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Príncipes do Inferno
Príncipes do Inferno
Príncipes do Inferno
E-book511 páginas6 horas

Príncipes do Inferno

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Sobre este e-book

E se os 7 pecados mortais não fossem apenas pecados? E se Inveja, Luxúria, Ira, Preguiça, Gula, Avareza e Orgulho tivessem uma alma? E se os Príncipes do Inferno vivessem entre nós, escondidos em corpos humanos?

Orin foi criado na escuridão, a sua alma foi forjada nas profundezas do inferno, ele é maldade, é frieza, é morte, é pecado. 

Mas quem diz que os demónios não podem sentir?

Ele acreditava que não podia, até conhecer a alma manchada da Ália. Uma rapariga com um segredo que a levou até à cidade dos sete demónios. A curiosidade e um par de olhos verdes fazem com que ela entre num mundo de sustos, obsessões, sangue e morte.

Quando o que ela queria era um recomeço, conhecer estas criaturas torna-se ainda pior com o regresso do seu passado sangrento.

Bem-vindo a Príncipes do Inferno.
Tem cuidado e mais importante,
Guarda a tua alma a 7 chaves.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jan. de 2023
ISBN9789899148536
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    Pré-visualização do livro

    Príncipes do Inferno - Catarina Silva

    Agradecimentos

    Obrigada mãe, por seres a minha calma e a minha força.

    Agradeço a todos os que me apoiam e que acreditam em mim mais do que eu.

    E a todos os que tornaram este livro, e o meu sonho, possível

    Prólogo (1ª Parte)

    Anos antes...

    O vapor passava pelos seus dedos gelados na tentativa de aquecê-los, sem sucesso. O seu corpo tremia, a única coisa que podia fazer era encolher-se cada vez mais dentro do saco-cama, na esperança da formação de algum calor.

    Ele ouvia o vento uivar lá fora e sentia-o na pele, filtrado pelos tecidos da tenda barata. A chuva caía numa imensidão anormal, era como se os próprios céus o tentassem castigar. A cada minuto ele arrependia-se mais de ter fugido, teria que conviver com o seu pai abusivo, mas pelo menos estava debaixo de um teto.

    Algo, ou alguém, dentro dele, dizia para não desistir. Que isto era apenas o primeiro passo, fugir do mal para procurar o bem. E passar por estas coisas era um começo, eram os deuses a testar a sua força.

    Ele tinha que aprender a amanhar-se sozinho, já não tinha ninguém. Essa foi a sua decisão e é essa decisão que ele tinha que seguir como o homem que era.

    Passou a mão pelos cabelos castanhos e tirou-os da testa, respirou fundo e fechou os olhos concentrando-se em tudo que não fosse o temporal lá fora.

    Foi aí que ele ouviu o barulho.

    Rapidamente sentou-se no colchão fino, olhou para todos os lados, mas não conseguia ver sombras à sua volta.

    Que animal seria estúpido o suficiente para sair e correr com esta tempestade? Pensou. Mas o seu subconsciente respondeu prontamente: Que fazes tu aqui então? Podias estar na tua cama, seco e quente. No entanto estás aqui.

    Ele acenou com a cabeça mesmo estando sozinho. O som parecia aproximar-se, o animal deve ter ouvido o seu movimento. O que podia ser? Um urso? Um lobo? Ele não era forte o suficiente para lutar contra nenhum deles. Abraçou-se aos joelhos e limitou-se a ouvir a proximidade tornar-se mínima. Sentiu-se inútil, assustado, até chegar a um desespero horrível, era torturante.

    Depois ouviu-o: Um riso, um riso que o abalou até à espinha. Aquele som agarrou-se à sua pele, aos seus ossos, até à sua alma. Ele entrou em pânico, naquele momento soube que não se tratava de um animal feroz. De alguma maneira sentiu que um monstro com dentes e garras afiadas não se igualaria ao que estava do outro lado da tenda. As gargalhadas maléficas estavam cada vez mais perto, tornaram-se graves e por um momento pareciam múltiplas, mesmo sabendo no seu ser que havia apenas uma criatura que o circundava.

    Sim, criatura. Mesmo que não o veja, ele sabia que não pertencia a este mundo, porque cada fibra do seu corpo lhe dizia.

    Ele sabia que a cada passo a vida escapava-lhe um pouco mais. De repente viu a sua vida passar pelos olhos verdes cobertos de lágrimas. O sorriso da sua mãe e o cheiro dos seus cozinhados, o seu pai, aquele que o devia proteger, fervendo de raiva contra ele, culpando-o por nascer, humilhando-o pelos seus fracassos na escola. A sua mãe deitada na cama do hospital durante meses, a sua despedida, o funeral que lhe seguiu. A realização de que aquele homem barbudo e fedorento era o único laço de sangue que ele tinha, as brigas, a violência, os anos de angústia e baixa autoestima, as relações amorosas falhadas por falta de afeto ou por simplesmente falta de percebas de como tratar mulheres. O tempo todo passado a olhar para o vazio perguntando-se sobre a vida, a sorte e o azar de cada um, o destino... Tudo isso parecia tão pequeno e... Inútil.

    O destino trouxe-o aqui, de sofrimento começa para de sofrimento acabar.

    Ele respirou fundo, preparado para aceitar o caminho que Deus lhe deu, quando o fecho da tenda deslizou, abrindo-a. O seu corpo ainda tremia, e não parava. O coração queria sair-lhe pelo peito assim como a comida, que de certeza que se tivesse algo no estômago já teria evacuado. Mesmo com o ambiente gelado o suor escorria-lhe pelo cabelo até ao pescoço.

    Um suspiro escapou pela sua boca quando o viu. O homem de olhos totalmente pretos encarava-o com curiosidade, esperando uma luta ou algum tipo de reação. Tinha um sorriso no rosto, um sorriso sombrio que lhe cobriu a pele de arrepios.

    Ele era o mal em pessoa, era um demónio, era uma criatura que o queria levar para as profundezas do inferno. E com a sua voz demoníaca marcou as suas palavras no coração do rapaz:

    — Oh meu diamante.... Finalmente encontrei-te.

    Ele viu uma espécie de fumo preto sair pela sua boca, esse fumo espesso obrigou a boca do jovem a abrir, forçando-o a permitir a sua entrada. Ele sentiu o seu corpo ceder, sentiu como se o rasgasse por dentro. Tentou lutar, mas era tarde de mais, a sua influência estava dentro dele, tomando conta de si, possuindo cada parte do seu ser, silenciando-o em seguida, pressionando-o para um fundo trancado com todo os aloquetes do mundo sem possibilidade de escapatória.

    Ele deixou-se tomar, com a última imagem do corpo do homem que sorria para ele há uns segundos caído aos seus pés, com olhos vazios e cada orifício coberto de sangue. 

    Prólogo (2ª Parte)

    Anos depois...

    Os sons que saem pela sua garganta são roucos, é difícil puxar ar para os pulmões depois de correr tanto. Ela tenta manter-se em silêncio, mas os seus pés cansados já não sabem o que é alívio, apenas sentem dor, e o som que fazem é o mínimo das suas preocupações. Ela quer gritar e, ocasionalmente, o seu nome sai-lhe pela boca, num som esganiçado, como um animal ferido, implorando pela vida.

    Ela não sabe há quanto tempo está a correr, só sabe que não pode parar, porque ele também não para. Mesmo sendo maior que ela, mais pesado, mais ágil, e com uma arma na mão, ainda consegue ser mais rápido. Ela sente-o cada vez mais perto. E sabe que ele vai chegar a ela, eventualmente. Não parece cansar-se, enquanto que ela já está a dar os seus últimos passos.

    Ela desvia-se das campas e vai pedindo desculpa silenciosamente às que chuta e pisa, faz um esforço para não correr em linha reta para evitar que, se ele tiver a ideia de começar a atirar, não seja um alvo fácil.

    Ália pergunta-se como chegou a este ponto, ela sabe que foi a causa de todas estas mudanças que a trouxeram aqui. A correr no meio de um cemitério, de pés sangrentos, corpo suado e pulmões queimados, a fugir dele. Ela sabe que não estaria nesta situação se estivesse quieta na sua terra natal, onde está agora. Se não tivesse errado não estaria a correr pela sua sobrevivência. Foram os seus erros que a trouxeram aqui.

    Triste destino.

    As lágrimas correm-lhe pelas bochechas, dificultando-lhe a sua visão. Gemidos de dor saem sem permissão, ela já não os controla. Está exausta, pronta para desistir e encarar o seu destino. 

    Ele está demasiado perto, e ela demasiado cansada.

    Ela cai, tropeçando numa das lápides que a escuridão escondeu. De pernas trémulas consegue levantar-se e, com muita dificuldade, volta a correr.

    Ele grita o seu nome, uma e outra vez. O som da sua voz chega-lhe aos ouvidos e desliga o seu corpo por completo. Ela para, e espera. Como se dele tivesse vindo uma ordem que não pudesse recusar.

    Pela última vez reza, olha para os céus negros e pede calmamente para que a leve para quando agiu e estragou a sua vida para sempre. Secretamente, pede também para que o seu salvador apareça, mesmo que saiba que ele nunca chegaria a ela a tempo. No entanto pede para, apenas se Deus quiser, lhe mandar um milagre, não que sinta que mereça, mas não custa pedir.

    Quando a primeira gota de água cai na sua testa, ela sorri, porque mesmo que saiba que não tem saída ou possibilidade de salvamento é como se o universo tivesse respondido dando-lhe um beijo de boas-vindas, prometendo recebê-la com amor e carinho. Ela está pronta, sente-se preparada. Aceita que tudo aconteceu por um motivo, e esta é a sua maneira de ir.

    Ela só espera que seja rápido.

    Ele chega, por entre umas árvores, respirando com dificuldade, mas com um olhar determinado, mentalizado que só pararia quando a encontrasse. Vê-a parada e inspeciona-a com os olhos antes de lhe apontar a arma ao peito. O corpo da arma prateada brilha mais do que tudo à sua volta, é como um encantamento, como se ela soubesse que é aquela arma que a vai levar para os céus.

    Ele fala alguma coisa, talvez a tentar deitá-la ainda mais abaixo. Quer fazê-la sentir como se fosse um bicho insignificante, quase não merecedora da bala que ele tenciona atirar nela. A rapariga não se deixa levar pelas suas palavras horríveis, ela já não ouve, apenas espera pela sua hora, pelo momento em que aquele gatilho é apertado.

    E finalmente acontece.

    No momento em que a bala atinge a sua pele, o corpo é projetado para trás, e apanhado por anjos. Ela sente dor, mas apenas no início, a cada momento que passa sente a sua alma partir e voar para longe.

    Ela está livre agora. Pode  deixar-se ir, enquanto é embalada pelos braços angelicais e fortes.

    A sua última recordação é o verde dos seus olhos, aquela cor tão brilhante que quase a faz querer desejar voltar à Terra. 

    Amartía

    As gotas que me caem no rosto refrescam-me, depois de horas sentada naquele autocarro com assentos de um tecido irritante e malcheiroso, cheguei. A chuva dá-me as boas-vindas, assim como o nevoeiro e as temperaturas baixas.

    Amartía é uma cidade pequena, quase ninguém a conhece, é perfeita para alguém como eu se esconder.

    O meu pai escolheu bem.

    Depois de tudo o que aconteceu ele ainda tenta ajudar-me, afinal, é como a mãe diz, ele mostra que me ama com atos e não palavras ou afetos. Foi assim que aprendi a ler o meu pai e no fim de tudo, depois de me esforçar muito, consegui compreendê-lo a ele e ao seu amor por mim.

    Eu sei que ele não me vai falar mais, não depois do que eu fiz mas sei que se eu precisar ele faz o que for preciso para que não fique mal. Podemos não trocar uma palavra mas desde que esteja relativamente bem ele está feliz, e eu também.

    Ajeito a mochila nas minhas costas e tiro a mala de rodas do compartimento do autocarro. Estou prestes a começar uma nova vida, aqui ninguém me conhece, eu posso ser uma pessoa nova, a pessoa que eu quiser!

    Eu tenho que ver isto como uma oportunidade e não como uma maldição. Não tenho a minha família, mas de qualquer maneira nunca estava com eles, não tenho os meus amigos, mas eu não gostava de estar com eles. Andava apenas com as pessoas que o meu pai permitia, miúdos com heranças vastas e bem-parecidos, como eu.

    Finalmente vou fugir de tudo o que ele acreditava e posso começar a agir como realmente sou.

    Sei que o apartamento onde o meu pai me colocou não é muito longe daqui então começo a caminhar.

    Pensei mesmo que ele me poria numa moradia cheia de empregados, um espaço todo para mim, mas vou ficar num apartamento partilhado com outros estudantes. Vou para uma faculdade pública, e não uma paga cheia de miúdos ricos e arrogantes.

    Suspiro. Todo aquele clima de ignorância e arrogância enraivecia-me, porque tinha que conviver com pessoas assim? Por muito que tenha sido educada com eles, nunca tive que me mostrar mais que os outros, porque não sou. Eu não sou melhor que ninguém, e eles gostavam de fingir que eram. Nunca me encaixei naquele ambiente, e acho que nunca me encaixaria.

    Aquilo não era eu, era o que me forçavam a ser.

    Posso viver como uma pessoa normal. Aprender e conviver com pessoas normais.

    A minha vida precisa de normalidade, desesperadamente.

    Pela primeira vez na minha vida sinto-me livre, uma rapariga de 22 anos e não de cinco  com algemas nos pulsos. Sou um pássaro, livre para voar.

    As gotas finas tornam-se grossas e querem encharcar todo o meu corpo. Corro desajeitadamente puxando a mala pesada atrás de mim, fugindo para uma cafetaria que solta um cheiro delicioso.

    Desejo imediatamente um café.

    Fico na fila e sinto o olhar das pessoas em mim, é uma cidade pequena, sou uma cara nova.

    - Hey moça. - A miúda vestida com um avental verde com um chapéu a condizer no outro lado do balcão fala com pressa, a esta hora da manhã o estabelecimento está cheio, deve ser uma das poucas cafetarias daqui. Ela chama a minha atenção por eu estar, mais uma vez, com a cabeça na lua.

    - Desculpe. – Sorrio, desculpando-me. - Queria um café.

    - Pequeno, médio ou grande? - Ela pergunta concentrada, apontando o pedido no ecrã à sua frente.

    - Grande, por favor. - Estou a precisar mesmo de um incentivo. A rapariga afasta-se para fazer o meu pedido e eu ouço um riso atrás de mim.

    Não consigo controlar a inspiração repentina nos meus pulmões e tenho que tossir um pouco. O rapaz está mesmo atrás de mim, demasiado perto.

    Ele é tão alto que precisa de olhar para baixo para me encarar, está a sorrir para mim, mas não com um sorriso normal. É um sorriso sombrio, os cantos dos seus lábios torcem de uma maneira estranha, é como se o sorriso nem fosse um sorriso. Tem os cabelos negros que lhe caem para os olhos que não consigo perceber se são azuis ou cinzentos, são claros, e fuzilam-me com uma intensidade fora do normal.

    O que é que ele quer?

    - Está algo errado? - Pergunto para o rapaz mesmo que ele me cause arrepios estranhos pelo corpo inteiro. A miúda entrega-me o café e eu pago rapidamente para me voltar para o rapaz. Quando esta olha para ele começa logo a fazer o seu pedido, é um regular aqui, estou a ver.

    - Não. - A sua voz é rouca, e faz outra corrente de arrepios percorrer o meu corpo. Tenho uma vontade imensa de fugir dele. - Acho piada apenas. - Ele tira o saco castanho de papel das mãos da empregada que o entrega e se aproxima de mim, fora da fila.

    - Achas que tenho piada. - Cruzo os braços e observo-o de sobrancelha levantada.

    - Eu acho graça a vocês. Nunca estão satisfeitos, tem que ser o café grande, grandes quantidades de comida, tudo tem que ser maior e maior. Nunca ficam saciados.

    - E quem és tu para julgar o que eu bebo ou deixo de beber? - Ele ri, mais uma vez, fazendo troça de mim. - Para além disso, também fazes parte de nós mortais, não fales como se não fosses igual a todas as outras pessoas que aqui estão. - Meu Deus como o seu olhar me irrita. É como se não ouvisse nada do que eu digo. Levo o café à boca, e acabo por queimar a língua.

    - Cuidado para não te queimares. - Ele curva-se e pousa a sua mão no meu ombro. - Aliás, porque não bebes logo tudo? Assim de rajada? Pode aquecer o teu corpo por inteiro. - O seu olhar perfura o meu, ele está à espera de uma resposta. Agora reparo que os seus olhos são mesmo cinzentos, a cor é estranha, é como se tivesse o nevoeiro nos seus olhos.

    - Estás louco? - Quando me afasto dele a sua expressão é hilariante, está mesmo surpreso, não sei porquê, não é como se eu fosse beber o café queimando a boca toda. Talvez porque me afastei dele? Ele não é feio, não vou dizer que é, porque não é. Não magoa nada olhar para o seu rosto, mas ele ficar surpreso por eu me afastar não pode ser porque qualquer rapariga que fica perto dele não se afasta, isso é demasiada arrogância e por muito que pense que ele não é boa pessoa, não me parece ser esse o motivo.

    Ele tenta tocar-me novamente, mas eu pego no seu pulso e afasto-o de mim. Antes de andar apressadamente para a porta com a mala numa mão e o café na outra noto no quanto ele é magro.

    Aquele braço que me tocou é tão fino, e agora que noto, todo o seu corpo é extremamente magro. Vejo os ossos pontiagudos pela camisola azul, assim como as covas que tem nas bochechas e o quanto o seu queixo está tão bem definido.

    Saio pela porta e sou acompanhada pelo seu olhar enquanto passo pela montra do café em vidro.

    Miúdo estranho.

    Crio uma nota mental para não entrar aqui de manhã, nunca mais. Faço o meu caminho para a minha nova casa, o prédio não está em mau estado, por fora é castanho claro e parece moderno, acho que foi construído há poucos anos.

    - Ália? - Ouço o meu nome ser chamado, os meus olhos caem na rapariga de cabelos encaracolados descontrolados. Com um sorriso enorme, sai pela porta do prédio, corre para o outro lado da rua sem nem sequer ver se vêm carros e aproxima-se de mim. Ela aperta o meu corpo num abraço e dá-me dois beijos na bochecha. - Eu sou a Alexis. Estou a ver que já conheces a Dolce's. O café de lá é maravilhoso. - Ela aponta para o copo de plástico na minha mão. O encontro com o rapaz estranho vem-me à mente, abano com a cabeça, tentando apagar o sentimento de desconforto que ele me proporcionou. - Finalmente chegaste! Estou cansada de estar sozinha naquela casa. - Ela puxa-me para a entrada e ajuda-me com a mala para subirmos as escadas.

    - Isso quer dizer que somos só nós as duas?

    - Não, tem o Chayson, mas é como se estivesse sozinha. - Solto um riso baixo. - Não te rias, aquele miúdo é desligado mesmo. Não sabe socializar. - Ela continua a queixar-se do pobre rapaz e eu não posso evitar o riso, ela tem uma alma animada, parece ser uma positivista. Uma daquelas raparigas que está sempre bem-disposta e pronta para tudo, exatamente o meu oposto.

    Eu só consigo ver o negativo, e prefiro ter o meu espaço, um lugar onde posso estar sozinha com os meus pensamentos.

    Também não consigo estar sempre com um sorriso na cara, não sou daquelas pessoas que consegue fingir um sorriso, se eu estou feliz mostro-o, se estou triste ou irritada mostro-o, e não o finjo. Admiro quem o faz, eu é que não consigo.

    A minha mãe sempre dizia que estou sempre de trombas, e não está errada. Opto mais pela solidão e pelo negativo, mas não quer dizer que não possa mudar, talvez esta seja uma maneira disso acontecer. O sítio novo, as pessoas novas, talvez me ajudem.

    Depois de subir dois lances de escadas chegamos à porta castanha escura. A voz da princesa riquinha na parte de trás da minha cabeça queixa-se dos pés e roga vinte pragas ao prédio por não ter elevador, mas não demonstro o meu desconforto e desilusão.

    A casa não é tão pequena quanto imaginava, tem três quartos, um deles uma suíte que é onde o tal rapaz dorme.

    Tem uma sala apresentável e uma cozinha moderna, as casas de banho também são grandes, assim como os quartos. Pelo que ela me explica, partilha com Chayson a varanda, e o meu quarto, que é o mais pequeno, tem uma janela. Não me importo com isso, é o meu espaço e não preciso de uma varanda.

    Aproximamo-nos do quarto de Chayson quando Alexis me agarra a mão. Ela avisou-me para falarmos com calma e para não estarmos muito tempo no seu quarto, acho que ele tem mesmo alguns distúrbios mentais.

    Ela bate na porta com cuidado e depois abre-a, deparo-me com um quarto enorme e escuro, a única fonte de luz vem de uma lâmpada que apenas ilumina a meia dúzia de livros em cima da sua secretária.

    Sentado na cadeira está ele, o tal de Chayson, ainda está de costas, apenas consigo ver o seu corpo vestido de preto que condiz com o seu cabelo encaracolado.

    - Chayson, não vais dizer olá à nossa nova companheira de casa? - A voz de Alexis é suave, é como se o rapaz fosse um animal assustado e ela tivesse medo que ele fugisse com medo. Chayson levanta a cabeça e vira-se na cadeira lentamente. A sua cara dá-me pena, a sua expressão é de dor, como se lhe custasse sequer ter interações.

    - Olá. - Ele levanta a mão, e por apenas uns segundos os seus olhos encontram os meus, só para depois caírem de novo no chão.

    - Olá Chayson, sou a Ália. - A sua cara torce-se, outra expressão de dor, ele parece estar a esforçar-se só para me ouvir. - O que precisares, estou aqui ok? - Sorrio. Ele vê o meu sorriso e mesmo que os seus olhos estejam outra vez no chão, corresponde ao meu sorriso com outro muito bonito. Fico feliz por ter alguma reação vinda dele.

    - Por agora é suficiente. - Alexis sussurra apenas para eu ouvir e dá-me um leve empurrão para sair do seu quarto. Aceno-lhe uma última vez antes de sair. - Desculpa, ele é um miúdo... Especial. - Ela faz uma careta e encolhe os ombros. - Vou deixar-te ficar confortável.

    Sou deixada no meu novo quarto, o meu novo cantinho. Não é nada mau, uma cama de solteiro, um armário com um tamanho considerável e uma secretária em frente à janela para eu poder estudar. Nada demais, mas não podia pedir por melhor.

    Deito a mala na cama e começo a tirar as roupas e a pendurá-las nas cruzetas, meto o resto dos meus pertences como o meu mealheiro, a minha caixa de joalharia, carregador do telemóvel e a minha caixa preciosa de recordações, dentro das gavetas no fundo do armário.

    Pego nos meus livros e pouso-os em cima da secretária.

    É aí que o vejo.

    Lá fora, em frente ao prédio, do outro lado da rua, exatamente onde eu estava há uns minutos. De mãos nos bolsos das calças de ganga, o seu cabelo voa para a esquerda com o vento, a sua pele parece tão pálida. É o rapaz da cafetaria.

    O que é que ele está a fazer aqui?

    Seguiu-me até aqui?

    Está a olhar diretamente para mim. Veio aqui por mim, estava atrás de mim, seguiu o meu caminho.

    Reage Ália, por favor, reage.

    Ele abre aquele sorriso enorme e estranho e o meu corpo entra num alerta completo.

    O que é que eu faço?

    Eu quero mover-me, quero descer e perguntar qual é o problema dele, mas eu não consigo. Porque não?

    O seu olhar mantém-me colada ao chão, sem falar, sem mexer um músculo. O rapaz resolve que já me assustou o suficiente e começa a andar para longe do meu campo de visão.

    Só quando expiro o ar que tinha nos pulmões é que noto que o sustive este tempo todo.

    Ele desapareceu. Mas aquele olhar... Aquele sorriso... Foi como uma ameaça.

    Ainda tenho o coração aos saltos quando acabo de guardar todas as minhas coisas.

    Estranhos

    A hora do almoço não é muito bem-vinda, tenho o estômago às voltas e não acho que qualquer comida consiga ficar. No entanto, esforço-me por pôr alguma coisa na boca, para ter forças para o resto do dia. Depois de comermos, Alexis oferece-se para me levar à faculdade, faculdade essa que todos partilhamos.

    Tenho a sorte de ter a Alexis como colega de turma no curso de Gestão de Empresas.

    Não é um curso que me apele muito, mas é um que necessito para o meu futuro, infelizmente essa parte ainda é controlada pelo meu pai, que quer que continue com o negócio de família. 

    Ela conta-me que Chayson está a tirar o curso de Direito e isso não me impressiona, o rapaz esteve agarrado aos livros desde que cheguei. Deve ser inteligente para estudar um curso tão trabalhoso, e realmente tem aspeto de ser.

    — Chayson. — Ouço Alexis murmurar ao entrar no quarto dele. — Vou mostrar a faculdade à Ália, queres vir connosco? — Suponho que a resposta tenha sido negativa porque a cara da Alexis não parece muito animada. — Podias ir para a biblioteca enquanto eu estou com ela. Trago-te para casa depois. — Ela abre um sorriso vitorioso e eu percebo que a proposta foi aceite.

    Não passado muito tempo ele aparece de mochila cheia às costas, usa um casaco preto com o capuz na cabeça. Reparo que é mais alto que eu, ele aproxima-se, de olhos colados ao chão e passa por nós abrindo a porta para podermos sair. 

    Felizmente Alexis tem carro para nos levar, a faculdade não fica muito longe, a uns 5 minutos de carro.

    Sento-me ao lado de Alexis, enquanto ela conduz e Chayson fica atrás. Vou olhando para ele de vez em quando, não sei porquê, talvez porque ele me fascina, o facto de ser tão fechado e a sua maneira de reagir às coisas é tão diferente que eu acho curioso. 

    Numa dessas vezes sou apanhada pelos seus olhos, que agora vejo que são azuis como água. Vejo neles vulnerabilidade e uma timidez imensa, analiso-o com o pouco tempo que tenho, e ele faz o mesmo.

    Temos uma guerra de olhares que demora apenas uns segundos, mas é o suficiente para sentir a sua intensidade.

    — Alexis, eu vou tratar dos meus documentos. — Aviso quando ela vai falar com um amigo dela e a conversa não para de fluir. O Chayson escapou mal pôs os pés fora do carro e agora é a minha vez.

    — Tudo bem. Eu encontro-te. — Ela diz rapidamente para continuar o papo animado com o rapaz.

    Saio em busca da secretaria para que possa assinar a inscrição e dar uns documentos que tenho em falta. O último passo para ficar definitivamente nesta faculdade, outra coisa que me vai ligar a esta cidade nova. A faculdade é totalmente diferente da que eu andei antes, esta é mais simples e consideravelmente mais pequena. As instalações são mais velhas e tem obviamente menos pessoas.

    Quando estou despachada procuro pela Alexis e não a encontro no lugar onde a deixei. Decido explorar um pouco. A faculdade tem dois edifícios, vários corredores com portas antigas e enormes de madeira, ouço barulho dentro das salas. 

    Um dos corredores vai levar-me ao que suponho ser a parte desportiva da faculdade, devem ter cursos de desporto.

    Tem um campo enorme e, de um lado, uma bancada onde algumas pessoas estão sentadas. Um grupo grande de raparigas está na parte de trás das bancadas e espalhados pelo resto das escadas estão casais ou pessoas sozinhas. 

    Sento-me na fila da frente e cruzo as pernas em cima do banco, não quero ligar para a Alexis, não a quero chatear logo no dia em que a conheci. Então apenas espero que ela me contacte, tentando lutar por um bocadinho de paciência.

    Viro-me quando ouço vários ruídos, depois vejo o grande grupo correr pelas bancadas, um adulto que penso ser o professor tenta controlá-los mas eles espalham-se, alguns saltam para o campo, outros saltam nas escadas, e as raparigas apenas se riem dos feitos ridículos dos miúdos idiotas.

    — Olá. — Uma delas senta-se ao meu lado por alguma razão. Reparo imediatamente no seu cabelo azul e nos olhos da mesma cor. — Desculpa chatear, mas estou cansada de aturá-las. — Ela aponta para o grupo de meninas que observa os rapazes. — Cabras imaturas. — Arregalo os olhos com o seu comentário e controlo o riso. — Estou ansiosa por me ver livre delas.

    — Vais sair da faculdade?

    — Oh, não. Ainda estou no secundário. Gosto mais do que a responsabilidade de uma faculdade. — Ela sorri. — Estamos a fazer uma visita de estudo, acontece todos os anos. Como se algum desses palermas fosse para o ensino superior, são uma cambada de burros.

    — Não gostas mesmo deles. — Ela abana a cabeça e olha para o nível superior onde eu estou. Observa os seus companheiros e os seus olhos caem numa loira que manda um ou outro piropo a um dos rapazes.

    — Estás a ver aquela? Líder de claque, topo da turma. Todos os rapazes a escolhem. Fazes alguma ideia do quanto isso é frustrante? — Ela toca-me na perna e suspira. — Não desejas que pessoas como ela simplesmente... Morram? — O seu olhar intensifica e mais uma vez sou atirada numa situação incrivelmente estranha onde não sei como reagir. Ela espera uma resposta e não a tem. — Não? — Ela olha-me confusa, tira a mão da minha coxa e toca na única pele à mostra para além da minha mão, o meu rosto.

    Os seus dedos tocam na minha bochecha, e ficam lá colados, enquanto me analisa, como se esperasse que eu fosse fazer algo quanto a isso.

    — Ália? — Ouço a Alexis e fico feliz porque a menina distrai-se com ela e finalmente pensa que ir embora seria uma boa ideia.

    — Hmm. Prazer em conhecer-te. Vemo-nos por aí. — A menina de cabelo azul diz antes de subir a escadaria toda e juntar-se ao grupo que está a ir embora. Ela olha para mim pelo ombro até deixar de me ver.

    — Quem era aquela? — A Alexis senta-se ao meu lado, curiosa.

    — Eu não faço ideia. — Murmuro sufocando nos meus próprios pensamentos. — Veio falar comigo do nada. Esta cidade está a tornar-se demasiado estranha para mim. — Ela ri como se fosse uma piada, mas realmente não foi. Esta cidade não me tem dado nada mais que arrepios na espinha e encontros estranhos. — Vamos?

    — Oh não. — Ela toca no meu ombro e sorri. — Estamos no sítio certo.

    Nesse exato momento ouço barulho no campo, um grupo de rapazes sai pelas portas a brincar e a falar entre eles. Não parecem ser muito mais velhos que nós. Vestem equipamentos iguais azuis e brancos com riscas. O grupo de miúdas que estavam atrás quase que saltam para a frente, para a nossa beira.

    Observo cada um deles e vejo como cada rapariga, incluindo Alexis, se baba com cada um, elas vieram de propósito para os verem. Para quê?

    Percebo a razão quando vejo um cabelo ruivo brilhar ao sol. O rapaz é alto, é musculado, e faz com que todas elas suspirem simultaneamente. Ele parece já saber sobre a sua claque e vira-se para as bancadas para acenar, elas respondem com gritos de incentivo e acenos exagerados.

    Eu admito, ele é bonito, muito bonito até, mas não vejo o porquê de toda essa reação.

    Depois os seus olhos caem em mim, daqui consigo perceber que são escuros, muito escuros. O seu olhar intensifica, é como se tentasse concentrar-se em mim.

    Ele fecha os olhos rapidamente e tapa-os com a mão, ouço um gemido de dor por cima dos berros das meninas. Um dos seus companheiros corre para ele, talvez seja uma coisa recorrente, depois abraça-o para amparar a queda e aí o ruivo deixa-se cair, os seus joelhos dobram, mas não caem no chão. Ele segura-o e olha para o grupo de sobrancelha levantada, observa-nos a todas, confuso, e ajuda-o a levantar-se quando se move de novo.

    O moreno pergunta-lhe alguma coisa e ele acena com a cabeça. Ainda agarrado aos olhos fala com o seu colega e, finalmente, decide em quem parar o olhar: em mim. O ruivo continua a falar e o amigo abre um sorriso, outro sorriso lindo, mas arrepiante. Tudo no seu rosto grita misterioso, atraente, mas assustador.

    Tem os olhos cavados, parece ter olheiras à volta dos olhos, tem a pele clara e uma cara magra, com o maxilar esculpido perfeitamente e uns lábios rosados.

    Porque é que ainda não parei de olhar para ele?

    Mais uma vez fico hipnotizada, é como se as pessoas desaparecessem do mundo e a única coisa que existe sou eu e ele.

    O que é que aquele sorriso quer dizer?

    O que é que lhe disse para ele olhar para mim desse jeito?

    O que é que eu fiz?

    — Ália? — Sou retirada da minha espiral de pensamentos, o rapaz parece ter saído do seu transe também quando leva uma palmada suave na cara do seu colega. Ambos mandam um último olhar para mim e depois correm para a beira da equipa. — Meu deus, não me acredito, vamos ser cunhadas. — A Alexis abraça-me com força.

    — Vamos ser o quê?

    — Cunhadas. Viste como ele olhou para ti. E aquele ruivo é meu. — A Alexis transmite um olhar matador para o grupo ao seu lado. Maior parte delas responde com o dedo do meio. — Eles são como irmãos. Aquele ali. — Ela aponta para o ruivo que corre com um sorriso no rosto. — Chama-se Ianis. O meu futuro marido. — Faz questão de dizer a segunda frase ainda mais alto, e aí entra numa guerra de argumentos com as raparigas histéricas.

    — Dia estranho. — Falo para mim mesma, enlaço os braços aos joelhos e agarro-me aos pensamentos que me levam para longe.

    Fecho os olhos e tento esquecer a equipa à minha frente, assim como as miúdas e os seus gritos esganiçados, e sou levada para o meu mundo. Está escuro, mas é quente e por momentos aqui, posso acreditar que nada me atinge, que ninguém me pode magoar ou perseguir.

    Nem o rapaz magro da cafetaria, nem a menina estranha, nem o miúdo que acaba de me sorrir.

    Nem mesmo... Ele.

    O meu fantasma.

    O que me segue para todo o lado onde vou, que nunca vou conseguir fugir porque ele está aqui dentro, dentro do meu corpo, a tomar conta da minha tristeza e o meu sentimento

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