, indicando assim como as fronteiras entre ciência e literatura são menos rígidas e nítidas do se supõe.

    A afirmação de Fredrik Barth (1998), de que não são as diferenças que criam fronteiras, são as fronteiras erguidas que forjam e muitas vezes cristalizam as

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    distinções, é particularmente aplicável às fronteiras entre campos de conhecimento.

    Procurei deste modo não desenvolver uma Sociologia da Literatura, mas executar uma articulação entre sociologia e literatura, mobilizando para isso conceitos clássicos e contemporâneos das Ciências Sociais em sua conexão com a obra literária. O que se segue pode ser lido, portanto, como um longo diálogo entre José Saramago e Zygmunt Bauman; este último como principal interlocutor, com eventual auxílio de outros autores, todos localizados no espaço de comunicação entre interpretação social e construção literária, como Wolf Lepenies, Franz Kafka, Beatriz Sarlo, Albert Camus, Ernst Bloch, Fiódor Dostoiévski, Peter Sloterdijk e Emil Cioran.

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    2 SOCIOLOGIA E LITERATURA

    O real é o mar. Nele, há escritores que nadam e há escritores que mergulham. Mas a água é a mesma.

    José Saramago, Cadernos de Lanzarote

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    2 SOCIOLOGIA E LITERATURA

    O tema da Sociologia e da Literatura como campos complementares, e muitas vezes concorrentes, de explicação e interpretação de um mesmo corpus – o mundo social – vem sendo retomado recentemente, ora lançando luz sobre os literatos com pretensões científicas, ora elaborando a hermenêutica dos cientistas sociais que se aproximam da literatura. O papel inerentemente crítico da sociologia – ao demonstrar como as relações aparentemente naturais e como as ações espontâneas na verdade se inserem num quadro mais amplo de agenciamentos e influências geradas socialmente – se alimenta do caráter inerentemente perspicaz da literatura. Agora, talvez mais do que antes, quando esperanças de transformação social estão subscritas à máxima não há alternativas, elas são chamadas a propor, através do discurso, das palavras – suas únicas armas –, modelos outros que não a síndrome consumista líquido-moderna:

    E chamados, como o são sociólogos ou romancistas, a ajudar nossos semelhantes a ver através de sua condição até suas fontes mais interiores e misteriosas que derivam seu incrível poder de sua invisibilidade – a afastar suas armadilhas recônditas e emboscadas enquanto procuram maneiras de encontrar ou inserir significado, propósito e valor na maneira como vivem suas vidas – não temos outras ferramentas à nossa disposição, a não ser palavras.

    [...]

    São as palavras que permitem, alertam e obrigam a separar o que é do que parece ser; são as palavras que criaram a lacuna entre a verdade e suas aparências, justapondo-se contra as sugestões / implicações / insinuações dos sentidos enquanto tentam articular suas mensagens e reivindicar a presidência no tribunal da Verdade (BAUMAN; MAZZEO; 2016, p. 139-140, tradução nossa).

    Wolf Lepenies (1996), não por acaso, lembra a afirmação de Engels, que teria aprendido mais sobre a sociedade burguesa da França do século XIX com Balzac do que com os economistas políticos ou historiadores. Quando o autor de A Comédia Humana afirma que pretendia nomear o trabalho como Études Sociales, vê-se um tensionamento entre a literatura e a sociologia que parece sugerir que a capacidade de penetração do escritor na densidade das motivações humanas esboça insights

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    sobre as dinâmicas sociais que a sociologia só apreende superficialmente.2 Para Lepenies (idem, p. 11), desde a metade do século XIX a literatura e a sociologia disputam a primazia de fornecer a orientação-chave da civilização moderna, o direito de ser a doutrina de vida apropriada à sociedade industrial, debate no interior do qual a sociologia se constituiria como uma espécie de terceira cultura, entre a ciência e a literatura; posição, porém, sempre problemática, uma vez que O problema da sociologia está no fato de que ela pode sem dúvida imitar as ciências naturais, mas não pode efetivamente tornar-se uma ciência natural da sociedade. Se renunciar, porém, à sua orientação científica, ela retorna a uma perigosa proximidade com a literatura (LEPENIES, 1996, p. 17).

    Na descrição do embate representado pela fria razão e a cultura dos sentimentos – os sociólogos e os literatos, respectivamente –, Lepenies (idem, p. 24) alerta para os efeitos da radicalização da ratio arrogante na sociologia quando sob ataque – muitas vezes de caráter anti-iluminista – da literatura e dos literatos. Sempre que a sociologia pretende-se substituta da metafísica e da religião e procura se impor como meta-interpretação do mundo, suas possibilidades hermenêuticas se enfraquecem, em vez de serem fortalecidas, abrindo espaço inclusive para o culto ao irracional típico das experiências totalitárias. Provavelmente o autor que mais encarnou este tipo de atitude sociológica foi Auguste Comte, que chegou a fixar regras quase matemáticas, e deliberadamente antiestilísticas, para a escrita sociológica3, e em quem mesmo as cartas de amor eram tratados conceituais. Esse esforço de livrar a sociologia do estilo, do tropo e da retórica significavam, claro, um esforço de legitimação da sociologia frente a outros campos do conhecimento, tanto que seriam levados adiante pelo maior seguidor de Comte, Émile Durkheim. O que se perde de vista neste percurso, porém, é aquilo que Bauman e Mazzeo (2016, p. viii, tradução 2 A este respeito, e precisamente sob a mesma ótica de pensamento de Balzac, Lepenies (1996, p. 26) afirma que "Flaubert considerava seu trabalho, sem dúvida, como a melhor ciência da sociedade – com relação aos sociólogos, sentia-se também moralmente superior, pois acreditava poder, como escritor, escapar às pressões sociais: [...] ‘Quem sois então, ó sociedade, para me forçar a o que quer que seja?’. Igualmente, Zola denominava seu trabalho de sociologia prática, querendo dizer que ele praticava a verdadeira sociologia" (idem, p.27).

    3 As sentenças de seu manuscrito deveriam ter no máximo duas linhas, nenhum parágrafo poderia conter mais de sete sentenças (LEPENIES, 1996, p. 28), assim por diante.

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    nossa) chamam de natureza complementar, suplementar e mutuamente enriquecedora da sociologia e da literatura, na medida em ambas compartilham o campo que exploram, os seus temas e tópicos - bem como (ao menos em um nível substantivo) a sua vocação e impacto social.

    Nessa linha, Irene Martínez Sahuquillo (1998, p. 226, tradução nossa) afirma que o romance, em especial o de variante realista, procura oferecer, tal qual a sociologia, um quadro fiel do mundo social no qual estão localizados os diferentes cenários onde transcorrerão as vidas dos personagens. A proximidade entre sociologia e literatura como interpretações da sociedade moderna-industrial é evidente quando analisamos os temas que são comuns aos dois campos. O sociólogo e o literato – sobretudo aquele de cunho realista – estão unidos por propósitos coincidentes, na medida em que compartilham a mesma curiosidade pelo social, esquematizada e avaliada metodologicamente por uns, retratada artisticamente por outros. Fundamentalmente, e falando especificamente da sociologia nascente, enquanto ciência dedicada a compreender os dilemas modernos, os dois campos partilham da necessidade de interpretar as transformações que desencadearam na transição de formas de vida, valores e modos de ser tradicionais para a sociedade moderna, monetarizada, industrializada, racionalizada. O que a autora chama de patologias ocidentais oriundas do processo modernizador – a anomia, a alienação, o estranhamento, o desenraizamento, a sensação de falta de lugar – estão presentes tanto nas análises sociológicas dos chamados clássicos da disciplina quanto em autores como Franz Kafka, Robert Musil, Hermann Hesse e J. D. Salinger (idem, p.

    225). Afirma a autora, fazendo referência à obra de Lepenies, que: O criador literário torna-se assim um intérprete, como o sociólogo, da realidade social e dos eventos históricos que a atravessam; porém, em oposição a este, não lhe interessa tanto descobrir as tendências gerais mas sim aprofundar os casos particulares nos quais uma tendência geral se manifesta; sua motivação caminha, assim, no sentido contrário à regra durkheimiana que convida a deixar de lado as manifestações individuais de um fenômeno

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