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Histórias Estranhas
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E-book285 páginas4 horas

Histórias Estranhas

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Sobre este e-book

Em Horribile Dictu, a incursão de um investigador sobrenatural no horror de uma família destruída pela ânsia de poder de seu patriarca. Em Umbilical um psiquiatra atende um paciente obeso por conta de um distúrbio alimentar pouco usual. Estranhas fortunas recaem sobre um homem que tentou cometer suicídio em Paradiso. O Ovo, Quebrado conta a angústia de uma mulher presa num relacionamento infeliz, que opera uma profunda transformação. A Mancha é uma doença de pele de natureza peculiar que aflige um lixeiro. Um homem raptado tenta refutar as insinuações de seu misterioso sequestrador em Raptor. Em Superprotetor, uma criança solitária encontra um grande amigo para suas brincadeiras. Uma mulher grávida desiludida com a religião como alegoria para a perda da fé, em Apostasia. Dia de Todos os Santos traz um psiquiatra retornando às ruínas do asilo onde foi enfermeiro para encontrá-lo assombrado. Um homem muda-se para uma rua repleta de ocorrências estranhas em Wyrd. Um homem descobre-se capaz de produzir dinheiro do nada no conto Mammon. Em Pinus, um garoto torna-se amigo do monstro do velho armário de seu avô. A coletânea encerra com Cavalos, em que um velho adquire um cavalo de corrida para evitar que seja sacrificado.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de jun. de 2018
Histórias Estranhas

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    Histórias Estranhas - Eduardo Capistrano

    Eduardo Capistrano

    3ª Edição

    Curitiba

    Edição do Autor

    2018

    Capa: Ilustrações do autor.

    Tipografia: "Euphorigenic" de Ray Larabie (http://typodermicfonts.com).

    Catalogação na Publicação (CIP)

    Ficha Catalográfica feita pelo autor

    _______________________________________________________

    C243h

    Capistrano, Eduardo, 1980—

    Histórias Estranhas / Eduardo Capistrano. – 3. ed. – Curitiba: Edição do Autor, 2018.

    200 p. ; 21 cm.

    ISBN 978-85-924917-0-3

    1. Contos brasileiros. I. Título.

    CDD: B869.35

    CDU: 821.134.3(81)-3

    _______________________________________________________

    Índices para Catálogo Sistemático

    1. Contos: Literatura brasileira 869.35

    Horribile Dictu

    A morte persegue mesmo os que fogem.

    — Horácio, Odes, Livro III, 2, 14

    O frio vento noturno assobiava e soprava meus cabelos. Minha pele parecia enrijecer enquanto vislumbrava a visão assombrosa diante de meus olhos. A fumaça de meu cigarro parecia relutar em se dissipar, como a casa decadente que teimava em ficar em pé. Busquei em meus bolsos o papel que me informava sobre o lugar.

    O metal frio do objeto em meus bolsos lembrou-me que não deveria estar lá.

    No papel, escrito em linguagem suave, algum mandachuva que eu nunca encontraria poderia ter assinado minha certidão de óbito. Vinguei-me silenciosamente incinerando suas palavras vazias com o cigarro. Antes de largar o papel, consumido lentamente pelas chamas, balbuciei as últimas palavras em latim da carta: horribile dictu.

    A construção era arcaica e impressionante, suas paredes de longas tábuas de madeira negra impregnadas com um cheiro de velhice, torpeza e morte. As janelas choravam trevas, as cortinas animadas pelos ventos gesticulando como se quisessem que eu entrasse. Iria ter de satisfazê-las.

    A mureta de pedras que circundava o casarão estava completamente desintegrada. Os blocos, um dia lapidados em cubos com arestas orgulhosas, agora se mostravam rombos, com cantos arredondados e rachaduras, formando uma trilha distorcida que levava à porta dupla em arco. Não deixaria de participar de seu jogo, minha anfitriã. Dancei no ar, saltitando sobre os blocos e pousando sobre a pequena passarela em frente à porta, que logo notei estar entreaberta.

    Com um toque leve como o de um amante, empurrei a porta, que desapareceu na escuridão com um gemido. A aparente serenidade das trevas era perturbada apenas pelos raios prateados da lua, que temerárias se projetavam em uma mancha circular ao redor de um vaso de flores sobre uma mesa que ali havia.

    À distância, atrás de mim, ouvi os ventos conversarem em uivos. Entrando ou não, seu fim chega hoje. Minha mão procurava, vacilante, a garrafa de vidro que havia guardado em algum lugar. Por quanto tempo consumi aquele líquido? Era inimigo ou amigo de minha condição terminal? Não importava. Naquele momento, no rótulo, para mim, estava escrito morte. O vidro e o líquido amarelado encontraram o chão antes de meus lábios. Meus pés em couro negro mesclaram-se às sombras do lugar que se oferecia para ser meu túmulo.

    As flores estavam mortas há muito tempo; seu perfume perdido nas eras, suas cores inexistentes ainda mais desbotadas pelo azul frio da lua. Contudo, eram agora minha única luz através do mar de trevas em que voluntariamente havia me lançado. Alcancei as pétalas putrefeitas deitadas sobre a madeira empenada da mesa, que esfarelaram ao mais leve toque. Como uma besta faminta, o sopro gélido da noite consumiu o pó através das janelas.

    As nuvens no horizonte anunciaram, com ruidosos trovões, que uma tempestade se aproximava. Contornei a mesa, ainda banhado pela luz e, antes de chegar à janela, meu peso fragmentou algo sob meus pés. Os cacos eram de vidro, mas não da janela; embaixo da mesa, um porta-retrato, com a face voltada para o chão, recusava-se a mostrar as lembranças que continha.

    A moldura deixou cair os últimos fragmentos do vidro que antes ostentava e revelou uma imagem de felicidade distorcida, que nem por isso deixava de estar deslocada naquele inferno obscuro. O borrão do que parecia uma menina estava à frente daquela que certamente era sua mãe, uma jovem mulher, de cabelos castanhos presos no topo da cabeça, com uma face que exalava vida. A mão direita da dama segurava o que parecia ser outra mão, grotescamente inchada, deformada e enegrecida, mas que era o único indício de seu dono. O resto do homem — ou o que quer que fosse — havia sido rasgado. Parecia-me mais adequado, pois o possuidor daquela mão com certeza não faria justiça à companhia.

    Onde as mãos do peculiar casal se encontravam, pareciam segurar juntos um objeto curioso, esférico e vítreo, tendo o dobro do tamanho da mão da moça. Sua face e sua aparência pareciam indicar seu desagrado ao tocar o artefato. Por sua vez, a mão monstruosa agarrava o globo como se fosse a vida escorrendo por entre os dedos.

    A imagem saiu da moldura para um de meus bolsos, pouco antes de eu ouvir algo se quebrando no quintal. A janela partida não deteve meu acesso às escadas de pedra que, ladeadas por colunas, desciam para a grama cinzenta e quebradiça dos jardins da decrépita mansão.

    Da terra estéril, as árvores que definhavam não conseguiam obter sustento. Contorciam-se como braços monstruosos da terra, suplicando aos céus por ajuda. No meio do espaçoso terreno, elevava-se uma construção que algum dia teve paredes de vidro. A porta da estufa era dupla e estava escancarada. No interior, as plantas haviam crescido sem cuidado, antes de encontrarem a força macabra que pairava sobre todo o lugar. Mas não era apenas negligência e decrepitude que permitiam aquele lugar. O crescimento das plantas havia sido corrompido por algo que as tornou espinhosas e doentias, suas texturas delicadas substituídas por fibras massivas e grosseiras, a vida verdejante aniquilada pela morte cinzenta.

    Meus olhos encontraram, entretanto, um vermelho que resistia. Uma rosa escarlate como nunca havia visto, plenamente desabrochada, na ponta de um caule com horrendos espinhos curvos. Minhas mãos quase alcançavam a maravilha intocada, quando uma voz sussurrada ecoou pelo lugar, assustando os poucos pássaros que ali ainda se escondiam.

    Vejo que apreciou minhas rosas.

    A voz me fez olhar ao redor e perguntar por seu dono, pelo menos três vezes antes que retornasse, daquela vez originando de trás das rosas.

    Veio aqui para roubá-las?

    Eu fixei meu olhar no que pensava ser a origem do som, mas então percebi que a rosa era a última sobrevivente em um emaranhado de espinhos ao redor de algo sobre uma mesa de pedra no centro da estufa. Tentava discernir o que havia ali, mas em um instante meus olhos focalizaram uma silhueta que vinha ao meu encontro, aos poucos adquirindo o contorno de uma mulher. A mulher da foto.

    Sua beleza e vida pareciam ter ficado na foto. Suas roupas, entretanto, eram as mesmas, sujas de terra. Uma de suas mãos estava nas costas, e na outra trazia uma rosa idêntica à do jardim, a qual aproximou da face para inspirar seu odor. Em seguida, seus olhos sem pupilas me encararam.

    Catarina?

    Mamãe...

    Cristina. Você é Cristina, então...

    Ela ficou em silêncio e logo encarou o chão, deslizando levemente para o lado, deixando que a luz da lua iluminasse a mesa de pedra. A rosa deixou sua mão mas nunca a vi chegando ao solo.

    As rosas cresciam sobre um esqueleto vestido exatamente como ela. A mão direita do esqueleto segurava o caule da rosa que persistia viva. Cristina avançou em minha direção com uma tesoura de jardinagem. Já estava sob a mira de meu revólver. Andei para trás disparando todas as balas da arma, mas isso só a fez cair. Alcancei a tesoura, abri suas lâminas o quanto pude e como uma guilhotina, decapitei Cristina. Sangue negro escorreu da ferida, a morte finalmente arrastando sobre o cadáver a decadência que lhe fora negada.

    Saí da estufa amaldiçoada para os jardins. Recebi sobre mim as primeiras gotas da chuva e, de algum lugar no alto da casa, ouvi um urro de sofrimento. Os ventos pareciam querer levar-me, como o cigarro que nem notei quando se foi. Avancei lentamente para as escadas, através da janela, além das flores mortas. Os relâmpagos feriam os demônios internos da casa, iluminando as escadas quebradas.

    Meu caminho tortuoso ascendia por tábuas partidas. Um passo em falso, um estalo seco. Minha vida pendia do corrimão no qual me agarrara, meu corpo flutuando sobre a balaustrada. Uma gargalhada horrenda e monstruosa parecia forçar-me para baixo. Uma tapeçaria próxima salvou-me, que rasgou e foi tragada pelo turbilhão na escuridão que chamava meu nome.

    O corredor forrado por cortinas vermelhas se erguia imponente, uma garganta que terminava na entrada do estômago da fera em que me meti. As portas do quarto principal da casa estavam escancaradas como as da estufa, convidando-me para aceitar seu desafio silencioso e cometer o mesmo erro. Eu o cometi.

    Ao entrar, as portas se fecharam atrás de mim. Imediatamente meu revólver saltou à mão. O quarto imenso abria-se para uma varanda por amplas portas vidraçadas. Os painéis de vidro intacto estavam ordenadamente cobertos por cortinas brancas delicadas, que permitiam a passagem da fantasmagórica luz da lua. Uma risada se iniciou, alta e ensandecida, grossa e inumana. Entre os risos, a voz gutural falou.

    Você invadiu meu lar.

    Senhor Costa?

    A risada e todos os outros ruídos, por mais minúsculos que fossem, imediatamente se calaram ao ouvir o nome. Um relâmpago iluminou o resto do quarto, mas só consegui vislumbrar uma grande cama coberta na extrema direita, e um vulto volumoso à sua frente.

    Esse homem morreu.

    O vulto saiu das sombras com um passo pesado, um dos pés caindo como um defunto sobre o chão. O que quer que fosse aquilo, não era mais humano. Chegava a ter dois metros e meio de altura e a silhueta mostrava um... dois... TRÊS braços...

    Senhor Costa, eu vim para ajudá-lo.

    Com um movimento em minha direção, que mais parecia o bote de uma criatura faminta, a criatura deteve-se curvada com um dos braços apontados para mim, antes de ofegar, soltar um gemido e continuar a falar.

    Eu estou além de qualquer ajuda... qualquer coisa que possa me oferecer... exceto uma. Sim, pode me ajudar em uma coisa...

    Uma das mãos do ser levantou um objeto que reluziu visivelmente. O globo da foto. Avancei em direção à cama e então às janelas, em busca de luz, em busca de ar. Virei-me e vi suas costas cobertas por protuberâncias e pústulas cobertas por um líquido viscoso.

    Senhor Costa...

    A criatura virou-se e lançou-se furiosamente sobre mim, cavalgando sobre o tapete como um animal. As balas de meu revólver o atingiram, fazendo-o guinchar. Aquilo que um dia havia sido um homem capturou-me e atravessou comigo as janelas, fazendo-me cair de costas no chão da varanda de pedra. Ele içou-me pelos pulsos e os pressionou contra uma mureta, sobre um barranco. Dezenas de metros abaixo, as ondas colidiam em espumas brancas contra as rochas.

    Líquidos fétidos espirraram sobre minha face. Agora vislumbrava a face da criatura. O rosto era descarnado, sem pálpebras, lábios ou nariz. As órbitas dos olhos expostos como se eternamente arregalados, um buraco no meio da face, os dentes no sorriso permanente da caveira. A pele tinha pústulas que cresciam e explodiam constantemente. Sentia sobre o meu próprio corpo seu sangue gelado se esvaindo.

    O homem... que você busca... morreu... mas não vai... terminar... assim...

    O monstro regurgitou uma grande quantidade de um fel nauseabundo, que escorreu por nossas faces. Sua mão tentava aproximar dolorosamente o globo de vidro de minha mão direita. O esforço parecia hercúleo, mas a besta caiu de joelhos e depois para trás. O globo se libertou de suas mãos e rolou pelo chão da sacada, parando na borda a milímetros da longa queda. Como o objeto, logo que me libertei das garras da criatura me afastei.

    Testemunhei, horrorizado, que algum dos ferimentos da abominação estavam se fechando. Arrastava-se para a esfera mas, quando chegou próximo dela, a encontrou sob um de meus pés. Olhando para mim com seus olhos grotescos cheios de lágrimas, a criatura levantou três mãos em súplica, uma delas segurando um papel.

    Você veio... para me ajudar... o senhor Costa...

    Olhei o papel. Era a outra parte do retrato. Nele, o rosto de Costa, ainda intacto, sobre a monstruosidade que havia se tornado, a corrupção que aceitara.

    Esse homem morreu, eu disse, empurrando a bola de vidro com o pé.

    Alguns instantes depois, um estrondo irrompeu de onde a esfera caiu. Imediatamente a criatura agonizou e convulsionou, urrando até se derreter em uma poça de líquidos escuros e fétidos, enquanto eu assistia do quarto para o qual voltei.

    Veio a chuva torrencial, limpando as pedras, levando consigo o retrato para o mar.

    Umbilical

    Azedo, doce, amargo, pungente; tudo deve ser provado.

    — Provérbio chinês

    Ele ouvia pela enésima vez aquele maldito barulho de canudo sendo chupado. Como se o líquido entrasse em um de seus ouvidos e passasse para o outro, frenético, por um tubo vazio. Esse mesmo vazio persistia mesmo depois das suas refeições. Terminava de comer e parecia não ter adiantado nada. Mais e mais fome.

    Levantou das duas poltronas que ocupava no corredor estéril do hospital e saiu pela porta de visitantes. Andou devagar pelas ruas, mas odiava a calma, aquela morosidade forçada. Queria correr ligeiro, o vento soprando sua face. Queria também ter cabelos, para sentir o vento neles.

    Chegou às portas da casa, um suspiro cansado e familiar deixando os lábios, enquanto se apalpava em busca do chaveiro. Perde-se fácil nisso tudo, um conhecido havia falado certo dia. Finalmente achou o aro de metal com as chaves, o chaveiro com um prisma plástico imitando cristal. Abriu a porta e passou com dificuldade, girando o corpo.

    Estava em seu mundo: um sofá de encosto alto e assento largo (para outro, talvez, mas não para ele), virado para uma televisão pequena e velha, preta e branca, sobre uma toalhinha de renda cobrindo o tampo redondo de uma mesinha, suportada por uma haste que terminava em quatro pés retorcidos. Ele sempre achou que a mesa lembrava uma taça, uma da qual há muito tempo não bebia.

    Andou pela casa e entrou num estreito corredor. Nas suas paredes, fotografias ocupadas por pessoas roliças, algumas no meio de outras chamadas aberrações, pessoas mutiladas, peludas, monstros, irmãos siameses, ou simplesmente pessoas com aparências além do tolerável.

    A luz do banheiro acendeu-se com um clique e mal penetrou nos vãos preenchidos de fungos entre os azulejos de cor verde-jade. Espremendo-se para passar primeiro pela borda da pia, depois pela da privada, alcançou o pequeno quadrado em que podia ficar sem prender a respiração, logo depois da privada, logo antes do biombo do chuveiro.

    Retirou desajeitadamente a camisa, depois abriu as calças, fazendo-a cair ao chão com pequenos saltinhos. Apoiou-se na parede e alcançou uma meia, depois a outra. Abaixou com os braços sua cueca até onde pôde sobre as coxas e foi roçando com as pernas para fazer a peça juntar-se às calças no chão. Terminou ofegante o exercício, em que se considerava bem treinado.

    Levantou um braço para trás, para dentro de um armário embutido, que não tinha portas desde que era ainda uma criança. Remexeu entre pedaços de balanças quebradas e pegou uma caixa fechada. Manipulou-a com os dedos gordos, arrancou dela uma balança novinha e com ela desaparecendo embaixo de seus braços, entrou na área do chuveiro. Colocou a balança com cuidado no chão e com o mesmo cuidado encostou um pé sobre ela, deixando todo o peso do membro mudar o ponteiro do medidor. Então, com um impulso, subiu com o outro, sem tirar os olhos do ponteiro.

    O aparelho mostrou sua capacidade máxima, dando quase outra volta, para então emitir um barulho de algo metálico se partindo. Com o objeto, quebrou também o homem, que se apoiou na parede, sentiu todo o seu peso e começou a chorar.

    O escritório tinha um quê de anacronismo. As estantes de madeira cobriam quase todas as paredes, e quando não o faziam eram substituídos por molduras contendo glórias antigas. Glórias que não eram do homem que agora as observava.

    Sentado atrás de uma pesada escrivaninha de carvalho, em uma cadeira giratória acolchoada, estava um jovem psiquiatra, essa glória ainda pendurada em sua antiga sala. Terminava de limpar os óculos na camisa, que colocou para enxergar melhor o resto do aposento.

    O ar era pesado ali, viciado pelo estudo, estagnado pelas janelas fechadas. Os livros de medicina nas estantes não eram manuseados há anos. Sempre considerou um péssimo hábito de seu pai, colecionar livros velhos. Comprava tomos antigos e os enfiava nas estantes da biblioteca, até sete anos atrás os maços de cigarro diários cobrarem sua dívida. Apenas um dos empregados de seu pai podia entrar na biblioteca, mas apenas para limpar, nunca para arrumar os livros que ficavam empilhados sobre a escrivaninha. Seu pai ainda achava que os arrumaria.

    No dia anterior, enfim admitiu que não poderia. O câncer havia gargalhado para cada terapia ou tratamento a que o velho se submetera. Seu pai, Antônio Carlos, que exigia ser chamado exatamente assim, mandou chamar o filho, que compartilhava o nome mas não a exigência. Tônio, falou o velho moribundo, entra na biblioteca e arruma meus livros. Deixa eles bem arrumados.

    O pai fez que não lembrava ter ostracizado a escolha profissional do filho ou não falar com ele desde que entrara na faculdade. Tratou ele como se ainda fosse um garoto. Antônio nem iria atender ao pai, mas foi forçado. Naquele dia, pela manhã, o câncer parou de gargalhar.

    E a morte parecia escrever uma lei oculta, uma imposição. Arruma meus livros. Deixa eles bem arrumados. Se fizesse isso, estaria pedindo as desculpas que achava não dever? Estaria vestindo o garoto que já havia crescido? Estaria aceitando o ostracismo, o resmungar de um velho para o tempo que passa?

    O jovem psiquiatra permaneceu sentado na cadeira de seu pai morto, a poeira no ar estagnado sujando seus óculos sem ele notar, secando suas lágrimas antes que caíssem.

    Quem entrava no consultório era recebido por palavras sóbrias pintadas no vidro: Dr. Antônio Carlos Lecchesi Filho – Psiquiatria. Esta vitrine ofertava a sala de espera como um produto. Na posição perfeita de vigilância sobre as poucas cadeiras dispostas em arco, atrás de um balcão ficava Leila. Ela era o que o pai de Antônio chamaria de eficiente, um eufemismo para uma mulher desapaixonada. Sobre os olhos castanhos, usava óculos de aro grosso que poluíam a face como uma máscara, contrastando mais com a palidez da pele do que com a roupa branca. Os cabelos castanhos estavam escondidos em um coque.

    Havia uma pessoa na sala de espera além de Leila, quando o senhor obeso chegou. Obeso era um termo limitado para descrevê-lo, pela educação inerente à palavra. Gordo, pela sua sonoridade grotesca e quase pejorativa, precedida por um extraordinariamente superlativo, começaria a alcançar a figura que empurrou a porta de vidro.

    A recepcionista Leila levantou os olhos atraídos pela perturbação de sua visão periférica e, apesar de reprimir-se imediatamente, não conseguiu desviar os olhos de uma dobra de pele no papo do homem. Ele estava vestindo um conjunto de moletom cinza que Leila mediu em sua cabeça, imaginando que as peças poderiam servir de lençóis, ou talvez cortinas. Em seguida, pensou qual seria o tamanho das meias dele, ou de suas cuecas.

    — Eu tenho hora marcada — falou o senhor, obviamente tentando contornar o embaraço.

    Leila percebeu e olhou diretamente para os papéis que tinha sobre a mesa, mexendo neles sem necessidade, até organizar os pensamentos e alcançar a agenda em que marcava os horários. Sob o dia 15 de março, estava anotado: Paciente Dr. Juscelino 15h.

    — Doutor Juscelino, é isso? — A recepcionista recebeu como resposta uma carta timbrada de um Dr. Juscelino Mares, Endocrinologista, rabiscada quase ilegivelmente.

    Pedindo por um momento com muita polidez, ela levou a carta através da porta fechada à sua esquerda. Quando surgiu, instruiu o gordo a entrar. O psiquiatra aguardava sentado, mas levantou com o esforço do volumoso paciente na porta do seu consultório, mais por espanto do que por qualquer outra coisa. Embasbacado, assistiu enquanto o gordo desvencilhou-se dos batentes e caminhou até ele. Quando estava suficientemente próximo, o doutor apontou a cadeira com a mão. O paciente olhou para a cadeira

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