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O Romance de Adultério e o Realismo Trágico: Um Estudo de Madame Bovary e Anna Kariênina
O Romance de Adultério e o Realismo Trágico: Um Estudo de Madame Bovary e Anna Kariênina
O Romance de Adultério e o Realismo Trágico: Um Estudo de Madame Bovary e Anna Kariênina
E-book412 páginas3 horas

O Romance de Adultério e o Realismo Trágico: Um Estudo de Madame Bovary e Anna Kariênina

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Sobre este e-book

O romance de adultério é uma instituição do século XIX. Nele, manifesta-se a forma realista, ápice da narrativa oitocentista, que consagra o romance como gênero literário maior. Madame Bovary e Anna Kariênina são as mais importantes obras com essa temática e é a partir de uma leitura pormenorizada desses dois romances que Rafhael Borgato percorre a história do romance moderno, desde sua ascensão na Inglaterra do século XVIII até a consagração no realismo moderno do século XIX. O realismo formal e a representação da realidade cotidiana são os elementos definidores da modernidade do gênero, a linha contínua que une as pontas da história dessa forma literária e nos permite identificar uma tradição do romance. Mas existe uma diferença básica entre os dois momentos históricos aqui abordados: há uma vocação para o épico no romance inglês do século XVIII que está ausente no realismo moderno do século XIX, trágico por excelência. A análise deste livro se concentra, pois, nessa diferença e nas contradições dialéticas entre a epopeia e o romance e entre o trágico e a natureza da prosa. Trata-se de um ensaio sobre a história do romance moderno e sobre a estruturação desse gênero fundamental para a compreensão da literatura no mundo burguês-capitalista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de ago. de 2021
ISBN9786525004563
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    O Romance de Adultério e o Realismo Trágico - Rafhael Borgato

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA

    PREFÁCIO

    Já Friedrich Schlegel, o mentor intelectual do Primeiro Romantismo Alemão, nos últimos anos do século XVIII, entendia a forma romanesca como uma forma ampla e inclusiva, de caráter híbrido, capaz de conter em si todos os outros gêneros; no romance, prosa e poesia, alegoria e ironia, drama e comédia poderiam coexistir, nos limites fluidos dessa forma progressiva e inacabada por excelência. No famoso fragmento 116 da revista Athenäum, Schlegel consagrará a poesia universal progressiva (da qual o romance moderno e o fragmento são formas paradigmáticas) como aquela que se destina a reunir os gêneros separados da poesia e põe o texto poético em contato com a filosofia e a retórica. A poesia, como a epopeia, é espelho do mundo inteiro, uma imagem da época. Portanto, a poesia romântica é mais do que um gênero; trata-se, por assim dizer, da própria arte poética.

    Aludimos aqui a Schlegel por conta de sua teoria do romance, moderna em sua concepção a ponto de antecipar a linhagem de teóricos como Hegel, Peter Szondi, Georg Lukács e Walter Benjamin, principalmente no que diz respeito à permanência da amplitude épica nas formas do romance e na possibilidade de incorporação de outros gêneros e discursos, narrativos e não narrativos.

    Como afirma já o próprio autor deste livro em sua introdução, pensar a possibilidade do realismo moderno como uma manifestação do trágico envolve certa polêmica. É exatamente dessa polêmica que este livro trata, ao reconhecer a matriz trágica em duas obras canônicas da prosa moderna, Madame Bovary e Anna Kariênina.

    Por meio de um raciocínio teórico meticuloso e articulado, Rafhael Borgato delineia seus pressupostos já nas teorias do romance de matriz hegeliana, estabelecidas sobre a ideia do romance como um desdobramento do gênero épico. O romance moderno, essa epopeia burguesa, nos estágios da configuração desse mundo burguês, teria forjado, segundo G. Lukács, a figura do herói positivo, arquétipo idealizado do indivíduo empreendedor, capaz de se sobrepor ao próprio meio, configurando-o de acordo com sua força interior. É justamente no equilíbrio entre a individualidade assim reafirmada e a hostilidade do mundo exterior que residiria o efeito épico, em última instância, uma caraterística de um universo no qual é possível ainda a ideia de coletividade. No entanto mesmo nos momentos em que ainda é possível encontrar ressonância da epicidade ao longo do processo de configuração da sociedade burguesa, o romance é incapaz de reproduzir a essência da epopeia, dado o caráter prosaico dessa mesma sociedade.

    Essa linha de pensamento, bastante prolífica na história da literatura, engendrou uma matriz crítica que embasou desde a importante resenha do mesmo Friedrich Schlegel a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe, nas últimas décadas do século XVIII, até os ensaios de Walter Benjamin sobre o narrador e a crise do romance, na década de 30 do século XX. Já na primeira, considerada ainda hoje um modelo exemplar de crítica por conta da capacidade do crítico de se afastar de seu objeto, ou de se elevar sobre ele, como disse Schlegel, possibilitando assim um tipo de reflexão irônica extremamente original, as possibilidades épicas do romance realista são avaliadas ex negativo, quando Schlegel por exemplo afirma que o romance trata dos anos de aprendizado de qualquer outra personagem, menos os do personagem que dá título à obra; com isso, o peso da individualização que caberia ao protagonista da narrativa goethiana é relativizado em nome de sua qualidade episódica, que o aproxima das narrativas épicas. Já nos ensaios de Walter Benjamin, A crise do romance e O narrador, são justamente as qualidades do narrador oralizante e épico que possibilitam ao gênero romanesco, solitário e decadente, aproximar-se novamente do caráter coletivo e solidário da narrativa épica. Para Benjamin, especialmente, o retorno ao épico significaria ao mesmo tempo a dissolução e a salvação do romance.

    Este livro, entretanto, ultrapassa a questão das possibilidades épicas da narrativa realista, acompanhando, em sua investigação, o desenvolvimento da prosa moderna até já adiantado o século XIX. Ali, o autor localiza formas que se afastam tanto da representação do herói positivo quanto de um retorno salutar ao épico como tal; em lugar disso, a ficção, em uma atitude desencantada, pretende representar a realidade como ela é. Localizando o exemplo na obra de Flaubert, o autor afirma que ali se dá a sobreposição do mundo prosaico à representatividade épica. Sintoma disso são a inaptidão ou inação dos indivíduos do romance, o estreitamento de horizontes de personagens inertes, que são constrangidos pela instância de uma necessidade objetiva superior a seus desejos individuais.

    É exatamente desse desenvolvimento da prosa realista em direção à atitude desencantada que o autor deste livro extrairá a possibilidade trágica. É nisso que consiste a grande originalidade do texto que se tem em mãos, na identificação do caráter trágico justamente na ausência de epicidade ao longo do desenvolvimento do romance moderno. Pode-se mesmo dizer que o autor defende aqui uma tese, que sustenta uma contradição sobre outra contradição. Pois, ao afirmar que, em Madame Bovary, até mesmo a forma trágica está ausente, Rafhael Borgato constrói, sobre a perene contradição dialética entre épico e romanesco, uma outra, inédita, entre o trágico e o não trágico, entre o trágico e a prosa de ficção. Já houve quem afirmasse que o romance inviabilizaria qualquer possibilidade de existência do elemento trágico. Ora, as páginas que se seguem são justamente o itinerário de resposta a essa impossibilidade.

    Valendo-se da filosofia do trágico como a compreendeu o filosofo idealista Schelling, ou seja, em lugar de um mero conceito normativo, uma ideia filosófica que compreende o processo dialético em torno do conflito entre a necessidade objetiva e a liberdade do sujeito, Borgato inicialmente a opõe ao conceito de Charles Segal, isto é, a ideia do trágico como a manifestação estética de uma tensão social, para logo evidenciar a complementaridade entre ambos os conceitos. Como diz o autor (2021, p. 81): Não considerar, portanto, a adúltera que se suicida como um exemplo de heroína trágica é deixar de lado o fato de que a queda de Emma […] corresponde ao aniquilamento, ainda que incompleto, da própria ordem social. A mesma afirmação caberia, com pequenas alterações de tom, ao segundo romance analisado, Anna Kariênina de Tolstói. Assim, adultério e aniquilamento, suicídio e falha, são todos manifestação da inviabilidade de realização das ambições humanas. Enquanto nas heroínas de Flaubert e Tolstói o suicídio é o ato marcante e final desse aniquilamento, teremos em um outro realista, Eça de Queirós, uma versão menos violenta, mas nem por isso menos trágica, dessa inviabilidade de realização das ambições humanas, quando, no diálogo final de Os Maias entre João da Ega e Carlos Eduardo, o primeiro diz: – Falhamos a vida, menino! – Creio que sim… Mas todo o mundo mais sou menos a falha.

    Prof.ª Dr.ª Wilma Patricia M. D. Maas¹

    APRESENTAÇÃO

    O que significa a expressão contar as grandes histórias? Sim, o sentido literal é bastante óbvio, mas qual a conotação dessa ideia? É ponto pacífico que as histórias, as narrativas, fazem parte da essência do ser humano. Desde histórias infantis que acompanham a criança em seus primeiros passos para compreender o mundo até os pequenos e grandes causos da vida cotidiana, passando pelas lendas populares, os mitos e até mesmo a própria organização e interpretação do que chamamos de vida social.

    As crenças dos povos antigos circularam de forma oral por muito tempo, estruturando a compreensão que eles tinham do mundo. Chamamos de epopeia a forma escrita dessas narrativas que chegaram até nós. A elaboração artística dessas histórias constitui aquilo que pertence ao reino da literatura. Para os gregos, a epopeia homérica (ou seja, a Ilíada e a Odisseia, as duas obras atribuídas a Homero) é uma fonte de compreensão de sua própria formação como povo, um repositório de seus mitos, uma criação modelar que ocupa até mesmo a busca pelo conhecimento dos filósofos pré-socráticos. A epopeia homérica é também a origem do que chamamos de literatura ocidental, pois é uma forma artística que contempla muito do entendimento que construímos sobre nós mesmos.

    Como se vê, a realidade pode muitas vezes se modular a partir do imaginário narrativo, das grandes histórias que compõem nossas vidas. A Eneida, de Virgílio, no espírito da epopeia homérica, é o poema épico da formação de Roma. Na Idade Média, a canção de gesta e as narrativas de cavalaria carregam a essência do código da nobreza que se forma na Europa após a queda do Império Romano do Ocidente. Essas narrativas são em muito responsáveis pela compreensão que temos desses períodos, o que mostra como as grandes histórias fazem parte de nossas vidas não somente como fruição estética de nossa imaginação, mas também como uma parte importante da experiência humana individual e coletiva.

    Há, no entanto, um momento histórico de inflexão, um momento em que essa composição de um imaginário voltado para o mito, para a composição da visão que um povo tem de si próprio, é transformada em uma espécie de retrato da realidade cotidiana, um painel histórico e sociológico de um tempo específico – e, por meio desse painel, busca-se a compreensão do que existe de atemporal na experiência humana. A esta inflexão, a este novo modo de se contar as grandes histórias, damos o nome de romance moderno.

    É justamente esse o tema deste livro: o ponto de inflexão, o modo como se desenvolveu a forma romance em sua manifestação na modernidade, na sociedade burguesa. Percorreremos aqui o caminho do realismo, de sua gênese quase clandestina até alcançar, no século XIX, o status de maior forma literária do Ocidente. A representação do painel da vida burguesa encontra seu ápice no debate sobre a condição da mulher nesse contexto social. Esse é o tema central do ensaio.

    Existe um elemento trágico na composição da personagem feminina, elemento este que se manifesta no adultério – por isso, atribuo o nome genérico de romance de adultério às obras aqui analisadas: Madame Bovary de Gustave Flaubert e Anna Kariênina de Liev Tolstói. Trata-se de dois romances fundamentais no cânone da literatura ocidental, do romance moderno e para a compreensão do que chamamos de literatura realista.

    Sumário

    INTRODUÇÃO 13

    1

    O ROMANCE MODERNO COMO EPOPEIA BURGUESA 19

    1.1 – O romance como épico e Robinson Crusoe, o representante universal 19

    1.2 – O romance inglês do século XVIII e a epopeia burguesa 32

    2

    O IMAGINÁRIO BURGUÊS E O REALISMO MODERNO 39

    2.1 – Stendhal, Balzac e o surgimento do realismo moderno 39

    2.2 – Madame Bovary: o apogeu do realismo moderno 47

    3

    TRAGÉDIA E ROMANCE 63

    3.1 – O romance é trágico? 63

    3.2 – Afinal, o que é o trágico? 68

    4

    A TRAGÉDIA BOVARISTA 79

    4.1 – Madame Bovary: folhetins, adultério e o mundo da ficção 79

    4.2 – O bovarismo e a tragédia na estrutura social 91

    4.3 – Maneiras trágicas de matar uma mulher 118

    5

    FLAUBERT, TOLSTÓI E O TEMA DO ADULTÉRIO FEMININO 139

    5.1 – O julgamento do romance 139

    5.2 – Pontos de contato 144

    6

    PARALELISMO E TRAGÉDIA EM ANNA KARIÊNINA 179

    6.1 – Parte 1 – Encontros fortuitos e o destino 179

    6.2 – Parte 2 – As quedas e a ética 189

    6.3 – Parte 3 – O início e o inevitável fim de tudo 206

    6.4 – Parte 4 – Ethos e pathos 212

    6.5 – Parte 5 – Casamento, a condição feminina e o imaginário masculino 216

    6.6 – Parte 6 – O jogo da sociedade 228

    6.7 – Partes 7 e 8 – A tragédia feminina 232

    EPÍLOGO 253

    Referências 261

    INTRODUÇÃO

    O estudo da literatura realista do século XIX pode soar em nossos dias uma escolha pouco inspirada, aparentemente condenada à repetição do que já foi dito por tantos grandes críticos e teóricos dedicados ao tema. Há sempre, porém, um novo viés a ser considerado dentro dos estudos de determinado recorte temporal e estético da literatura. Neste livro, analiso os aspectos da tragédia nesse fazer artístico chamado por Erich Auerbach de realismo moderno, especialmente em uma manifestação dessa forma literária que podemos chamar de romance de adultério – cujo ápice se encontra nas obras Madame Bovary de Gustave Flaubert e Anna Kariênina de Liev Tolstói.

    A abordagem a partir do aspecto trágico permite leituras aparentemente distintas e talvez inconciliáveis, se levarmos em consideração as diferentes concepções teóricas sobre o tema. De um lado, a filosofia do trágico surgida com o pensamento de Schelling – e a partir desta uma compreensão do trágico como um processo individual, envolvendo a busca pela afirmação da liberdade humana frente à força maior de um elemento objetivo. De outro, a visão do trágico como um modelo literário eminentemente social, explorado pelas análises estruturalistas da Tragédia Grega. No entanto, as duas concepções oferecem leituras complementares, pois o trágico na verdade se manifesta justamente no conflito entre indivíduo e sociedade, tendo como resultado não somente a afirmação da liberdade individual ou um debate dos modelos sociais (por meio da exposição de suas contradições latentes); as duas interpretações do significado da tragédia relacionam-se intrinsecamente, são indissociáveis, especialmente no contexto da literatura realista.

    A leitura do romance como uma manifestação da configuração de mundo trágica tem como pressuposto a visão hegeliana do romance como desdobramento do gênero épico e o posterior desenvolvimento dessa ideia por Georg Lukács em A teoria do romance e O romance como epopeia burguesa. A leitura de Hegel relaciona-se com seu projeto de uma filosofia estética, voltada para a compreensão do que existe de essencial nas formas artísticas e não apenas de seus aspectos formais, como ocorria na poética clássica. A estética está preocupada com o caráter espiritual da arte, não em um sentido religioso, mas, sim, enquanto expressão de determinadas questões inerentes à subjetividade humana. Se o filósofo alemão se atém aos gêneros clássicos até mesmo para formular a concepção de um gênero moderno como o romance, isso se dá justamente porque Hegel encontra uma essência no modo de composição romanesco que busca recuperar aspectos centrais da epopeia. Partindo desse princípio, estabelece as distinções entre epopeia e romance, que são históricas, não apenas no sentido de que os gêneros existem em períodos históricos diferentes, mas também de que condensam em si o imaginário e a ideologia de construções sociais totalmente diferentes entre si. Já Georg Lukács é responsável por levar adiante as ideias estéticas elaboradas por Hegel, especialmente no que concerne à forma romance. Parte do pensamento idealista em sua obra A teoria do romance, na qual faz uma leitura de romances modelares sob a perspectiva da estética hegeliana, contudo, neste ensaio, interessa-me, sobretudo, sua leitura da forma romance empreendida em O romance como epopeia burguesa. Trata-se de um ponto de inflexão da leitura de Lukács, pois seu tratamento da forma romance adquire um aspecto materialista-histórico, que será de maior interesse para o desenvolvimento deste estudo.

    A epopeia burguesa manifesta-se no romance inglês do século XVIII, cujos principais autores são Daniel Defoe, Samuel Richardson e Henry Fielding. O componente épico no romance inglês setecentista se encontra na representação do herói positivo, ou seja, aquele cuja força de ação sobre a realidade externa constitui um arquétipo do indivíduo burguês idealizado, simbolizado principalmente pela capacidade empreendedora das personagens de Defoe e pela rigidez moral das de Richardson. Além disso, em complemento a esse primeiro componente, temos a questão da organização da narrativa: por meio dela, cria-se um todo, a representação de uma realidade unitária cujo centro é justamente o herói positivo, aquele que Coleridge chamou, em sua leitura da obra de Defoe, de representante universal da configuração de mundo burguesa.

    Podemos dizer que o realismo formal foi a maior conquista da prosa inglesa do século XVIII. O termo refere-se à representação da realidade cotidiana, nas esferas pública e privada da vida burguesa, por meio de um uso da linguagem que se aproxime do registro cotidiano da língua. Autores franceses como Stendhal, Balzac e Flaubert são herdeiros desse procedimento, contudo, em suas obras encontramos um trato diferente da realidade. As condições históricas da França pós-revolucionária e pós-napolêonica são o ponto de partida dos romances de Stendhal e Balzac e ambos são os fundadores do realismo moderno justamente por serem os primeiros a enredar a ficção dentro de um contexto histórico imediato que é determinante para o desenvolvimento da narrativa.

    Se o romance inglês setecentista representou a conquista da realidade cotidiana, a narrativa francesa da primeira metade do século XIX adquire o status de relacionar tal realidade ao instante histórico, tornando as dimensões pública e privada indissociáveis. Os heróis de Defoe, Richardson e Fielding se impõem diante dos obstáculos da realidade externa, sua trajetória é a vitória do esforço individual, daí sua característica de heróis positivos. Julien Sorel, por sua vez, se vê envolvido na torrente de acontecimentos ocasionada por forças objetivas superiores à sua vontade individual – trágica, portanto. Apreender o imaginário em torno do gênero é relevante para a compreensão dessa mudança de focalização.

    Em Flaubert encontra-se o apogeu dessa forma de representação realista. Madame Bovary não enreda, como Le Rouge et le noir, um período histórico imediato, transformando-o na questão central para a compreensão dos acontecimentos da narrativa; o romance de Flaubert parece mais atemporal, uma atemporalidade que reside no retrato da pequenez, da mediocridade da vida comezinha exposta nesse conflito provinciano permeado de personagens movidos por automatismos. Se em Stendhal e Balzac a força épica do romance já era bastante reduzida, devido à fragmentação exacerbada, em Flaubert já não se nota qualquer resquício do romance como desdobramento da epopeia. Isso pode ser notado na composição das personagens, indivíduos marcados pela inação. O estreitamento de horizontes das personagens inertes, subjugadas pela necessidade objetiva de uma realidade superior aos seus ímpetos individuais – tão sufocados que chegam a se apagar completamente – simboliza a sobreposição do mundo prosaico à representação épica. Em Madame Bovary, isso ocorre por meio da voz da ideologia corrente, da força social que domina as ações das personagens, até mesmo da protagonista, Emma Bovary.

    Se o épico do romance inglês transformado em drama trágico na obra de Stendhal relaciona-se diretamente ao indivíduo, em Madame Bovary percebemos o florescer da forma em torno do construto social. É a voz da ideologia corrente que fala no romance de Flaubert, por isso é dentro da própria ideologia, do desvelamento de suas contradições por meio da manifestação da própria organização social, que se configura o processo trágico. E, nesse caso, a voz da ideologia faz referência a um elemento específico, tão relevante para a compreensão do pensamento burguês: o lugar social da mulher. Flaubert o representou por meio do conflito motivado pelo adultério, um tema já não muito original em sua época, mas que com ele adquiriu uma nova estatura literária.

    Tolstói retoma o tema flaubertiano do adultério dentro da concepção realista, que é mediada pela tragédia. No entanto, como a literatura russa do século XIX ainda podia ser considerado um ambiente artístico em formação, cuja diferenciação entre forma e conteúdo e fatores estéticos e extraliterários era difusa e, muitas vezes, até inexistente, em sua obra as questões estéticas caminham ao lado do debate ético e moral de seu tempo, tornando impossível a consideração do fator trágico sem que as acaloradas discussões intelectuais da intelligentsia russa oitocentista sejam levadas em conta.

    Se em Madame Bovary o realismo está permeado pelos imaginários que compõem o modo como as personagens lidam com a paralisia do cotidiano provinciano e a voz autoral desvela o tolo e o imaturo da realidade representada, em Anna Kariênina há uma vivacidade incontida, a representação de personagens inicialmente colocados em situações sociais estabelecidas e que, no transcorrer da narrativa, impõem suas vontades individuais e reagem ao modo as ações de outros influem em suas vidas. A dramaticidade está presente em cada instante do romance de Tolstói, no sentido de que a focalização interna das personagens é movida pela ação externa, ação esta muito distante do tom satírico de Madame Bovary. A força trágica é evidente em Anna Kariênina, pois não há resquício do desvelamento do tolo e do imaturo; as personagens de Tolstói possuem vitalidade, são humanizadas, portanto, o desfecho tem um elemento catártico, mais próximo do efeito da Tragédia Grega do que a narrativa objetiva e com voz distanciada do romance de Flaubert. No entanto, apesar dessas diferenças, as duas obras carregam a marca da elaboração da tragédia no romance, caracterizada pela figura da mulher e seu conflito (cego ou consciente, mecânico ou vivaz) com uma sociedade hostil aos seus anseios.

    Este livro percorre, portanto, o caminho da evolução histórica do romance moderno desde a vocação épica até a manifestação do elemento trágico, marca de sua consolidação e de seu apogeu. O tema do adultério e do lugar da mulher é uma representação fundamental da estética realista, pois conjuga em si os diversos fatores da sociedade oitocentista que denotam aspectos da essência do ethos da burguesia. O romance, nesse sentido, caracteriza-se como uma forma de arte de espírito essencialmente analítico dos fatos sociais. É óbvio que a literatura é uma forma de representação, uma formulação do imaginário, e uma obra sempre pode ser lida com autonomia em relação à realidade imediata que a enseja. No entanto a matéria da representação literária vem de um dado tempo e espaço, de uma cultura, de um imaginário específico sobre o que é o mundo e a vida. Estudar o romance moderno, especialmente no apogeu da estética realista, é atentar-se para esse imaginário, para o espírito do tempo, para a compreensão do mundo. E o tema do adultério e do lugar da mulher, mote do qual o Realismo tão bem se apoderou e transformou em potência artística, não é de maneira nenhuma uma expressão datada de um passado remoto, mas sim a representação atemporal de questões sociais e humanas que permeiam nossas vidas desde sempre até os dias de hoje. A partir dele, todo o drama do conflito entre a subjetividade e as imposições objetivas, entre dever e querer, entre a liberdade e suas limitações, enfim, todas as cenas do drama humano universal se descortinam diante de nossos olhos. E, no fim das contas, é justamente do drama humano que trata a tragédia, em qualquer das formas literárias que assuma.

    1

    O ROMANCE MODERNO COMO EPOPEIA BURGUESA

    1.1 – O romance como épico e Robinson Crusoe, o representante universal

    Hegel chamou o romance moderno de epopeia burguesa por julgar que em tal forma artística se manifesta, por meio do trabalho estético, uma tentativa de conciliação entre indivíduo e mundo, entre a poesia da totalidade substancial e espontânea do Mundo Antigo e o prosaísmo da burocrática vida burguesa². Ao indivíduo moderno é vedada a possibilidade de reconstruir a totalidade orgânica representada na epopeia clássica. Os heróis homéricos pertencem a um mundo do qual são parte indissociável – não estão em conflito com sua realidade, deixam-se guiar por ela. Sua ação é regida por deuses que influem diretamente nos rumos dos acontecimentos, seu conflito é contra um mundo diferente do seu. O herói da epopeia clássica desconhece os conflitos internos, a sensação de isolamento do meio social de que faz parte, a angústia do indivíduo cindido. Na verdade, o herói épico sequer pode ser chamado de indivíduo, na acepção moderna do termo, pois não se caracteriza pela cisão entre interior e exterior, eu e mundo, alma e ação, mas pela unidade entre a vida e sua essência. A personagem representada nas páginas do romance moderno, por sua vez, é a imagem do indivíduo solitário, posto em uma realidade que mal compreende e dificilmente aceita. Por isso, o romance se aproxima do épico, segundo Hegel, pois reconstrói a realidade por meio da representação, de forma a lhe atribuir um novo sentido, e busca, com o trabalho estético, a recuperação da totalidade de um mundo fragmentado.

    A fragmentação do mundo burguês deve-se, segundo o filósofo alemão, à racionalidade da organização social, que justifica o desenvolvimento de condições mais avançadas de vida civil e política. O mundo grego da Antiguidade retratado na epopeia homérica, por sua vez, corresponde ao que Hegel chama, em sua Estética, de estado do mundo heroico, no qual […] a vida doméstica e pública não é representada nem sob o aspecto de uma realidade bárbara, nem sob a forma prosaica de uma vida familiar e política solidamente organizada.³ Trata-se, então, de um estágio anterior àquele em que já há uma constituição sólida do Estado constituído por leis, administração, sistema judiciário e poder de polícia. Hegel acredita que o prosaísmo da vida burguesa se caracteriza, justamente, a partir do fortalecimento dessas instituições, que burocratizam as relações humanas, mediadas por órgãos abstratos que afastam a existência da organicidade retratada nos versos homéricos.

    O herói épico é livre e habita um espaço em que pode expressar essa liberdade. Na Ilíada, Agamemnon é apresentado como rei dos reis e é em seu nome que os demais príncipes se lançam à batalha na guerra de Troia. No entanto esse não é um simples ato de submissão; os príncipes seguem seu chefe voluntariamente e, diante de algo que lhes desagrade, podem recuar – basta lembrar que a ação da Ilíada se inicia justamente com Aquiles desistindo de combater após ser ultrajado por Agamemnon por conta da cativa Briseis. O herói do romance moderno, por outro lado, submete-se, involuntariamente, a uma força objetiva maior. Na verdade, não apenas se submete, é subjugado por ela. A ação do indivíduo, nesse caso, constitui-se como um conflito que o opõe à organização social burocrática, segmentada da burguesia. E é nesse conflito que se dá a conciliação, a busca de uma unidade entre o indivíduo e a sociedade de que faz parte e, da mesma forma, a conciliação entre uma sociedade prosaica, racionalizada e tecnicista e uma realidade poética, expressa na representação artística possível dentro dos moldes do individualismo burguês, ou seja, na representação da trajetória do herói que se debate exatamente contra essa sociedade.

    Letizia Zini Antunes afirma que Na visão hegeliana, portanto, o romance é a epopeia burguesa por excelência por ser a expressão da possibilidade da conciliação não mais natural e espontânea como na idade heroica, mas necessária e possível dentro de determinadas condições.⁴ Segundo Antunes, essa conclusão é a limitação que Georg Lukács, no ensaio O romance como epopeia burguesa, encontra na teoria do romance hegeliana. Para o filósofo húngaro, a teoria estética clássica – na qual se insere Hegel – concebe a sociedade burguesa como último estágio de evolução do processo civilizatório e, por isso, pensa o romance como um conciliador do indivíduo cindido, solitário, com o mundo do qual se dissociou. Lukács não discorda de que essa busca da totalidade, da união indivíduo-mundo, seja a principal característica que liga o romance à epopeia homérica, no entanto, ao contrário de Hegel, considera impossível a conciliação.

    O herói do romance moderno pode ser chamado de problemático, uma vez que é um indivíduo isolado do restante do tecido social. Ele é uma ilha no meio de tantas outras partes do continente desfeito, o continente épico que não poderá ser reconstruído. A tentativa de recuperação da plenitude se dá, então, por meio do ato de limitar o mundo: em meio ao caos das ilhas que não se comunicam, o narrador traz organização, relaciona as partes dissociadas com o intuito de lhes atribuir um sentido. Porém esse ato de construir pontes entre as ilhas não terá como resultado a conciliação do herói isolado com o mundo fragmentado; o resultado do trabalho do narrador não é a construção da totalidade necessária e possível dentro das condições impostas pela sociedade burguesa – como queria Hegel. Para Lukács, a força do romance moderno não está na busca de um estado médio de conciliação da dicotomia entre sociedade e indivíduo, mas na

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