Folk
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Folk - Lucas Lorran (organização)
PREFÁCIO: Vamos passear no campo?
Alexander Meireles da Silva
Um dos gêneros mais presentes do Cinema na segunda década do século 21, conforme exemplificado nas produções norte-americana A Bruxa (2015), sul-coreana O lamento (2016), indonésia Impetigore (2019) e americana-sueca Midsommar (2019), o Folk Horror traz histórias ambientadas em cidades pequenas, vilarejos ou comunidades isoladas, principalmente no meio rural, nas quais existe um segredo compartilhado pelo grupo ali residente, mas desconhecido de indivíduos externos, que envolve a prática de um culto secreto normalmente marcado por sacrifícios humanos.
Neste ponto se faz necessário olharmos mais de perto cada um dos componentes deste subgênero da literatura de horror. Dentro desta proposta, a parte Folk
do termo ganha duas formas: 1) por meio do folclore, ou seja, das narrativas com significado cultural ligados a um grupo ou povo; e/ou 2) da adoração da Natureza, ou seja, de uma compreensão espiritual de conexão com a natureza. Assim sendo, é comum em obras de Folk Horror termos os seguintes elementos: paganismo e bruxaria, rituais em florestas ou ruinas de templos antigos, presença de líderes religiosos ou ocultistas, seres sobrenaturais e sacrifícios humanos
Ainda focando no elemento Folk
, o Folk Horror trabalha com o medo do ontem, do passado, do antigo, manifestado por meio de costumes e crenças antigas; práticas que, em um primeiro momento, imagina-se que ficaram para trás gradativamente a partir do século 18 tanto pelo contexto iluminista e seu discurso racionalista quanto pelo aumento no ritmo de crescimento das cidades em virtude da Primeira Revolução Industrial. Mas, aí é que está o poder do Folk
. A modernidade não acabou com essas práticas, ela apenas as marginalizou de duas formas: 1) no sentido dessas práticas serem tomadas como verdade em um mundo racionalista onde o Cristianismo está esvaziado; e 2) marginalizado geograficamente também, em lugares distantes da cidade, simbolicamente identificada com a ordem. O resultado é que quando estamos em contato com essas forças, vemos que elas são ainda maiores e mais poderosas que nossas crenças e nossa civilização. Nesta leitura, o Folk Horror relembra que por baixo da tênue camada de civilização que todos nós desenvolvemos com nossa vivência no urbano, nós somos, em essência, animais.
Teria sido a tentativa de melhor compreensão (ou de aceitação) desta faceta da natureza humana a responsável pelo estabelecimento do horror enquanto gênero literário no século 19? Focando agora no segundo elemento do termo Folk Horror
, lembremos que, ao falarmos do horror, é mister distinguirmos o horror enquanto sentimento inerente ao ser humano do horror artístico.
No primeiro caso, tratamos da reação natural, normalmente expresso por meio de agitação, estremecimento, nojo ou repulsa do corpo humano, diante da exposição de algo ou alguém que causa medo exponenciado em quem entra em contato com este elemento. Tem-se aqui o horror como uma resposta imediata de nosso organismo ao que se coloca como uma possível ameaça à integridade física de nosso corpo.
No segundo caso, da mesma forma que o horror enquanto sentimento, o horror artístico também possui raízes literárias antigas. Suas primeiras manifestações podem ser traçadas na Antiguidade clássica em vários relatos do encontro de seres humanos com criaturas sobrenaturais. No primeiro século de nossa era, por exemplo, o grego Apolônio de Tiana descreveu o encontro de Menipo com uma lâmia que, disfarçada na forma de uma bela jovem, desejava devorá-lo. Já no século 2, o escritor grego romanizado Flégon de Trales recontou a história de uma mulher que retornou do túmulo para dormir com um rapaz. Essa utilização de temas e personagens presentes na ficção de horror de hoje continuou se manifestando ao longo da Idade Média e na Era Moderna, como nas peças Tito Andrônico (1594) e Macbeth (1606), ambas do dramaturgo inglês William Shakespeare.
A literatura de horror ganhou impulso no século 18, no contexto de ascensão do romance gótico em O castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole. Destaca-se, neste cenário, a influência sobre o horror da noção do sublime e do prazer encontrado nas emoções e no terror. Como apresentado em Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo (1757), de Edmund Burke, o medo é a emoção mais potente e que produz a resposta emocional capaz de bloquear qualquer outro sentimento, nos colocando em contato com o sublime. Na visão de Jason Colavito, em Knowing fear: science, knowledge and the development of the horror genre (2008), o ensaio de Burke marca a primeira vez em que um gênero literário, o horror, emergiu ligado a uma filosofia, neste caso, a Estética, ou teve um tratado como sua certidão de nascimento, reforçando a íntima relação entre horror e conhecimento.
Dada a menção ao romance inaugurador do gênero gótico é importante esclarecer a dificuldade de entendimento comumente encontrada entre leitores e leitoras quanto aos limites entre o gótico e o horror gótico. De fato, esta dúvida pode ser resolvida com a comparação entre outros dois termos, cujas fronteiras muitas vezes se cruzam, e que também provocam confusão — o terror e o horror. No bem conhecido ensaio Do sobrenatural na literatura (1826), a escritora Ann Radcliffe, um dos principais nomes da literatura gótica na década de 1790, propõe que terror expande a alma, e desperta as faculdades a um grau elevado de vida, ao passo que o horror as contrai, congela e quase as aniquila.
Estabelecendo essa relação com o gótico e o horror gótico, vemos que o gótico busca o terror como efeito, no sentido da construção de uma atmosfera de expansão da alma na forma da ansiedade com reverberações no psicológico do indivíduo, que vive a tensão do encontro com o horror que pode ou não vir a acontecer. Já o horror gótico foca no horror como efeito para provocar a contração da alma do leitor e da leitora, na busca da náusea e do asco.
Observa-se nesta distinção entre o gótico e o horror gótico a forte influência do schauerroman alemão sobre o último, no aspecto de afastamento do sobrenatural e a presença de elementos que viriam a ser correntes no horror literário. Romances como Der Geisterseher (1789), de Friedrich Schiller; Hasper a Spada: Eine Sage aus dem Dreizehnten Jahrhunderte (1792), de Carl Gottlob Cramer; e Das Petermännchen (1793), de Christian Heinrich Spiess traziam sociedades feudais corruptas e narrativas costumeiramente ambientadas na região alemã da Floresta Negra com a presença de tortura, crimes violentos, irrupção do sobrenatural e outras atrocidades que provocavam calafrios (schauer) nos leitores e leitoras. Isso representou uma mudança que afastou o gótico do terror e o aproximou do horror. O público leitor aprovou. Sobre este ponto, como afirma James Watt em Contesting the gothic: fiction, genre and cultural conflict, 1764-1832 (2004), durante a década de 1790 os editores da Inglaterra perceberam que a expressão romance alemão
havia se tornado mais popular que romance gótico
e usaram o primeiro para impulsionar as vendas de obras de terror e de mistério.
Muito da produção literária do horror gótico no século 19 encontrou na publicação escocesa Blackwood’s Edinburgh Magazine, um local de disseminação e estabelecimento do horror como um gênero literário não apenas durante a Era Vitoriana, mas também nas primeiras décadas do século 20. Muitas das histórias utilizavam vários elementos da literatura gótica, como a violência, a insanidade e temas macabros, mas os contos e novelas se baseavam menos no sobrenatural e mais na natureza humana, enfatizando a mudança do gótico para o horror.
Fundada em 1817, a revista acolheu histórias de Sir Walter Scott, James Hogg, e John Galt, além de escritores e escritoras agora desconhecidos. Além disso, ela estabeleceu a ponte entre a ficção gótica do século 18 de Ann Radcliffe e Matthew Lewis — que foi alvo da sátira de Jane Austen em Northanger Abbey (1817) — e os Romances de Sensação
(Sensation Novel) que se tornaram extremamente populares em meados do século 19 com narrativas sobre bigamia, vivissecção, manicômios e esposas aprisionadas. Encontra-se aqui o contexto de nascimento do gênero horror.
Apesar de muitas pessoas lembrarem primeiro dos filmes quando falamos em Folk Horror, é importante destacar que esse subgênero nasceu na Literatura do século 19, justamente no momento de modernização de grandes nações. Neste sentido, temos duas tradições perceptíveis vinculadas a épocas ou eventos históricos: uma na América e outra na Europa.
Nos Estados Unidos, as raízes do Folk Horror se encontram no evento das Bruxas de Salem, nos anos de 1693 e 1694. Aí se encontram elementos do Folk Horror que já mencionamos: bruxaria, rituais em florestas, presença de líderes religiosos, seres sobrenaturais e sacrifícios humanos. Essa foi a base para o seu surgimento na literatura norte-americana da primeira metade do século 19 com O jovem Goodman Brown (1835) e que encontra expressão em contos como Os sonhos na casa da bruxa (1933), de H. P. Lovecraft e o já citado filme A Bruxa.
Na tradição Europeia, no início do século 19, temos exemplos de Folk Horror com, dentre outros contos deles O povo branco (1904) de Arthur Machen e Toque o apito e virei ao seu encontro, rapaz (1904), de M. R. James. Mas, o que chama a atenção na Europa, e que está vinculado ao passado histórico do continente, foi a influência do estudo The Witch-Cult in Western Europe (1921), da antropóloga Margaret Alice Murray, que inclusive H. P. Lovecraft menciona em O chamado de Cthulhu. Na sua investigação, Murray analisa as religiões e crenças pagãs existentes antes do Cristianismo e que se mantiveram presentes após o Cristianismo se tornar hegemônico. Contos como O Festival (1921), de H. P. Lovecraft e romances como The Place Called Dagon (1927) de Herbert Gorman, mostram como The Witch-Cult in Western Europe se mostrou presente na imaginação de escritores do período. Um termo comum nessas histórias de Folk Horror — Old religion
— foi popularizada pelo livro de Margaret Alice Murray. Contudo, ao longo das décadas a obra da Murray foi sendo contestada por diferentes pesquisadores e pesquisadoras por se mostrar muito generalizante e foi duramente criticada nas décadas de 1960 e 1970, o que pode ter renovado o interesse do livro nos anos 60, quando o romance Ritual (1967), de David Pinner foi publicado. E por que estou mencionando esse livro? Porque ele é a base para um dos principais filmes de Folk Horror — O Homem de Palha (1973). Outras obras de Folk Horror a serem lembradas são O Horror em Dunwich (1929), de H. P. Lovecraft, A Loteria (1948) de Shirley Jackson, As possuídas do diabo (1973) de Thomas Tryon, e As Crianças do Milharal (1977) de Stephen King.
Falei de O Homem de Palha, de 1973, mas o Cinema de Folk Horror tem uma história de um século. O precursor é a produção dinamarquesa Häxan — A feitiçaria através dos tempos, feito em 1922. No entanto a Era Dourada do Folk Horror no Cinema aconteceu nas décadas de 1960 e 1970 por conta da influência de um ressurgir de crenças ligadas à Natureza em virtude da Contracultura. Neste sentido, três filmes britânicos são considerados os principais representantes deste subgênero do Horror: Witchfinder General (O Caçador de Bruxas /1968), The Blood on Satan’s Claw (O Estigma de Satanás / 1971). e The Wicker Man (O Homem de Palha / 1973).
Os temas comuns a essas três obras-primas do cinema são a ambientação agrícola, a ênfase no poder mítico e místico da natureza e o lado sinistro de comunidades rurais. No cinema de Folk Horror europeu, os deuses ou outras forças sobrenaturais são mais poderosas que o Deus cristão. Eles entregam resultados mais imediatos em troca de lealdade. Cabe mencionar que ainda que O Caçador