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O Despertar do Nefilim - Apocalypse
O Despertar do Nefilim - Apocalypse
O Despertar do Nefilim - Apocalypse
E-book558 páginas7 horas

O Despertar do Nefilim - Apocalypse

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Sobre este e-book

Depois de derrotar o arcanjo Ezequiel e sem pistas do paradeiro da Espada de Miguel, Gonçalo põe de lado os seus princípios e, em desespero, faz um acordo com o demónio Oton, na esperança de conseguir alguma pista acerca do paradeiro da espada que o pode ajudar a impedir o Apocalipse.
Uriel, o novo general do exército celestial, concretiza o seu plano e conduz o exército do Céu numa ofensiva sem precedentes contra o Inferno, mas as suas decisões podem vir a ser fatais.
Entretanto, a reposição da linhagem de Miguel faz com que os portadores dos bocados da espada recuperem os poderes há muito perdidos, e nem todos estão na disposição de abdicar de tanto poder para ajudar o último Nefilim.
Céu, Inferno, Purgatório e Terra. Todos os planos estão envolvidos no destino da Humanidade, mas uma pergunta mantém-se: Onde está Deus?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de mar. de 2023
ISBN9791222087399
O Despertar do Nefilim - Apocalypse

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    O Despertar do Nefilim - Apocalypse - David Costa

    PRÓLOGO

    A noite trouxe consigo o há muito esperado manto negro e frio da morte. O silêncio ensurdecedor percorria os corredores da mansão, entrando em cada quarto, em cada divisão, abafando no esquecimento perpétuo as festas que em tempos foram dadas no majestoso palacete onde centenas de convidados dos mais altos estratos sociais conviviam em bailes ou jantares.

    No exterior, a chuva caía com violência, fustigando o que restava do luxuoso jardim como se fossem tiros. Ao longe, os relâmpagos brilhantes iluminavam as estátuas de mármore que, quais sentinelas imóveis, assistiam de semblante triste à degradação daquela propriedade secular, outrora cheia de vida e votada agora à ruína.

    Num dos quartos ouvia-se por cima da chuva violenta um respirar custoso, forçado, de alguém que a cada momento soltaria o último suspiro. Uma luz ténue ardia na mesa de cabeceira que ladeava a cama de dossel. Os luxos do quarto estavam ocultos pela quase total escuridão e as sombras eram projetadas nas paredes como monstros a cada relâmpago que entrava pelas janelas.

    Cada inspiração que o moribundo dava ameaçava ser a última. O homem estava deitado, de olhos fechados e boca aberta como se suplicasse por mais um pouco de ar. O corpo outrora robusto não era mais que pele sobre os ossos, tapado com o cobertor que lhe transmitia algum calor e conforto antes de receber o inevitável toque frio da morte.

    Outro relâmpago. A tempestade aproximava-se veloz, cavalgando pela planície em direção à propriedade como se a tivesse por único destino. Os alicerces da mansão tremeram com o trovão que caiu pouco distante e o que restava das loiças de porcelana fina tilintaram quando a vibração se propagou como uma bomba. As janelas eram violentadas pela chuva puxada a vento e ameaçavam partir a qualquer momento, mas aguentavam-se estoicamente como o seu dono, tentando fintar o destino, tentando ganhar mais algum tempo.

    Cinco figuras estavam aos pés da cama do moribundo, quietas como estátuas, observando-o em silêncio, aguardando. Mais um relâmpago e as feições foram reveladas por entre sombras. Três homens e duas mulheres, impecavelmente vestidos, os cinco com fatos pretos que caíam como luvas sobre os corpos robustos.

    O homem moribundo abriu os olhos, mas pouco via. As cataratas cobriam-lhe a retina e pouco mais distinguia que vultos disformes. A idade há muito que lhe estava a cobrar a dívida que lhe era devida. Olhou para os cinco que estavam aos pés da cama e nos vultos distorcidos apenas via nitidamente os pontos vermelhos que eram os olhos.

    – Vocês... Vocês... – tossiu convulsivamente, sentindo uma dor lancinante no peito como se o estivessem a atravessar com ferros. Esticou a mão para a mesa de cabeceira, como que pedindo algo, enquanto tapava a boca com a outra mão.

    Um dos cinco aproximou-se da beira da cama com passos lestos e entregou-lhe um lenço já manchado de sangue ressequido. O moribundo pegou-lhe com os dedos finos e colocou-o à frente da boca. Contorceu-se e tossiu com violência, sentindo os pulmões a despedaçarem-se e as lágrimas a assomarem aos olhos quase cegos.

    Os cinco presentes aguardaram. A tosse violenta ainda durou alguns segundos agonizantes para o moribundo.

    Findo o ataque, limpou a boca com o lenço tingido de vermelho e amarrotou-o na mão, escusando com um gesto débil a presença do homem que lho tinha levado.

    Fechou novamente os olhos e respirou profundamente com custo, tentando recuperar, mas sentia o ar a entrar-lhe no corpo e a arranhar-lhe o âmago.

    A chuva caía cada vez com mais violência e a tempestade estava cada vez mais perto, aproximando-se como um exército de dez mil cavaleiros irados. O vento uivava nas frinchas, as árvores e abetos do jardim eram sacudidos com violência e a terra sob a relva que crescia em desalinho transformava-se num autêntico lamaçal.

    Um trovão caiu perto e os vidros tremeram.

    – Vocês serviram-me lealmente durante séculos. – murmurou o moribundo entre arquejos, quase não se ouvindo por cima da chuva. – Juntos alcançámos inúmeras vitórias, e conquistámos a glória. Mas a minha hora chegou.

    Não fosse a sua fraca visão, teria visto os rostos impassíveis dos demónios que o acompanhavam nos momentos finais, ignorando o sentido e o sentimento daquelas palavras.

    – Chegou a altura de vos libertar. – retomou o moribundo. – Vêm aí tempos conturbados e nenhum da vossa espécie estará em segurança. – tossiu mais uma vez e respirou com dificuldade. – As grilhetas que vos unem a mim serão quebradas. Procurem abrigo, mantenham-se escondidos, pois não mais vos posso valer.

    Lentamente, levantou o braço. Aquele simples gesto pareceu consumir-lhe a pouca energia que ainda lhe restava no corpo. Com as mãos trémulas, juntou o dedo médio e o polegar e estalou os dedos.

    A imagem de grilhetas luminosas, invisíveis até àquele momento, formou-se nos pulsos dos cinco presentes e, com um tilintar, quebraram-se, caindo numa chuva de cristais que desapareceram no ar enquanto se dirigiam para o chão.

    Os olhos dos demónios brilharam com mais intensidade e refulgiram na quase escuridão. Sorrisos de satisfação formaram-se nos rostos frios ao mesmo tempo que esfregavam os pulsos, sentindo a liberdade ao fim de muitos séculos.

    – Agora, vão. – sussurrou o moribundo, levando de seguida o lenço tingido de escarlate à boca, enquanto era invadido por mais um violento ataque de tosse.

    Um raio branco rasgou o céu, iluminou a noite e caiu a escassos metros do palacete. Os alicerces tremeram e a chuva batia com mais violência nos vidros das janelas como se quisesse forçar a entrada no quarto e reclamar a vida do moribundo.

    Com os olhos vermelhos, os cinco demónios saíram céleres do quarto, deixando para trás séculos de servidão sob o controlo daquele homem que agora os libertava. Sem cerimónia, bateram a porta atrás de si e, pouco depois, o silêncio foi interrompido pelo bater da porta de entrada. Os demónios esfumaram-se no ar, saboreando a liberdade.

    O jardim outrora luxuoso do palacete era bombardeado pela chuva. Os relâmpagos iluminavam o exterior da mansão, dando-lhe um aspeto fantasmagórico. A água escorria pelos rostos dos querubins esculpidos em mármore, como se fossem lágrimas a anunciar o fim, não lavando o verde musgoso que tomou o lugar do branco imaculado.

    O moribundo tossiu mais uma vez para o lenço com uma dor esmagadora a apertar-lhe o peito. Os ataques de tosse eram momentos tortuosos, mas, em breve, chegariam ao fim. Sentia-o.

    Quando o ataque parou, lágrimas solitárias escorreram-lhe pelos cantos dos olhos e depositaram-se na almofada. A pele sulcada por rugas escondia tempos de glória que pareciam agora distantes e votados ao esquecimento.

    Tanta riqueza, tanto luxo e, no final, acabaria como qualquer humano. Mas, durante muito tempo, aquele homem não tinha sido como qualquer humano.

    Ergueu a cabeça a muito custo. Sabia que não tinha ficado sozinho no quarto.

    Um relâmpago rasgou o céu, dividindo-se em dezenas de raios, desenhando a silhueta de um homem contra a janela. Os olhos vermelhos refletiam-se nos vidros como dois faróis a anunciar a presença no meio do nevoeiro.

    – Podes ir, Belgoton. – disse o moribundo para o demónio que estava estático junto à janela.

    O demónio esfregou os pulsos. Há muitos anos que não estava preso pelas grilhetas do seu amo, mas ainda as sentia.

    A tempestade passava agora por cima da mansão. O barulho da chuva silenciava qualquer outro ruído. O vendaval assobiava nas frinchas e os trovões caíam agora mais perto. Parecia que o telhado ia ruir.

    O demónio afastou-se da janela e, com passos lentos, quase tristes, aproximou-se da cama do moribundo. Parou. Olhou as feições daquela sombra que estava deitada na cama, uma sombra do guerreiro que outrora fora e que ele tinha seguido cegamente.

    – Há muito que nada te prende a mim. Libertei-te há muitos anos para que pudesses seguir o teu caminho. – sussurrou o homem, esboçando um sorriso triste e cansado.

    Mal conseguia manter os olhos abertos. A respiração era mais custosa a cada momento que passava.

    – Eu escolhi ficar, amo. – respondeu o demónio. – Foi uma honra para mim servir-vos, e pretendo fazê-lo até ao fim dos seus dias.

    – Esse momento está perto.

    – Não. – disse prontamente o demónio, com os olhos a brilhar na quase total escuridão. – Não me conformo com a sua vontade de desistir. Ainda há uma solução.

    – Para, Belgoton. – contrapôs o moribundo, cansado demais para se exaltar. – Eu não estou a desistir. Estou a aceitar o meu destino. Ambos sabíamos que este fim era inevitável. Eu sou apenas humano. – disse, com alguma tristeza na voz.

    – Mas podemos encontrar um demónio negociante. Pedir mais uns anos. Ainda há muito a fazer. Sois um dos quatro, o mais poderoso. A vossa missão ainda não terminou.

    – Não. Estou cansado, mereço este descanso, o descanso eterno. A minha missão terminou quando renunciei ao meu amo, quando eu e os restantes o traímos.

    – Sempre podeis…

    – Basta. – pediu, com mais energia que a que parecia capaz de dispensar.

    O moribundo arrastou a mão esquelética pelo lençol. O demónio levou a sua mão até à do seu amo, numa rara demonstração de afeto das criaturas do Inferno. Ambos apertaram a mão um do outro e não proferiram uma única palavra. O quente da mão do demónio contrastava com o gelo que era a mão do moribundo.

    A tempestade manteve-se sobre a mansão como se tentasse destruí-la, mas, ao fim de uma batalha inglória, pareceu desistir de destruir o palacete e seguiu o seu caminho, desistindo, mas não sem antes deixar um rasto de destruição no jardim da mansão, procurando novos lugares onde poderia sair vitoriosa para fustigar. Aos poucos, a chuva amainou e estava agora reduzida a um leve chuvisco que ia tamborilando nos vidros e no telhado.

    – Ao ser libertado do meu serviço, ficaste visível para Lúcifer e para o Inferno. Ele irá dar-te caça, para te castigar como traidor. De todos os que me serviram, és o único que sempre me seguiu lealmente.

    – Ele que venha. – redarguiu o demónio. – Estou preparado para ele. Aprendi com o melhor.

    – Não sejas... estúpido. Deves temer Lúcifer. Ele está de volta, tu sabes disso. Em breve, prestarei contas na sua presença.

    – Eu sei – respondeu o demónio, resignado –, mas...

    – Agora, vai, meu amigo. Vive a tua vida. Mas antes...

    O homem virou a cara e olhou para uma vitrina que estava encostada à parede, quase oculta pela sombra. A peça de mobiliário era alta, com mais de dois metros de altura, e tão estreita que não caberia lá um corpo de lado.

    – Por favor, traz-ma. Quero pegar-lhe uma última vez...

    Belgoton assentiu ao pedido do amo moribundo. Dirigiu-se à vitrina e cuidadosamente abriu-a. Lentamente, levou a mão ao seu interior, quase assustado.

    – Podes tocar-lhe, Belgoton. – disse o homem, entre arquejos. – O poder que tinha eclipsou-se de vez. Não temas.

    Sim, Belgoton podia confiar. Noutros tempos, temera chegar tão perto daquela arma. Pegou-lhe, apertando os dedos com força na haste, sentindo nos dedos as inscrições talhadas na madeira. Cuidadosamente, retirou-a da vitrina e percorreu a haste com os olhos até à ponta, que permanecia afiada e imaculada após tantos séculos. E as batalhas que tinha ganho.

    – Belgoton... – chamou o moribundo, impaciente.

    O demónio aproximou-se da cama e reverentemente colocou a lança ao lado do seu amo que a puxou para si como se fosse uma criança.

    – Belgoton, obrigado. Agora vai, por favor. – pediu o homem. – Deixa-me passar os últimos momentos em paz.

    – Mas...

    – Por favor. – pediu, debilmente.

    O demónio assentiu com um ligeiro aceno de cabeça e, com os olhos quase baços, abandonou o quarto, batendo a porta atrás de si. Estava a experimentar algo que os humanos definiam como saudade. Que sentimento estranho para ele, e nada agradável.

    Belgoton começou a descer lentamente as escadas que levavam à entrada da mansão. Os seus passos lentos e ponderados ecoavam pelas paredes solitárias, revibrando nos quadros antigos, perdendo-se no enorme candelabro que pendia do teto enfeitado agora com uma delicada teia de aranha. Sentia-se incerto acerca do que iria fazer a seguir. Há séculos atrás, pouco depois de escapar do Inferno, foi aprisionado pelo seu amo, mas depressa se afeiçoou àquele humano que era temido pelos demónios. Ao seu lado, conquistou guerras e serviu exércitos poderosos através da História, mas com o passar do tempo, o poder que emanava da lança do seu amo foi-se esbatendo e com ele a invencibilidade que tornava os exércitos que servia vitoriosos.

    Foi naquele dia de maio de mil novecentos e quarenta e cinco, quando o exército Nazi se rendeu, que o seu amo se apercebeu que a lança perdera todo o poder e a capacidade de moralizar qualquer tropa à qual estivesse ao serviço.

    Belgoton levou a mão à maçaneta dourada da porta e olhou uma última vez para trás. Não regressaria ao palacete, nem voltaria a ver o seu amo. Os quadros olhavam o vazio, o candelabro ficaria apagado para sempre, os belos cortinados, agora empoeirados e rasgados, balançavam como fantasmas ao vento.

    Um grito. Um grito ensurdecedor percorreu os corredores silenciosos da mansão. Belgoton largou a maçaneta da porta e os olhos tingiram-se de vermelho-vivo. O grito vinha de cima.

    Subiu as escadas com uma velocidade estonteante, galgando os degraus dois a dois, e correu para o quarto do seu amo. Vislumbrou uma luz clara e forte a escorrer por debaixo da porta e a querer fugir por cada frincha. Os gritos continuavam, como se alguém estivesse a ser alvo da mais cruel tortura.

    Belgoton aproximou-se da porta, mas antes que a conseguisse abrir foi empurrado violentamente para trás por uma força invisível que o atirou contra a parede e o manteve afastado. A luz branca parecia querer fazer a porta explodir em milhares de bocados. O demónio ergueu o braço à frente da cara para proteger os olhos da claridade.

    – Amo! – chamou. – Amo! – Não obteve resposta, apenas mais gritos.

    Belgoton cerrou os dentes e tentou levantar-se, mas a força continuou a empurrá-lo contra a parede. Sentiu a essência a remover-se e revoltou-se com a impotência de nada poder fazer. Temia que Lúcifer tivesse encontrado o seu amo e estivesse a reclamar a sua alma. Sentia tanta ligação àquele homem que estava capaz de enfrentar o próprio Diabo para o defender.

    – Amo!

    Pareceu uma eternidade até a luz começar a desvanecer-se e os gritos começarem a silenciar-se.

    Belgoton deixou de sentir a energia que o empurrava e num ápice avançou sem pensar, abrindo a porta com violência. Olhou para a cama de olhos arregalados, mas não estava lá ninguém. A ideia de que algum demónio tivesse passado as guardas e tivesse levado o amo ainda vivo para o Inferno formou-se de imediato na sua ideia, mas estava enganado. Olhou para a janela e não acreditou no que estava a ver.

    A figura moribunda e decadente em que se tinha transformado o seu amo tinha desaparecido. À janela, desafiando todas as leis naturais, como tinha feito até há décadas, estava ele, o homem que elevava a moral das tropas com a sua lança, que conduzia exércitos à vitória.

    – Amo?

    A tempestade estava agora longe. A parca luz que iluminava o quarto cobria o corpo do homem com sombras, mas conseguia notar-se cada músculo delineado. E na sua mão esquerda segurava a lança que brilhava com luz própria. Olhou para trás, por cima do ombro e sorriu.

    Belgoton caiu sobre um joelho e baixou a cabeça.

    O homem sorriu e virou-se para o seu servo. Avançou para ele, com passos lentos, saboreando novamente a plenitude do seu poder.

    – Levanta-te, Belgoton – pediu.

    O demónio assentiu e levantou-se. Olhou os olhos do amo e reconheceu neles a centelha que o tornara num guerreiro temido, que não conhecia o medo. Sentiu o poder que irradiava da lança.

    – Parece que me enganei e a linhagem do Arcanjo Miguel foi, afinal, reposta. – disse o homem. – A Lança do Destino está de volta.

    A GEMA

    I

    Aquela situação rasava a humilhação. Pedir ajuda a um demónio? Teria de engolir o orgulho e negociar com ele? Os músculos de Gonçalo estavam tensos e, apesar do frio que se fazia sentir, sentia o corpo a ferver. As palmas das mãos estavam húmidas e o estômago revoltava-se com aquele cheiro a enxofre que empestava a noite. O rapaz avançou uns passos e aproximou-se do pentagrama, ficando a escassos centímetros do demónio.

    – Por quem me tomas? Não vou negociar contigo. – arriscou Gonçalo, numa tentativa de escapar daquela situação. – Disseste que nos ajudavas a encontrar a espada. Ajudas ou não?

    – Calma, meu amigo. – pediu Oton, com a calma que lhe era característica.

    – Nós não somos amigos. – redarguiu Gonçalo, de cenho franzido.

    – Muito bem, como queiras. Podemos manter isto a nível profissional, se quiseres. – troçou Oton, abanando a mão, como se não quisesse dar importância ao que Gonçalo disse. – Quer queiras ou não, vamos ter de negociar. Tu é que me chamaste, por isso, se estás aqui para pedir a minha ajuda, suponho que seja porque tens, neste momento, uma mão cheia de nada. Estou certo? – Gonçalo não respondeu. – Acredita, terei todo o gosto em ajudar-te, mas tenho de ter algumas garantias do meu lado. – retorquiu o demónio, mais sério – Entendes?

    Gonçalo fechou os dentes com tanta força que lhe começaram a doer os maxilares. Oton tinha razão. Naquele momento, tinha uma mão cheia de nada e parecia que aquela era a única hipótese de conseguir alguma informação. Não estava certo do caminho que estava a seguir e o seu interior revolvia-se com dúvidas. Estava num beco sem saída, e não tinha ninguém a quem recorrer, mas negociar com um demónio?

    De repente, toda aquela ideia lhe pareceu absurda, nem sabia por que raio se tinha lembrado de pedir ajuda um demónio. Aquela raça era a responsável pelo que se estava a passar no mundo. Sentia que estava a trair a confiança de Gabriel e que todo o seu sacrifício seria em vão se fizesse uma parceria com um demónio.

    Inspirou fundo e relaxou o corpo.

    – Esquece, demónio. Não vou negociar com ninguém da tua laia.

    Virou costas e dirigiu-se para o carro.

    – Sangue de Miguel, que estás a fazer? – perguntou Oton, surpreendido pela atitude de Gonçalo. – Volta aqui, raios! Pensas que chegas a algum lado se não tiveres a minha ajuda? Achas que alguém mais te pode ajudar?

    – Que estás a fazer? – perguntou Sandra, quando Gonçalo chegou ao carro.

    – Não consigo. – respondeu o rapaz, abatido. – Não consigo negociar com um demónio. Deve haver outra maneira. Tem de haver outra maneira.

    Ia entrar no carro, mas Sandra segurou-o pelo braço.

    – Sangue de Miguel, vais arrepender-te disto! – gritou Oton no meio do pentagrama. – Vou…

    – Espera. – retorquiu Sandra, por sua vez, para o demónio. – Cala-te!

    Oton calou-se e ergueu os braços. Simulou que fechava os lábios com uma chave e a guardava no bolso do casaco.

    – Gonçalo, neste momento não temos nada. – redarguiu Sandra. – Achas que me agrada a ideia de pedir ajuda a um demónio? Estes filhos da puta possuíram o meu corpo durante sei lá quanto tempo, e só por sorte não me lembro das atrocidades que me obrigaram a fazer, mas vivemos tempos difíceis e se for preciso criar uma aliança com o inimigo para vencer, que remédio temos?

    Gonçalo ergueu os olhos e cruzou-os com os de Sandra. Dúvidas infinitas cruzavam-lhe o pensamento e já não sabia nem o que estava certo nem o que era errado.

    – O que vão pensar os anjos, Sandra?

    A rapariga franziu o sobrolho e abanou a cabeça.

    – Que se fodam os anjos – vociferou ela, olhando à volta. – Não vejo nenhum aqui para nos ajudar! O único que teve os tomates no sítio teve de cair e morrer, e o que fizeram os outros? Esconderam-se atrás das portas do Céu, fechadas para se defenderem, e esqueceram tudo o resto. Estamos em guerra, Gonçalo.

    Oton pigarreou.

    – Desculpem, mas se não estão interessados na minha ajuda, há mais alguns clientes que estão a ligar e não posso falhar nos negócios. Como vai ser? – perguntou o demónio.

    – Como vai ser, Gonçalo? – perguntou-lhe Sandra. – Vamos continuar nesta caça aos gambuzinos ou vamos recorrer à única ajuda que nos estão a oferecer?

    Gonçalo olhou para trás e encarou Oton que apontava com o indicador direito para o pulso esquerdo em sinal de que se fazia tarde. O rapaz inspirou fundo, engoliu o orgulho e aproximou-se do pentagrama.

    – O que queres para nos ajudares? – perguntou, sem cerimónia. – Diz de uma vez.

    – Nada de especial, Sangue de Miguel. – respondeu Oton, mantendo a postura exageradamente direita. – Lembras-te da conversa que tivemos na pastelaria? – Gonçalo não respondeu. – Creio que sim, senão não estarias aqui. Verdade?

    Gonçalo inspirou fundo. Sabia que tinha de ser paciente e tinha de engolir alguns sapos para conseguir toda a ajuda possível daquele demónio.

    – Não me faças arrepender de ter voltado atrás. – rosnou Gonçalo, entre dentes. – Diz de uma vez o que queres.

    Oton mudou a expressão leviana para uma expressão abatida no rosto desgastado daquele corpo que tinha possuído. As rugas acentuaram-se ainda mais e o olhar parecia agora cansado.

    – Quero paz, Sangue de Miguel. – disse pesadamente Oton. – Quero ver-me livre do chicote de Lúcifer e quero o perdão pela minha escolha ao segui-lo.

    Todas as palavras que poderiam formar-se na boca de Gonçalo ficaram presas na garganta como uma rolha. Trocou olhares com Sandra, que arqueou as sobrancelhas em jeito de incompreensão.

    –Paz? – perguntou Gonçalo.

    – Sim, paz. – respondeu Oton. – Custa muito acreditar nisso? Que nós, demónios, também podemos querer paz e perdão?

    Isso ia contra tudo o que Gonçalo sabia sobre os demónios. Não tinha nem o conhecimento nem a experiência de João, mas achava que os conhecia o suficiente para desconfiar daquelas palavras.

    – Estás a gozar comigo, demónio? Paz e perdão são duas palavras que não existem no vosso vocabulário. Não fazem parte da vossa natureza.

    Oton franziu o sobrolho e um vislumbre de ira raiou-lhe nos olhos. As chamas das velas aumentaram a intensidade e Gonçalo teve de se afastar para evitar o súbito calor que se fez sentir na encruzilhada.

    – Falas da nossa natureza como se soubesse tudo sobre nós, mas esqueces que nós, os demónios, já fomos anjos em tempos?

    Era certo. O ódio que sentia pelos demónios e a vontade de os destruir a todos fez com que se esquecesse da sua origem, mas também era certo que não passavam agora de entidades quebradas que apenas procuravam a condenação da Humanidade, levando-a de encontro à perdição. Gonçalo ia responder o que lhe ia na alma, mas de nada ia servir entrar numa guerra de palavras com um demónio quando tinha sido ele a convocar. Provocá-lo e arriscar que ele desaparecesse ia deitar tudo a perder.

    – Como queiras, Oton, mas continuo a não confiar em ti. Essa patranha de quereres paz, vou esperar para ver.

    Oton acenou afirmativamente com a cabeça, aceitando a natureza desconfiada de Gonçalo. As chamas das velas voltaram a baixar a intensidade e o calor desapareceu novamente, deixando os três rodeados pelo frio da noite.

    – Promete-me, Sangue de Miguel, pela tua alma, que quando conseguires derrotar Lúcifer, vais interceder por mim e pelos demónios que querem reverter a escolha que fizeram. Estou a arriscar toda a minha essência só de estar a falar contigo e a oferecer-te ajuda. Lúcifer está afastado, mas não está morto. Pode estar a ouvir a nossa conversa. Se isto der para o torto, regressar ao Inferno vai ser a minha menor preocupação. Promete.

    E, ainda por cima, preocupa-se com os outros demónios? Essa era nova.

    Gonçalo ponderou. Os olhos fixaram-se em Oton que aguardava no interior do círculo, envolto pelas chamas das velas que bailavam no pavio. Tomaria uma decisão e teria de arcar com as consequências mais tarde. Avançou mais um pouco, nervoso. Os pés quase entraram no pentagrama, mas sentia necessidade de mostrar ao demónio que não o temia nem a ele, nem à sua raça.

    As revelações de Gabriel tinham-no feito desesperar e urgia derrotar as hostes de Lúcifer para equilibrar a batalha entre o Céu e o Inferno e abrir novamente as portas do Céu.

    – Como queiras. – respondeu Gonçalo, com as palavras a arranharem-lhe a garganta. – Tens a minha palavra de como vou interceder. Mas apenas por ti, por mais nenhum demónio.

    Oton sorriu.

    – Aceito.

    – Que nem te passe pela cabeça me traíres, Oton. Nem no Inferno me escapas se me traíres.

    O demónio sorriu e levou a mão ao interior do casaco que vestia. De lá tirou um pergaminho enrolado. Estendeu a mão e entregou-o a Gonçalo.

    – Que é isto? – perguntou o rapaz, com o vapor a sair-lhe boca fora.

    – O contrato do nosso acordo. – respondeu Oton.

    Gonçalo hesitou. Contrato?

    – Pensei que jurar pela minha alma era suficiente. – contrapôs Gonçalo.

    – Bem, sim e não. Tenho de ter garantias de que não vais roer a corda quando não precisares de mim.

    – Por quem me tomas? – respondeu Gonçalo, indignado. – Por um da tua laia?

    Já era mau demais pedir ajuda a um demónio, quanto mais assinar um contrato com ele. Mas, por sua vez, tinha lido que os contratos também obrigavam os demónios a cumprir a sua parte do acordo.

    – É pegar ou largar, Sangue de Miguel. – disse Oton. – Assinas o contrato, ou estás novamente por tua conta.

    Ainda que contrariado, Gonçalo pegou no rolo com violência e foi para junto de Sandra. Desenrolou o rolo quebradiço e, juntamente com a rapariga, aproximou-o das luzes do carro. Começaram a ler com atenção para não lhes escapar nada nas entrelinhas.

    – Que achas? – perguntou Gonçalo.

    Sandra estreitou os olhos e leu o contrato.

    – Parece bastante simples. – disse a rapariga, enquanto analisava o pergaminho. – Não me parece que deixe pontas soltas. – ergueu os olhos e fitou Gonçalo. – Não sei porquê, mas parece que ele está a ser sincero.

    – Esta ideia não me agrada. – resmungou.

    Gonçalo fungou de desdém. Voltou a enrolar o pergaminho e aproximou-se de Oton. Estendeu-lhe o contrato.

    – Temos acordo. – disse o rapaz.

    – Ei, calma aí. – retorquiu o demónio. – Tens de assinar o contrato.

    – Assinar?

    – Negócios, negócios, amigos à parte... Nunca ouviste dizer? – gracejou Oton.

    Gonçalo grunhiu e abriu o rolo, sem tirar os olhos dos olhos jocosos de Oton.

    – Tens uma caneta? Onde queres que assine? – percorreu o contrato com os olhos, à procura de um sítio para assinar.

    – Ah, não, não! A assinatura deve ser com sangue. – respondeu Oton.

    Gonçalo tirou os olhos do contrato e ergueu-os para Oton, que aguardava pacientemente.

    – Estás a brincar comigo, demónio?

    – Bastam duas gotinhas, bem aí em baixo. – apontou.

    Gonçalo pareceu duvidar, mas não tinha nada além daquela ténue esperança. Levou a mão ao interior do casaco e tirou a lâmina que Gabriel lhe deu.

    – Eh lá! – exclamou Oton ao ver a lâmina e ao reconhecer o metal. – Quem te arranjou isso?

    – Um amigo. – respondeu Gonçalo, sem cerimónia. – Um verdadeiro amigo.

    Picou o dedo polegar e espremeu-o, deixando cair duas gotas de sangue no pergaminho. Guardou a lâmina e entregou o contrato a Oton.

    O demónio sorriu e verificou a assinatura de Gonçalo enquanto o pergaminho absorvia o sangue vermelho, tornando-o castanho. As letras brilharam por momentos como se estivessem a pegar fogo.

    – Bom, agora somos sócios. – gracejou.

    – Agora, cumpre a tua parte do acordo, e eu cumprirei a minha.

    Oton enrolou o pergaminho e voltou a colocá-lo no casaco.

    – Muito bem, Sangue de Miguel, fica atento. Em breve, terei novidades para ti. Agora, vou fazer a minha parte. Tenho algumas informações privilegiadas que nos vão indicar o caminho certo.

    – Que informações?

    – Em breve, saberás, Sangue de Miguel. Mantém-te a salvo. Nunca se sabe se algum demónio te quer caçar. Adeus!

    – Mas…

    Oton desapareceu no ar, deixando uma nuvem de enxofre onde tinha estado antes. As chamas das velas apagaram-se e apenas os faróis do carro iluminavam a encruzilhada.

    – Oton! – chamou Gonçalo. – Oton! – voltou a chamar. Otooooooon!

    Não obteve resposta.

    II

    Um grito agonizante ecoou pelas paredes da cripta. Ultimamente, aquele lugar secular, outrora voltado para a religião, assistia a terrores como nunca tinha assistido. Gritos de dor infiltravam-se nas rachadelas, absorvidos para o esquecimento. Um cheiro nauseabundo serpenteava pelo ar à medida que os corpos empilhados a um canto se iam amontoando uns sobre os outros.

    – Por favor – suplicou o homem, entre arquejos. –, eu não sei onde está.

    O assobiar descontraído de uma melodia tomou o lugar do grito, misturando-se com a respiração ofegante do torturado.

    O homem estava preso numa cruz disposta em forma de X, atado de pés e mãos, com inscrições na madeira que o impediam de fugir apesar das tentativas vãs de se soltar.

    Passos lentos circulavam à sua volta. Alguém saboreava aquele momento de tortura como se fosse um manjar.

    – Porque é que me mentes, Ramaguel? - perguntou Oton, entre um sorriso, detendo-se em frente do homem em agonia. – Tu serviste-o durante séculos, assististe à sua queda, e queres convencer-me que não sabes onde está a fonte do poder que lhe foi oferecido?

    Oton ergueu uma mão enluvada onde segurava um osso de demónio ungido com óleo sagrado. Sorriu, com os olhos a refulgir de vermelho.

    – Juro-te, Oton, não sei! – respondeu Ramaguel, contraindo os músculos do corpo nu, antecipando mais tortura.

    Oton encolheu os ombros e continuou a sorrir. Encostou a ponta do osso ao peito volumoso do homem e o contacto do osso fez a carne queimar. Ramaguel gritou enquanto Oton cravava lentamente a ponta na carne. Fumo ergueu-se e o cheiro a carne queimada rodopiou em redor dos dois. Com a ponta metida no interior da carne, Oton foi cortando em direção à barriga. Sangue negro escorreu da ferida e Ramaguel gritou bem alto. A cripta poderia atrair atenções indesejadas, ou não fosse ela construída dezenas de metros abaixo do chão.

    Oton cortou até ao umbigo e parou. Afastou-se e ficou a olhar a ferida aberta, como se admirasse uma obra de arte criada por si. Torceu o nariz.

    Ramaguel deixou pender a cabeça e a respiração era ainda mais ofegante que antes. O corpo estava transformado num emaranhado de cortes, todos eles a derramarem essência negra.

    – Por favor… Oton. – suplicou Ramaguel, sentindo o corpo ferido, atravessado por uma dor lancinante. – Já te disse… Não sei onde ESTÁ! – gritou a última palavra com uma réstia de energia e voltou a deixar pender a cabeça, extenuado.

    A voz de Ramaguel ecoou nas paredes.

    Oton aproximou-se novamente da vítima. Com a mão nua, segurou delicadamente o queixo de Ramaguel e ergueu-lhe a cabeça. Os olhos perderam o vermelho e voltaram a ser negros, quase complacentes, como se tentasse recuperar a confiança dele.

    – Ramaguel, não tiro qualquer tipo de prazer em torturar demónios. – disse, com voz falsamente amigável. – Queres acabar junto dos teus amigos ali? – apontou com o osso para um canto da cripta onde os corpos estavam empilhados, mortos pelo osso ungido. – Devíamos estar unidos, isso sim! O que achas que vai acontecer quando a porta do Inferno se abrir e Lúcifer escapar? Achas que vamos ficar todos em lugares de luxo a ver o mundo a arder? Esquece, meu amigo. Vamos ser espezinhados pelos tenentes e torturados por Lúcifer quando não houver mais humanos para chacinar.

    Ramaguel parou de respirar e ficou estático a olhar para Oton. O olho esquerdo estava inchado e não o conseguia abrir, mas o direito estava muito aberto.

    – Tu... – balbuciou. – Tu queres ajudar o Nefilim? – perguntou.

    Oton riu e colocou o osso em riste perto da boca.

    – Chiu… Esse é o nosso segredo. – disse baixinho, como se estivesse a evitar que alguém ouvisse o que estava a dizer. – Mas sim. Se o Nefilim conseguir reunir os pedaços da espada e conseguir fechar de vez o portal para o Inferno, não poderemos regressar e Lúcifer não vai conseguir sair. É só fazer as contas. Estou a explorar todas as opções, Ramaguel. – respondeu Oton, largando o queixo do demónio torturado. – Quero estar do lado vencedor, seja ele qual for, percebes? De certeza que sentiste o poder que corre agora nas veias do Sangue de Miguel, é impossível não sentir! E o sangue que fecha o portal do Inferno para este mundo também ganhou nova energia e agora ninguém pode entrar ou sair por lá. A única maneira de regressar ao Inferno é através do exorcismo, ou na ponta disto. – ergueu o osso ungido. – De qualquer uma das formas, a essência não vai sair bem tratada.

    Ramaguel seguiu Oton com o único olho que estava aberto enquanto este caminhava pela cripta, com os passos a ecoarem no silêncio.

    – Então, Ramaguel, o que escolhes? Ajudas-me, ou preferes isto? – ergueu o osso cuja ponta ungida reluziu à luz alaranjada das velas que iluminavam a cripta.

    Ramaguel engoliu em seco. Não mentiu a Oton quando disse que não sabia o paradeiro do artefacto, mas não lhe disse que conhecia alguém que soubesse.

    – Estás a mentir, Oton. – disse Ramaguel – O Nefilim nunca ia aceitar a tua ajuda.

    – Aí é que te enganas, meu amigo. – respondeu Oton. – Tu sabes o que o desespero pode fazer. – sorriu.

    Oton levou a mão ao interior do casaco e tirou o contrato. Ergueu-o para que Ramaguel o conseguisse ver.

    – Ele fez um acordo contigo? – perguntou o demónio, incrédulo.

    – O Nefilim pode ser descendente de Miguel, mas continua a ter a insensatez dos humanos dentro dele. Em desespero, procura a ajuda de qualquer um que lha possa dar e lida com as consequências depois. É como quem pede um empréstimo a um banco; primeiro gasta e deita as mãos à cabeça quando tem de começar a pagar. – explicou Oton. – O princípio do negócio é o mesmo, não é verdade?

    Ramaguel estreitou o olho e fitou Oton com desconfiança.

    – O que é que eu ganho com tudo isto, Oton? – perguntou. – Não me parece que eu esteja incluído nesse contrato.

    – Pedi salvo-conduto para os demónios que me ajudassem. – _Não mentiu acerca disso. Pediu, mas Gonçalo não aceitou. Decidiu ocultar essa parte.

    Ramaguel não estava convencido na totalidade, mas ponderou as possibilidades que lhe eram apresentadas: ajudar Oton, ou unir-se aos outros demónios que tinham sido interrogados e jaziam agora numa pilha a um canto da cripta.

    – Não te menti quando disse que não sei do paradeiro da gema. – disse Ramaguel. –, mas há alguém que sabe onde está.

    Oton aproximou-se com passos lentos de Ramaguel. Sorriu. Guardou o contrato no interior do casaco e levou a mão à cara de Ramaguel, num gesto fraterno e carinhoso.

    – Fala, irmão. – pediu o demónio.

    – Há um de nós, um que serviu o Sangavida mais de perto que qualquer outro. Abraxas.

    – Abraxas? – perguntou Oton, mostrando-se surpreso. Afastou-se de Ramaguel. – Há séculos que não se ouve falar de Abraxas, nem se sente a sua presença. Por acaso não me estás a enganar, pois não? – olhou com desconfiança para o outro demónio.

    – Juro que não estou a mentir, Oton. Se alguém sabe do paradeiro da gema, é Abraxas. Não consegues sentir porque ele ainda tem a marca do Sangavida. Está escondido dos radares dos demónios e do próprio Lúcifer.

    – Interessante. – disse Oton, enquanto coçava o queixo. – Diz-me lá onde anda o nosso amigo Abraxas.

    – Primeiro solta-me.

    – Então? Não estás em condição de exigires nada. Mas prometo que te liberto assim que me deres o paradeiro dele, combinado?

    Dissimuladamente, Oton ergueu ligeiramente o osso ungido, em jeito de ameaça. Ramaguel franziu os lábios e expirou. Que tinha a perder?

    III

    Uma parede alta barrou o caminho do homem que corria em fuga, esbaforido na madrugada.

    – Merda! – praguejou ao ver o muro alto e impossível de escalar.

    Sem saber, metera-se num beco sem saída. Ouviu passos atrás de si. Virou-se. A luz do candeeiro iluminava o beco, revelando pinturas sem nexo feitas nas paredes e lixo espalhado pelo chão. De súbito, uma dor agonizante atravessou-lhe o braço direito. Por momentos tinha-se esquecido que tinha sido atingido por algo. Levou a mão ao braço e sentiu o pedaço de metal cravado na carne e

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