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O Despertar do Nefilim
O Despertar do Nefilim
O Despertar do Nefilim
E-book515 páginas6 horas

O Despertar do Nefilim

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Sobre este e-book

Perseguido por demónios, o jovem vê-se envolvido num mundo que desconhece. Um padre renegado e uma rapariga em tempos possuída aliam-se a Gonçalo para o proteger e instruir.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de mar. de 2020
ISBN9788835394501
O Despertar do Nefilim

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    O Despertar do Nefilim - David Costa

    David Costa

    O Despertar de Nefilim

    1ª EDIÇÃO

    OUTUBRO 2019

    EDITORA

    CORDEL D’ PRATA

    Avenida Tomás Ribeiro 47, 1ºB

    2790-463 Carnaxide

    www.cordeldeprata.pt

    editora@cordeldeprata.pt

    AUTOR: David Costa

    ISBN IMPRESSO: 978-989-9003-02-6

    DEPÓSITO LEGAL: 458391/19

    REVISÃO: Catarina Gaspar

    DESIGN E PAGINAÇÃO: Mário Ferreira

    © 2020 CORDEL D’ PRATA

    Todos os direitos reservados.

    Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização da editora.

    Para o Afonso e para a Maria.

    PREFÁCIO

    Caro leitor, se está com este livro na mão , quer dizer que, pelo menos para já, escapou ao Apocalipse. Sim, esse mesmo que está a pensar, o Apocalipse onde Lúcifer se ergue do Inferno e semeia o terror na Terra, torturando tudo e todos a seu bel-prazer, sem que Deus mexa um dedo para o impedir.

    O quê? Não ouviu falar do acontecimento mais importante dos últimos séculos? Não ouviu as notícias dos demónios a caminharem entre vocês? Da destruição total do mundo como vocês o conhecem? Nada?!

    Bom… então, pensando bem, talvez não tenha escapado… Se calhar é mais uma daquelas vítimas (e são tantas…) cujo corpo foi arrastado ainda com vida para o fundo do Inferno, e está neste momento inconsciente, com a mente em suspenso, enquanto o corpo é torturado, trucidado e retalhado… Se assim é, tenho pena de si.

    Ah, não! Não pense que é um ato de misericórdia de Satanás e das suas hostes deixá-lo inconsciente enquanto eles se divertem a torturá-lo, eles não sabem o que é misericórdia. Muito provavelmente vai acordar daqui a pouco, com uma dor lancinante a invadir-lhe o corpo todo. Vai ver outros corpos ao seu lado no mesmo estado, vai ouvir gritos de dor e agonia e reparar que tem o corpo mutilado, as tripas de fora, as pernas arrancadas, os braços virados ao contrário…

    Ups! Assustei-o? Então é melhor estar calado e voltar ao que interessa.

    Antes de mais, vou-me apresentar e peço desculpa por não o ter feito antes: o meu nome é Metatron, o escrivão de Deus. Sou um Anjo Serafim, não tão conhecido como os meus irmãos Miguel, Rafael, Gabriel ou até mesmo o degenerado Lúcifer, porque costumo trabalhar em low profile. O meu trabalho é registar tudo o que Deus pede que eu registe, e por vezes lá dou um empurrãozinho para as coisas endireitarem ou ficarem ainda piores. É um dos privilégios que vem com o cargo.

    Foi-me confiada pelo Chefe a tarefa de relatar os acontecimentos que levaram ao último Apocalipse. Sim, porque já houve vários, mas neste Deus decidiu não intervir, e diga-se em abono da verdade, até tem razão. Durante milénios deu-vos oportunidades atrás de oportunidades de fazerem as coisas como deve ser, de emendarem o mal que tinham feito, de se tornarem boas pessoas, mas vocês teimam em ser gananciosos, em serem mesquinhos e depois viram-se para Ele quando a coisa aperta, apelando à sua bondade, a chamar-Lhe Pai... Pois bem, desta vez, não houve ajuda cá da gente…

    Perdoe-me esta pequena divagação. São pequenos desabafos.

    Voltando ao tema, vou relatar a história de Gonçalo Fernandes, um rapaz igual a tantos outros que após uma tragédia foi abraçado pelo lado negro, renunciou à vida que tinha e enveredou por caminhos duvidosos. Mal sabia ele que nas suas veias corria o sangue do nosso irmão, o Arcanjo Miguel, e que os demónios começavam a procurá-lo para usar o seu sangue e abrir o Portal do Inferno, de forma a libertar Lúcifer e todos os demónios, aprisionados durante séculos depois da Batalha dos Nefilins.

    Bom, vou tentar contar tudo, desde o momento em que ele é perseguido por demónios e quase apanhado, passando pela sua salvação às mãos de um herói improvável. Vamos viajar pelas dúvidas que ele sente em relação a quem é, pela vida que vai ter de abdicar, pelos testes que vai ter de passar, alianças que vai ter de formar e, por fim, vamos ver se ele aceita finalmente quem é.

    É que o nosso Pai não se meteu ao barulho nem mandou mais dos meus irmãos para vos safar, mas vocês continuam a ser a sua criação predileta e Ele lá acabou por despertar o poder do rapaz, para que vocês, humanos desagradecidos, pudessem ter alguma hipótese de salvação. Agora imaginem o destino da humanidade dependente do sucesso de um rapaz que a certa altura desejou estar morto.

    Permitam-me a opinião, mas isto tem tudo para dar errado.

    Agora, que comece a aventura, mas como toda a história que se preze, esta deve começar pelo início, pelo dia em que foi concebido o Anticristo…

    PRÓLOGO

    O luxuoso quarto do apartamento estava submerso na penumbra, as luzes apagadas, a única iluminação vinha de inúmeras velas acesas, pousadas na mobília negra. O cheiro a morango misturado com canela proveniente da cera derretida serpenteava pelo ar, da mesma maneira que serpenteavam as sombras desenhadas pelas minúsculas chamas que bailavam ao sabor do vento vindo da janela escancarada, cujas cortinas brancas adejavam livremente.

    Os corpos suados dos dois amantes fundiam-se num só. As pernas dela apertavam-no contra si com força, imprimindo o ritmo com que ele entrava e saia de dentro dela. As unhas cravavam-se nas costas dele como se receasse que ele fugisse, mas ele respondia com movimentos vigorosos de anca, entrando dentro dela, sentindo o seu interior quente e húmido, ignorando a dor infligida na sua carne.

    Os dois arquejavam de prazer. Ela gemia alto, dando largas às sensações únicas que invadiam o seu corpo. As mãos dele amarrotavam os lençóis, a sua boca encontrou o peito dela e os dentes trincaram-lhe o mamilo. Ela gritou, atirando a cabeça para trás, os músculos retesados de prazer, em êxtase.

    Ele sentiu que estava prestes a terminar e olhou-a nos olhos. Os olhares cruzaram-se e ela percebeu. Sorriu, fitando o amante com olhos sôfregos.

    - Sim... - gemeu, como se o autorizasse a terminar. - Sim... - fechou os olhos e cravou-lhe as unhas nas costas com mais força, fazendo sangue.

    Ele aumentou a cadência. A cama gemia, tal como ela, num dueto provocador e sincronizado. Ele investia com rapidez e também gemia, sentindo o clímax próximo. Juntou o tronco ao dela, roçando-o no peito voluptuoso e escorregadio enquanto arfava ao seu ouvido, avivando-lhe mais os sentidos.

    - Sim! - gritou ela mais uma vez, a voz a ecoar no quarto, as unhas a rasgarem-lhe a pele.

    Ele atirou a cabeça para cima, as veias a latejarem na testa e pescoço, a cara rubra... E gritou.

    Ela sentiu o líquido morno dentro de si, o corpo contraiu-se uma última vez antes de relaxar, em perfeita sintonia com o amante.

    Por alguns segundos ficaram imóveis, de olhos fechados, sorrisos no rosto, encaixados um no outro enquanto a respiração acalmava e o coração lhes ribombava no peito, batendo quase em uníssono. As bocas encontraram-se e as línguas bailaram numa dança húmida.

    Ele deixou-se cair para o lado, saindo de cima dela, e ambos ficaram a olhar para o teto.

    Depois olharam-se. A luz bruxuleante iluminava-lhes os corpos transpirados, vincando-lhes cada sulco do corpo. Num gesto de carinho, ele tocou-a na cara e ela sorriu. Sabiam que não estavam destinados a ficar juntos, que aquelas aventuras seriam sempre fugazes.

    - Que desculpa deste hoje? - perguntou ele, fixando os seus olhos castanhos nos verdes dela.

    Ela suspirou...

    - Disse-lhe que uma colega pediu para trocar o turno.

    - Essa desculpa já a deste antes.

    Ela suspirou novamente, um turbilhão de sentimentos a revoltarem-se no peito. Pegou na mão dele, um sorriso triste e nervoso aflorou-lhe o rosto.

    - Eu sei...

    - Deixa-o - pediu ele.

    - Marco...

    - Eu posso tratar-te como uma rainha - ergueu o tronco e apoiou-se no cotovelo, fitando-a. - Eu não consigo viver assim, longe de ti... A imaginar-te na cama com ele...

    Ela desviou os olhos, evitando o olhar quase acusador com que ele a fitava.

    - O Roberto é um homem bom...

    - E eu? Não sou?

    Voltou a olhá-lo. Desta vez foi a sua mão que encontrou a face dele e a acariciou.

    - Tu fazes-me sentir coisas que nunca tinha sentido antes de te conhecer...

    - Então não passo de um divertimento, é isso? - redarguiu ele, mostrando-se ofendido com a insinuação. - É para isso que sirvo? Pensei que me amavas...

    - Não é isso... - pareceu tomar coragem para dizer algo. - Isto... tem de parar.

    - O quê? O que tem de parar?

    - Nós - respondeu ela, os olhos a fitarem o vazio. – Temos de parar com isto, Marco…

    - Isso foi o que disseste na última vez - disse ele, - e na outra antes...

    Ela acusou a insinuação, era verdade. Uma parte dela queria ficar para sempre nos braços daquele homem, mas o marido era o homem com quem ela tinha namorado na faculdade e com quem tinha acabado por casar, não tinha coragem para o deixar.

    - Tu sabes que o teu lugar é ao meu lado - insistiu ele, tentando demovê-la daquela ideia. - Não adianta lutares contra isso.

    - Por favor, Marco, não compliques as coisas.

    - Tu é que as estás a complicar - redarguiu, sisudo, deixando-se cair na cama, os olhos fixos no teto, deixando o quarto no silêncio.

    Ela aguardou que ele dissesse alguma coisa, qualquer coisa, mas apenas obteve silêncio.

    - Tânia, onde vais? - perguntou ele quando sentiu a sua amante a levantar-se da cama.

    - Vou tomar um duche - respondeu ela com voz pesada enquanto apanhava a roupa que estava espalhada pelo quarto. - O meu turno começa daqui a quarenta minutos.

    - Espera...

    Mas ela ignorou-o e seguiu para o quarto de banho, batendo a porta atrás de si quando lá entrou.

    Marco sorriu. Normalmente ia atrás dela e juntava-se-lhe no duche, mas aquele dia era diferente. Sentou-se na cama, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e tirou um cigarro. Acendeu-o com um isqueiro e tirou uma passa, depois expeliu o fumo que se ergueu no ar, serpenteando até desaparecer.

    Levantou-se calmamente e dirigiu-se a um espelho de corpo inteiro que tinha no quarto, sentindo a suave alcatifa vermelha debaixo dos pés. Calculou que andar sobre as nuvens deveria assemelhar-se àquilo. Tirou mais uma passa e por momentos admirou a silhueta que via refletida no espelho. Tinham passado séculos desde que tinha possuído aquele corpo, mas ainda sentia inveja dos prazeres que os humanos tinham, prazeres que lhe eram negados a ele e aos da sua espécie.

    Um vento quente vindo da porta que dava para a varanda relembrou-lhe o que estava ali a fazer. Não estava ali para gozar dos prazeres mundanos, isso era um bónus, a sua missão era outra, e estava prestes a realizá-la.

    Sentou-se aos pés da cama e acendeu a televisão. Estava a dar um programa qualquer, onde uns tertulianos conversavam animadamente ao mesmo tempo que acompanhavam o eclipse da Lua. Marco olhou para as horas no ecrã. Vinte e três horas e quarenta e sete minutos. Estava quase na hora.

    - …achas que sim, Fernanda? – perguntou um dos tertulianos para uma das companheiras de platô.

    - Não sei, Tomás – respondeu a rapariga -, mas há milénios que vaticinam que neste preciso dia ia haver um eclipse, e que é o dia em que vai ser gerado o Anticristo…

    No canto superior esquerdo do ecrã, um pequeno quadrado sobreposto mostrava a lua cheia em tempo real, brilhante sob um céu limpo e estrelado, tornando-se mais pequena a cada segundo que passava, assemelhando-se a uma pequena unha que em breve estaria reduzida a nada.

    - Esperem… - disse o apresentador que conduzia a tertúlia, levando o dedo ao ouvido enquanto recebia informações da régie. - Chegam-nos à redação notícias de desacatos em vários pontos do globo… - continuou o jornalista, - onde várias pessoas apregoam que o fim do mundo está próximo… - os restantes tertulianos pareceram surpreendidos com aquela informação. – Parece que uma onda de histeria tomou conta do planeta onde o eclipse é visível…

    - Estúpidos... - murmurou Marco.

    Levantou-se e a fumar dirigiu-se à varanda. Sentiu as cortinas de seda movidas pelo vento a acariciarem-lhe o corpo nu e o vento quente a envolvê-lo.

    Com o apartamento situado no vigésimo quinto andar, tinha uma vista privilegiada para a cidade, erguendo-se acima da maioria dos prédios. Olhou para baixo. Na estrada, os poucos carros que circulavam pareciam formigas iluminadas. Os candeeiros de luzes alaranjadas iluminavam estradas e passeios, projetando sombras nas paredes dos prédios, mas pouco movimento havia àquela hora.

    Ergueu os olhos para o céu negro e viu a lua cheia a ser coberta pelo misterioso círculo negro que estava prestes a ocultá-la. Ergueu o lábio num sorriso, atirou o cigarro para o vazio, vendo-o a rodopiar enquanto caía e descrevia uma espiral de cinza e fumo, e voltou a entrar no quarto.

    A água do duche estava a correr, não podia perder tempo, o momento era o ideal. Com um passo mais rápido dirigiu-se à cozinha e abriu o frigorífico. A luz interior afastou por momentos a escuridão e o barulho do motor a funcionar quebrou o silêncio.

    O frio que veio de dentro do eletrodoméstico foi bem-vindo, mas fez com que a sua pele se arrepiasse. Pegou num recipiente negro e tirou-o para fora, segurando-o com o máximo cuidado. Fechou a porta do frigorífico e destapou-o. Submergiu o dedo no líquido vermelho e levou-o à boca. Saboreou-o. Estava em perfeitas condições, espesso e adocicado, como o sangue de um recém-nascido devia estar.

    Voltou a tapar o recipiente e dirigiu-se outra vez para o quarto. A água do chuveiro ainda corria o que lhe dava algum tempo, mas não muito.

    Tânia seria perfeita. Durante séculos procurou mulheres que pudessem parir o filho do Anátema, mas até agora não tinha encontrado nenhuma digna dessa honra. Tinha fornicado todo o tipo de mulheres ao longo dos tempos, algumas das quais autênticas abominações que o enojavam, mas não podia recusar as ordens do Mestre. No final, todas elas acabaram por falhar no teste e morreram.

    No entanto, sentia que desta vez tudo seria diferente. Ela era diferente. À sua maneira, gostava de estar com ela, gostava do seu lado de vítima, sempre com aquela mania do não posso, para depois passar para o não me deixes nunca. Divertia-se a deixá-la pensar que ele era uma marioneta nas suas mãos, mas era ele que a tinha manietado este tempo todo. Havia algo de sombrio nela, e isso jogava a seu favor.

    Pousou o recipiente na cómoda e voltou a destapá-lo. O sangue era puro demais. Puro... O simples pensamento naquela palavra enojava-o. Como podia sangue puro dar corpo ao recetáculo do próprio Lúcifer? Abriu uma gaveta da cómoda, pegou numa faca e cortou um pulso. Fechou o punho bem forte de forma a encher as veias do pulso e deixou um fio do seu sangue negro imiscuir-se com o sangue rubro, conspurcando-o. Agora faltava a parte final. Estava tudo a postos.

    Pegou no recipiente e dirigiu-se novamente à varanda. Ao passar deitou um último olhar à televisão que mostrava agora imagens de vários lugares no mundo onde fanáticos anunciavam o fim do mundo, outros que aproveitavam para fazer pilhagens em lojas aproveitando a histeria. O caos parecia estar instalado. Os seus irmãos estavam a fazer bem o trabalho, instigando a esse comportamento, e era bom que assim fosse. O Mestre tinha gasto muita energia para colocar muitos deles cá fora, para os libertar da prisão a que tinham estado confinados durante séculos.

    A Lua estava totalmente coberta pela sombra, invisível aos olhos comuns, mas não aos dele. Marco pegou no recipiente com ambas as mãos e ergueu-o ao céu.

    - Este sangue é para vós, Mestre - disse Marco. - Descei sobre ele a escuridão, para que seja digno de vós.

    Da sombra que cobria a Lua começou a descer em torvelinho uma espiral negra, sugada para o pequeno recipiente. O vento aumentou, soprava com força como que arrastado pela espiral de sombra. Aos poucos a lua ia ficando visível novamente, o eclipse já tinha servido o seu propósito e a pálida bola branca começava novamente a aparecer no céu negro.

    O sangue no recipiente borbulhava, parecendo estar a entrar em ebulição. Marco sorriu, estava na hora. Não podia falhar, a missão que o Mestre lhe tinha dado era importante demais. Se a terminasse com sucesso, estaria ao mesmo nível que os príncipes do Inferno, os tenentes de Satanás, e seria recompensado quando Lúcifer tomasse o mundo.

    Abandonou a varanda e dirigiu-se para a porta do quarto de banho. As chamas das velas mexeram-se violentamente, a crescerem ao mesmo tempo que ele passava com o recipiente, como se venerassem o sangue.

    A água do duche ainda corria. Sabia que era hábito de Tânia demorar muito tempo no duche. Ergueu o canto do lábio ao imaginá-la a tocar-se enquanto pensava nele. Aninhou-se e cuidadosamente despejou o líquido borbulhante junto à porta do compartimento. O sangue pareceu cobrar vida e escorregou por baixo da porta, deslizando pelo chão de azulejo negro como uma serpente vermelha.

    Tânia estava imóvel debaixo do chuveiro. Já tinha o banho tomado, mas gostava de sentir a água quente a cair-lhe pelo corpo abaixo depois de se acabar de lavar. Estranhou o facto de Marco não a ter seguido, como fazia sempre, mas também o achou diferente naquela noite. Sentiu-o mais frio e distante que das outras vezes, preocupado com alguma coisa. Tentaria depois descobrir o porquê.

    O sangue conspurcado deslizou silenciosamente pelo chão negro do quarto de banho, subiu pela parede da banheira, passou-a e imiscuiu-se com a água que redemoinhava e descia ralo abaixo, mas subiu pelas pernas de Tânia. A rapariga deixava a água quente cair-lhe no peito e não sentiu o líquido espesso a subir-lhe ao interior das coxas e a entrar dentro dela, aninhando-se no seu ventre.

    Tânia desligou a água do chuveiro, passou as mãos na cara e desviou a cortina de plástico, estampada em tons de branco e negro. O compartimento estava cheio de vapor. Pegou na toalha e secou-se rapidamente, enrolando-a depois no longo e encaracolado cabelo negro.

    Nua e com água a pingar do corpo, saiu da banheira. Os pés pisaram o macio tapete vermelho. Dirigiu-se ao lavatório e limpou o vapor do espelho. Olhou-se. Pensou no que tinha feito, tal como acontecia todas as vezes que estava com o seu amante. Amava o marido, era um bom homem, trabalhador e com quem queria constituir família, mas Marco... fazia-a sentir-se verdadeiramente mulher. Fazia coisas com ele que seria impensável fazer com o seu marido. Pouco sabia acerca dele, o que fazia, de onde vinha... Mas havia algo nele que a fascinava, que a prendia e a fazia fugir para os braços dele, contrariando muitas vezes a sua vontade. Aquela aura de mistério que o envolvia deixava-a fora de si...

    Sentiu uma picadela na barriga, uma coisa leve, mas incomodativa. Instintivamente levou a mão ao ventre e olhou-o. Não seria nada de mais. Era melhor despachar-se, não podia chegar tarde ao hospital e correr o risco de alguém ligar ao marido para saber onde ela estava.

    Tirou a toalha da cabeça e meneou o cabelo... e sentiu uma nova picadela, agora mais forte. Encolheu-se, sentiu uma nova picadela, mais forte que a anterior. Algo parecia mexer-se dentro dela. Soltou um gemido e agarrou-se dobrada ao lavatório. Sentiu o estômago às voltas. Olhou para a barriga e arregalou os olhos, alarmada. A barriga mexia-se com vontade própria e estava a crescer.

    - Marco! – chamou assustada. - Marco!

    Afastou-se do lavatório. Algo se mexia incessantemente dentro dela, sentia membros a quererem rasgá-la...

    - Marco! - gritou.

    Soltou um grito que ecoou pelo apartamento. A barriga crescia. Sentia-se a rebentar por dentro. Escorregou no chão húmido e caiu de costas no chão. A barriga continuava a mexer e a dor que sentia era lancinante. Arrastou-se até à beira da banheira e tentou levantar-se. Queria gritar, mas apenas gritos abafados lhe saíam da boca. As lágrimas escorriam-lhe rosto abaixo.

    - Marco... – sussurrou, já sem força para gritar.

    O homem entrou calmamente no quarto de banho. Viu a sua amante no chão, encostada à banheira, o terror a apoderar-se dos seus olhos. Via como sofria, como a barriga crescia e se mexia. Sorriu.

    Ela esticou a mão, pedindo auxílio em silêncio, os gritos abafados a saírem-lhe boca fora.

    Ele ignorou o seu pedido. Calmamente, dirigiu-se a um armário e abriu uma gaveta. Tirou um bisturi reluzente e examinou a lâmina. Depois dirigiu-se a Tânia, os olhos estreitos e um sorriso doentio a aflorar-lhe o rosto.

    - Marco... que estás a fa...

    A voz dela já era tão débil que mal se ouvia. A barriga parara de crescer, mas movia-se. Algo lá dentro queria sair. Viam-se mãos e pés a tentarem rasgá-la, distinguia-se uma boca a querer falar... Tânia voltou a esticar a mão, desta vez para afastar o homem de si. Pela primeira vez sentiu medo dele, deixou de se sentir segura ao seu lado, mas estava tão fraca. Ele segurou-lhe a mão sem esforço e atirou-a para o lado. Ajoelhou-se junto a ela e deitou-a no chão enquanto continuava a sorrir.

    - Por favor... não...

    - Shhhh - disse ele, afagando-lhe o cabelo húmido, uma loucura doentia a atravessar-lhe os olhos. - Não sabes a honra para que foste escolhida, meu amor.

    A barriga continuava a mexer, para um lado, para o outro... Ela contorcia-se com as dores, mas estava fraca demais para gritar. O horror que sentia era apenas visível nos olhos marejados de lágrimas.

    Ele acariciou-a no rosto enquanto ela lhe implorava com os olhos que a ajudasse. Sorriu. Colocou a ponta do bisturi abaixo do esterno e espetou-a na carne. Um fio de sangue surgiu e aí ela gritou.

    O choro de um bebé ecoou pelo quarto de banho. O chão à volta do corpo esventrado da Tânia estava rubro, numa poça de sangue.

    Marco levantou-se, levando nos braços um recém-nascido, vermelho, a chorar. O corpo do homem estava cheio de sangue, mas ele sorria. Ao fim de tantos séculos, tinha conseguido.

    Avançou, deixando atrás de si pegadas de sangue. Antes de sair do quarto de banho deitou um último olhar ao corpo que tinha fornicado tantas vezes. Uma pena!, pensou, mas assim tinha de ser...

    - Chegará a hora, príncipe, - disse Marco para o bebé que não parava de chorar - mas ainda é cedo...

    E os olhos de Marco ficaram vermelhos

    PARTE 1

    Fantasmas do passado

    Capítulo 1

    Quinze anos depois

    A madrugada apresentava-se escura e fria, com o céu negro desprovido de estrelas e de lua, apenas um imenso manto negro. Negro como a morte. A zona antiga da cidade parecia ter sido deixada ao esquecimento, como uma cidade fantasma onde apenas os espíritos perdidos vagueavam pelas ruas. Os edifícios antigos sucediam-se uns aos outros, como tumores disformes que se alastravam pelas ruas afora, a maioria deles devolutos e inabitados, autênticos ninhos de ratos, a servir de teto a indigentes e sem-abrigo, com as janelas de vidros partidos, as portas arrombadas e as paredes esburacadas por buracos de balas e pintadas com grafitis sem sentido, fruto de atos de puro vandalismo. Os poucos estabelecimentos comerciais que ali funcionavam, pertença de alguns corajosos que ainda se atreviam a passar por ali parte do dia, fechavam portas mal a noite caía e assemelhavam-se a autênticas fortificações, com portas de ferro e grades a proteger as janelas, tentando permanecer protegidos durante a noite, mas com o destino já traçado.

    Os passeios esburacados eram iluminados com candeeiros de luz amarela, pendurados em postes pretos amassados e com a pintura lascada, a luz a brilhar dentro de bolas de vidro, muitas delas partidas ou fundidas, alastrando sombras para onde se olhasse. Os sacos pretos do lixo amontoavam-se ao lado dos contentores verdes de rodas danificadas e tampas partidas deixando um cheiro nauseabundo alastrar-se pelas ruas enquanto que as paredes dos edifícios ostentavam pinturas sem qualquer significado.

    O silêncio sepulcral era interrompido pelo esporádico miar de um gato, ou o que se adivinhava ser uma luta entre dois felinos por um bocado de comida arrancado a um saco do lixo rasgado, seguido de vidros a partir ou de alguém corajoso o suficiente para colocar a cabeça fora da janela e gritar para afugentar os bichos.

    Por aquela hora não se via vivalma naquela rua, à exceção de uma silhueta feminina que dobrou a esquina e seguia com passo acelerado passeio afora, embrulhada num sobretudo preto e com uma bolsa a pender do braço cuja mão descansava no bolso, como se tivesse pressa de chegar ao destino para sair daquela rua assustadora, onde muito provavelmente tinha chegado por se ter perdido do seu verdadeiro itinerário. O ruído dos tacões a pisarem o passeio entoava nas paredes dos edifícios e quebrava o silêncio da noite.

    A mulher caminhava encolhida, para escapar ao frio, com a gola do sobretudo colocada à frente da cara, deixando apenas os olhos visíveis, incauta, completamente alheia a uma figura que a seguia, com os olhos postos naquela que seria a vítima perfeita num lugar onde nem as autoridades passavam depois do cair da noite. Não eram estranhas as notícias de homicídios e de violações ocorridas naquela rua, mas ninguém ousava levantar um dedo para resolver o problema.

    A mulher deteve-se alarmada junto a um amontoado de sacos do lixo deixados em redor de um poste de luz, assustada quando eles se mexeram aparentemente por ninguém. Deu um pequeno salto para o lado quando um gato branco de orelhas roídas saltou para o passeio com um bocado de peixe na boca. O felino ignorou-a e correu passeio afora com o jantar bem preso entre os dentes até desaparecer nas sombras para se deliciar com o banquete.

    A mulher respirou de alívio e seguiu o seu caminho, mas sentiu que a seguiam ao ouvir passos atrás de si. Sentiu o sangue gelar-lhe nas veias e pensou correr, mas apenas acelerou o passo, e os passos que a seguiam aceleraram igualmente, mantendo-se a uma distância segura.

    Engoliu em seco e continuou, mas desta vez abrandou a marcha, e os passos que seguiam atrás dela abrandaram igualmente.

    Deteve-se junto a um candeeiro para fugir às sombras. A luz amarela ficou intermitente e o zumbido que emitia fazia adivinhar que não faltava muito para também aquela luz fundir, mergulhando ainda mais a rua na escuridão.

    Olhou para trás, mas não viu nada nem ninguém. Sentiu o coração a saltar-lhe no peito e a respiração a acelerar. Olhou para todos os lados e continuou a não ver nada nem ninguém, apenas sombras.

    Acelerou o passo e os passos que a seguiram voltaram logo a seguir, mais rápidos. Ela acelerou e os passos aceleraram, até que começou a correr... e os passos correram atrás de si.

    De súbito dobrou uma esquina, metendo-se por uma viela escura entre dois blocos de apartamentos na tentativa de despistar o seu perseguidor. Um único candeeiro preso a uma das paredes mal deixava ver onde pisava, mergulhando a estreita rua na escuridão quase completa.

    Durante a fuga enfiou um pé num buraco e caiu, largando a bolsa. Soltou um gemido abafado ao embater contra o chão, mas levantou-se rapidamente movida pelo medo e seguiu a corrida sem ligar às palmas das mãos esfoladas e às calças rasgadas nos joelhos.

    Curiosamente, os passos atrás dela pareciam seguir agora mais devagar, como se tivessem desistido de a perseguir, mas ela não ousou parar nem olhar para trás, apesar de sentir como que um fio a puxar-lhe a cabeça para trás para ver se estava realmente segura.

    A corrida dela deteve-se abruptamente e sentiu tudo a desabar à sua volta. Na tentativa de fugir a quem quer que a seguia, meteu-se sem saber por um beco sem saída e à sua frente tinha um muro de três metros de altura, impossível de escalar.

    - Não... - sussurrou a mulher, recuando dois passos, o coração a pular-lhe no peito, o estômago às voltas.

    Sentiu os passos mesmo atrás de si, a ecoarem pelas paredes da viela. Detiveram-se.

    A mulher engoliu em seco, respirou aceleradamente e virou-se com rapidez. Deu de caras com um homem alto, de aspeto repugnante, careca, barba por fazer numa cara suja e estragada pelo sol, visivelmente embriagado, olheiras carregadas sob os olhos brilhantes e um hálito pestilento que ela sentia àquela distância. A pouca luz fornecida pelo candeeiro fazia sobressair as rugas no rosto maltratado do homem. O casaco não era lavado há meses e as calças estavam manchadas de óleo e sabe-se lá mais o quê, talvez sangue...

    O homem sorriu para ela, exibindo uma boca de dentes castanhos e a falta de alguns deles.

    - Por favor... - suplicou a mulher de voz trémula, recuando lentamente perante a passividade do homem que se limitava a observá-la em silêncio, como se saboreasse aquele momento antes de se lançar ao ataque. - Não me faça mal, a bolsa está ali - apontou para o chão. - Leve o que quiser, mas não me magoe...

    O homem fungou, puxou um escarro e cuspiu sonoramente para o chão. Aquele gesto, juntamente com o cheiro a lixo retardado que havia no beco fez a mulher sentir um vómito chegar-lhe à boca, mas tentou ser forte apesar de sentir o estômago revoltado e suores frios a percorrerem-lhe o corpo. Recuou mais até que bateu na parede que bloqueava a saída.

    - Podes deixar que não me vou esquecer da bolsa - disse o homem com voz cava, as palavras a saírem-lhe entarameladas da boca, o vapor quente a erguer-se no ar numa nuvem, - mas primeiro... - sacou de uma navalha de ponta e mola do bolso e carregou no botão. A lâmina apareceu num ápice, refulgindo à fraca luz do candeeiro - vamos divertir-nos um bocadinho.

    Ele avançou de navalha em riste e sorriso no rosto. Como seria fácil submeter uma mulher tão frágil à sua vontade. Tinha todo o tempo do mundo. A bófia não passava por aqueles lados e os gritos das mulheres a serem violadas eram uma constante na noite e já ninguém lhes ligava. Estava como queria. Inspirou enquanto avançava e soltou uma gargalhada.

    - Cheiras bem, minha cabra - disse o homem. - Acho que nunca fodi nenhuma como tu. Normalmente apanho drogadas ou bêbadas, mas hoje é o meu dia de sorte.

    A mulher começou a soluçar. Queria gritar por socorro, mas as palavras morriam-lhe na garganta e tinha medo que ao gritar alarmasse o homem e ele a matasse. Esmagou-se contra a parede, mas o homem estava cada vez mais perto, parecia que já sentia o hálito a vinho bem junto ao seu nariz.

    O homem levou a mão ao casaco dela, na tentativa de o abrir, mas ela afastou a mão dele com brusquidão num instinto de sobrevivência.

    - Deixa-me, seu...

    O homem arregalou os olhos perante a resistência dela e esbofeteou-a. Os cabelos da mulher dançaram e ela cambaleou para o lado, caindo desamparada em cima de um amontoado de sacos do lixo que havia numa esquina do beco. Alguns sacos rasgaram-se e o conteúdo espalhou-se pelo chão, e pela sua roupa, tornando o cheiro que ali havia ainda mais insuportável, mas naquele momento ela apenas queria sair dali com vida, ignorando tudo o resto que se passava à sua volta.

    - Estás a ver, cabra - vociferou o homem. - Até arranjaste uma cama fofinha e tudo - soltou uma gargalhada. - Não te preocupes com o cheiro, hás de ficar habituada.

    Com a navalha segura numa mão, usou a outra para desapertar o cinto e o botão das suas calças. As lágrimas já corriam em cascata pelo rosto da mulher enquanto soluçava, ao adivinhar o destino que lhe estava reservado às mãos daquele homem imundo.

    - Se não estás quieta e caladinha, abro-te mais uns buracos com a minha amiga - disse o homem, visando a navalha.

    Aninhou-se junto à mulher. Ela recuou, enfiando as mãos nos sacos rasgados, sentindo todo o tipo de coisas nojentas e viscosas nas mãos, mas ele já estava sobre ela. Encostou-lhe o fio da navalha à garganta e começou a desapertar-lhe o sobretudo.

    A mulher virou a cara para o lado, as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo. O cheiro fétido do hálito do homem parecia rondá-la para onde quer que virasse a cara. Desejava afundar-se na imundice que a rodeava antes de servir de presa àquele ser imundo.

    - Por favor...

    - Cala-te - ordenou o homem entre dentes, pressionando o fio da navalha contra a garganta da mulher que engoliu em seco.

    Um, dois botões desapertados. A mulher soluçava, queria fugir, mas temia pela vida. O homem bufava de antecipação ao imaginar a violação que levaria a cabo. Muito provavelmente matá-la-ia depois e levaria a bolsa com ele, mas depois iria decidir o que fazer.

    - Se te portares bem, pode ser que gostes - disse o homem no meio de uma gargalhada roufenha.

    Desapertou o último botão do sobretudo dela e afastou-o. Ela continuava de cara virada para o lado, de olhos cerrados com força e a impedir-se de respirar para não sentir o hálito nem o cheiro do homem.

    Ele arreganhou os dentes e rasgou-lhe a blusa branca, deixando-lhe à vista o peito. Arregalou os olhos e de dentes cerrados respirou intensamente. Levou a mão suja e áspera a um seio e apertou-o com avidez.

    - Muito bem... - disse ele.

    Ela continuava de cara virada, a soluçar, as palavras presas na garganta, o corpo retesado na esperança de que algo ou alguém a pudesse salvar. O homem sentia o medo dela e isso excitava-o ainda mais. Era tão fácil e estava ali à sua mercê...

    Ele começou a desapertar-lhe as calças, impacientemente, com a pulsação a acelerar e a salivar-se como um mastim atiçado.

    Ela soluçava, soluçava... Parou de soluçar, e o corpo relaxou.

    Um súbito vento quente soprou pela viela afora, levantando papéis e adejando sacos caídos. O candeeiro tremeluziu e zumbiu, prestes a apagar-se, mas o homem não reparou.

    A mulher ficou por momentos em silêncio enquanto o homem se debatia para lhe desapertar o botão das calças, nitidamente em dificuldades ao fazê-lo.

    - Merda... - vociferou o homem.

    Um ligeiro riso abafado, seguido de uma quase silenciosa gargalhada tinham substituído o choro e o soluçar da mulher. O homem franziu o sobrolho e contraiu o rosto.

    - Estás a rir-te de mim, puta - disse ele. - Olha que eu abro-te outra boca aí em baixo - pressionou ainda mais a lâmina da navalha, fazendo com que escorresse um fio fino de sangue pela garganta abaixo da mulher.

    Ela riu-se, abriu os olhos, encarou o homem sem medo da navalha que lhe cortava a garganta e segurou-lhe o casaco, puxando-o para si, encostando o seu nariz ao dele.

    Os olhos da mulher estavam vermelhos, o rosto sombrio, as veias negras a serpentearem-lhe pelo rosto, as feições angulares, e o medo tinha desaparecido do seu semblante.

    - Então, meu lindo - disse a mulher com uma voz arranhada, completamente diferente da voz assustada que tinha. - Perdeste a tesão?

    - Que caralh...

    A mulher empurrou-o com força e ele voou pelo ar, atravessando a viela para depois embater violentamente na parede do outro lado do beco. Caiu desamparado ao chão, de borco e largou a navalha.

    Ela levantou-se calmamente de cima dos sacos do lixo, sacudiu as mãos, arranjou as roupas e o cabelo e de sorriso macabro no rosto dirigiu-se com passos lentos para o homem caído. Os olhos vermelhos a brilharem no escuro, as veias negras a pulsarem, as sombras a bailarem à sua volta num torvelinho como que instigadas pelo vento que continuava a soprar. O ruído dos tacões ecoava nas paredes do beco, o candeeiro continuava a tremeluzir, e o corte na garganta cicatrizava como que por magia.

    Ouvia-se o homem a gemer e a tentar levantar-se, apoiado nas mãos e joelhos enquanto vomitava o álcool que tinha ingerido.

    - Patético - desdenhou a mulher quando chegou perto dele. - Mas preciso de ti.

    O homem caído tentou chegar à navalha, mas ela pontapeou-a para longe, para depois lhe dar um pontapé na cara, atirando-o novamente contra a parede.

    - Quem és tu, cabra? - perguntou o homem, agora ele assustado, de olhos arregalados ao ver as sombras a moverem-se como serpentes em redor da mulher.

    Tentou rastejar para longe dela, que parecia agora gigante aos seus olhos, com a silhueta recortada pela fraca luz do candeeiro intermitente.

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