O Homem Que Virou Calango
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O Homem Que Virou Calango - Calango De Assis
Imagem da capa: Patrícia Russano Cuyumjiam, postado em flickr (19/10/2013); https://www.flickr.com/photos/patycuyum/10729708365/
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
O HOMEM QUE VIROU CALANGO
O VENDEDOR DE DVD
É MUITA FULERAGE DESSES FUXIQUEIRO DO INTERIOR
É, NUM SEI MERMO VIU
O PROTÉTICO
A OSSATURA SUÍCIDICA
de GODOFREDO SETE DE SETEMBRO
À esposa e filhos e irmãos e pais e amigos e leitores.
Notas Literárias n°01/2020
O homem que virou calango
O tempo na estrada da poesia fez muito bem ao André Maurício Pereira (Calango de Assis).
Já nas primeiras páginas do conto O homem que virou calango
, ele brinca com as metáforas e recortes poéticos, mostrando o linguajar do sertão nordestino e deixando lembrança dos escritos de João Guimarães Rosa. No conto, uma figura folclórica, chamada de Diazepan
, costura o enredo, fazendo papel do louco da cidade, que tira todos do sério. Outro ponto marcante é a descrição do cenário, usando a linguagem coloquial do sertão.
O conto O vendedor de DVD
desenvolve-se no mesmo linguajar do primeiro, mostrando um ser humano que mora em lugar remoto, mas com uma visão de imperícia do desenvolvimento de comunicação.
No terceiro conto, É muita fulerage desses fuxiqueiro do interior
, Tributino das Olivença, prestamista (um verdadeiro supermercado das cidades do interior brasileiro), como bom caixeiro-viajante, tem história para contar - e tome histórias ou estórias?
O quarto conto, É num sei mermo viu
, é uma compilação de histórias (verídicas ou não), contadas de boca a boca.
Continuado a leitura, chegamos ao conto O protético
, cuja narrativa é um pouco distante das demais. Com as gírias e os cacoetes linguísticos da região, é uma história sobretudo engraçada, chegando o autor a usar artifícios de Machado de Assis, quando joga
a dúvida para o leitor. Salustiano e Antônio Protético são escravos dentro das suas visões de vida. É formidável!
Já o conto A ossatura suicídica de Godofredo Sete de Setembro
, escrito na terceira pessoa do singular, vai narrando fatos de uma cidadezinha do interior, buscando, na simplicidade, fatos que passam despercebidos até mesmo aos olhos mais atentos, inclusive de Godofredo.
O livro é encantador, levando o leitor a uma viagem linguística e sentimental por fatos puros do interior de qualquer cidade do sertão brasileiro.
Não é bom ler de um fôlego só. Esse livro deve ser lido como quem toma um bom vinho, devagar, sentindo os textos e as palavras que deslizam nas páginas, deixando a alma captar a essência do verdadeiro povo brasileiro, que se misturou com outros idiomas e costumes.
Ari Lins Pedrosa
26 de agosto de 2020
O HOMEM QUE VIROU CALANGO -
A APÓCRIFA EXISTÊNCIA DE UM
COMEDOR DE CALANGO
Calango de Assis
A noite em silêncio corria solta feito malassombro
pela madrugada a dentro, tal qual jegue desembestado, cerzindo-se por entre os casebres, acobertando o sono do povo do lugar. O povoado de Mulungu é um desses lugares que surgem pela obra e graça de algum desgraçado que, provavelmente, deveria estar fugindo da mulher, da polícia, de si mesmo, das cornadas
que deve ter levado, ou de sua feiura, porque para apear a mula e construir casa ali para morar, naquele lugar, no meio do nada, no oco do mundo, só quem tem algo a esconder ou foge de alguém. Uma pessoa assim só deve ter tido desgosto na vida, creio. Porque a única coisa que tem ali são uns pés véio de mandacaru, uns matim sequim, uns matão secão, uns calanguim, uns preás e uma reca de gente feia, meu Deus. Até parece que nasceram de uma cagada. É um desadoro de gente feia. Ah, tem também o diacho de uma terra seca e dura que faz dente até em enxadeco. Em suma, só vá para lá se tiver negócio ou parente. Fora isso, não vá. É quente. É poeirenta. A água é de açude, barrenta e salobra, e pense num lugar para ter gente feia. É um povo amarelo desbotado, parece que estão cheios de lombriga. É muita gente feia, valha-me Deus. Acho, até, que ali, é o cagadô do diabo.
Ouvia-se, em meio ao negrume da noite, apenas o som do vento que soprava leve, dos morcegos que trissavam sobrevoando os telhados em busca de comida e a cantilena infernal dos grilos. Isto em dias normais, porque hoje algo novo perturba o ambiente, incomodando o sono alheio.
— Vixe Maria. — Grunhiu com os olhos remelentos uma mulher aparentando uns trinta e poucos anos. Era gorda da cintura para cima e fina nas pernas. Lembrava, muito, uma gia. — Que cantilena é essa home de deus, a essa hora da noite? — Perguntou sacolejando o marido que roncava ao lado.
— Vixe Maria. Oxe, mulé, tu tá doida? Tá azoretada das cachola? Tava no meio de uma peleja arretada, armado até os dentes, brigando com cinco caboco ao mermo tempo. Tá ven’o. Tá ven’o como é. Cabra-macho é assim — engrossando a voz. — Até no sonho ele é macho. Mas vamu lá, diga quem mexeu cum tu meu docinho de mamão, minha jaquinha mole, que’u vou torá-lo no meio feito palito de fóscuro.
Do lado de fora: — araruta, araruta. Tu é corno e tua mulé é puta.
— Viiixe Mariiia! Que cachorrada é essa!? Que cantilena safada é essa? Vou mandá esse mamulengo prá baixa da égua, agoooora, home. Vô estripá o desgraçado, ou melhó, vô tirá os bofe dele pelo cagadô. Vô só espiá quem é o fi d’uma égua. Me espere aqui viu, meu docinho de leite, que eu volto já, já. Aliás, eu acho que já sei quem é o espanta boiada. — Levantando-se aborrecido pela interrupção do sono saiu do quarto praguejando contra o amaldiçoado e sua mãe. — Proque esse destrambelhado não vai cantá pra jumenta da mãe dele? Esse fi de uma desqualificada. Onde já se viu acordá as pessoa desse jeito.
Do lado de fora: — araruta, araruta. Tu é corno e tua mulé é puta.
Abriu a porta com raiva, pôs a cabeça para fora e gritou: — fi-de-ra-pa-ri-ga. Corno é teu pai, aquele chupão. Aquele... aquele corrompido. E puta é tua mãe, aquela...aquela dadora de xoxota. Aquela...alugada. Fi d’uma égua miserave. Seu gira-pataca fulero. Vai com essa cantilena pra baixa da égua que lá é o teu lugá, corno fulero — gritou observando o negrume vazio.
A resposta foi o coaxar de um sapo-cururu a beira da porta que de chofre levou um chute no bucho e se mijou todo. De resto, o silêncio como resposta. Nada ao derredor. Não viu uma alma vivente. Percorreu o olhar pela escuridão da noite e não distinguiu nenhum vulto, nenhum movimento. Fechou a porta atrás de si bufando pelas narinas e soltando praga feito um louco contra o despirocado que acordou a si e sua mulher, àquela hora da madrugada.
— Vige! Oxeee! Tenha carma, home — redarguiu a mulher. Deve de sê o fi de Lenora, aquele ababosado que tem nome de remédio. Como é mermo o nome dele? Dia...Diazepan. É isso. Ele já é doido mermo. Deixa pra lá. Deita aí e drome meu lampiãozinho. — Disse isso dengosamente abarcando o companheiro pela cintura gorda e alisando seu peito cabeludo.
— Viiixe. Lá vem tu. Eu sei das tua intenção mulé. Que fogo da gota é esse. Qué trepá todo dia. Depois dessa aporrinhação eu não alevanto esse pau pra rapariga ninhuma. E digo mais, qualquer dia passo fogo nesse bofe de sapo. Já alevanto de cravinote na mão espaiando porva pra tudo que é lado. Aí, eu quero vê esse fi de uma jumenta cantá: araruta, araruta tu é corno e tua mulé é puta — falseando a voz numa tentativa de parodiar o cantador desconhecido. Puta é tua mãe, calango alejado, fi d’uma besta quadrada. — Gritou direcionando a voz na direção da porta para quem quer que estivesse do outro lado, ouvisse. — Esse farinha azeda tá queren’o dizê o quê? Que minha mulé é gaieira, é? — Falou sem se aperceber do que indagara.
— Viiixe Maria. Oxe! Craro que não. — A mulher interrompeu as lucubrações do companheiro quase que instantaneamente como a temer alguma indagação sobre suas andanças ao fim da tarde até a pitombeira que fica depois da curva da cacimba, do lado de lá da pedra oca, na beira do Riacho do Urubu onde ouviam-se risos e mugidos sabidamente impróprios para a fauna que habita e frequenta aquele lugar. — Deve de sê pro causa da mulé de Jão de Carminha, Deusdete, nossa vizinha. Aquela, sim, é que é