Efeitos do Amor
De Helena Klein
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Sobre este e-book
Em Efeitos do amor verá que há, pelo menos, quatro partes envolvidas. A autora narra a jornada de Bruna em busca do amor: o próprio abalado pela sociedade machista e preconceituosa, o da filha pela culpa materna e o romântico que, quando já vem carregado das experiências prévias, é difícil abrir espaço para o novo.
Abordando a complexidade da mente, a autora usa seus
estudos psicanalíticos para tecer o conflito entre a fantasia e idealização com a realidade que não corresponde as expectativas, mas nem por isso devem ser evitadas.
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Efeitos do Amor - Helena Klein
Capítulo um
Osso a osso, fio a fio de cabelo, a Mulher Selvagem vem voltando. Através de sonhos noturnos, de acontecimentos mal compreendidos e parcialmente esquecidos, a Mulher Selvagem vem chegando. Ela volta através das histórias.
(Clarissa Pinkolas Estés)
Bruna está em transformação. Chegou em um ponto da vida que não quer mais ser levada conforme a maré. Quer ser dona de si. Cansou da imagem que vê no espelho, cansou de ser quem é. Ou melhor, cansou de uma parte daquilo. Cansou de ser a melhor amiga, a tia legal e a esposa posta como santa, que definiu em sua cabeça como a Senhora Bege.
A Senhora Bege é aquela mulher correta. A casa é capa de revista, passa horas arrumando e limpando. A mesa é farta, porque capricha para agradar a todos. É enérgica, porque é preciso disciplina e educação da criança, que deve se comportar adequadamente, em todos os momentos. As definições devem ser apropriadas e adequadas à ocasião. Não fala palavrão, nem eleva o tom da voz.
A casa opera como um relógio. O café da manhã é servido até certo horário, as demais refeições seguem o mesmo padrão. Ela sai sempre na mesma hora e retorna pontualmente. O percurso é padrão porque deve ser o mais curto de distância e tempo. Uma executora exemplar; eficiência é seu segundo nome. Se quiser que algo seja feito, Bruna faz.
As instruções são sempre claras e precisas. A criança tem seus horários estipulados para estudar, fazer tarefas e até o momento do brincar. Tudo é coordenado e monitorado. A brincadeira deve acontecer de forma ordeira e correta.
Senhora bege é implacável; essa mulher já nasceu assim, uma desmancha prazeres, uma coercitiva ordinária. E ela fica lá, dentro da cabeça de Bruna, assumindo o controle sobre tudo. Acredita que, assim, mantém a mulher a salvo dos riscos do mundo todo – externos e internos. Vive sempre em prontidão.
Bebida alcoólica, não pode. A Senhora Bege já a advertiu sobre os riscos de entorpecer os sentidos; na verdade, esperta e precisa, ela sabe bem que bebidas recreativas e outras substâncias anulam o seu poder. Leu sobre isso em diversas revistas ao longo da vida. Até na escola as crianças falam sobre isso.
Houve alguns episódios na vida de Bruna, em que bebeu demais e anulou a presença dela, sempre com desfechos um tanto quanto desastrosos. Ou, se não, um completo desastre, daqueles arrependimentos que se carrega para vida. Culpa e vergonha foram associadas ao fato. De modo geral, Bruna vê na Senhora Bege uma aliada para evitar esse tipo de situação.
Só que o domínio dessa autoritária controladora está excessivo. Tudo que é demais leva-nos a um ponto de ruptura. Bruna já não se reconhece e, quando se olha no espelho, vê a Senhora Bege.
Aflita e gritando em sua mente como chegou até ali, Bruna está olhando o corpo todo, nua e irreconhecível para si. Os cabelos molhados, ralos e com fios brancos. Quando esses fios chegaram? – questiona-se. E quem escolheu este corte de cabelo? As rugas... O rosto parece um pergaminho, na testa deve estar impresso todo o velho testamento, com os Dez Mandamentos acima dos lábios. Uma cor bolorenta e a flacidez contornam a moldura.
O pescoço parece pele de galinha. Os ombros, caídos, nem são um problema. Reparou nos seios, a gravidade foi um tanto cruel com eles; isso abala muito, mesmo sempre tão bem resguardados em sutiãs de sustentação e fechados.
Assusta-se quando nota a boia em volta do abdômen; quem colocou aquilo ali!? Não uma, mas duas. As coxas roliças e com aparência esponjosa. Não se lembra da última vez em que usou uma saia. Ah, lembra-se, sim, e recorda também de usar uma bermuda íntima, para não assar a parte interna, e que era adequada, e a saia na altura dos joelhos.
Com muito pesar, nota as varizes e veias que tem na parte de trás das pernas, o inchaço de tornozelos e pés. Olha os chinelos e rapidamente pensa na sapateira. Muitos sapatos baixos, rasteiras e de tecido maleável. Quando foi a última vez que usou um salto alto? Uma bota?
Caminha até a cama e veste o pijama, sua roupa favorita.
Olha uma calça dobrada na cadeira para o dia seguinte, vai lá e lê a etiqueta. Os lábios tremem, vê a balança e pensa em se pesar. Não, à noite, não subirá naquele objeto. Quem sabe se algo aconteça durante o sono e tudo mude. Pode ser. Eu vou pensar forte e desejar muito e, amanhã, tudo estará diferente – Bruna diz para si, segurando um choramingo.
A Senhora Bege ri. Bruna, Bruna, tão ingênua. Vem, vamos para a cozinha pegar aquela barra de chocolate e assistir nosso seriado. Esquecer disso tudo. A tia vai cuidar de ti, esse mal-estar já vai passar, logo, logo. Bruna, como uma criança ferida, ouve e segue, mantendo a carcereira no controle de sua vida.
Na cozinha, Bruna opera sem autonomia, apenas seguindo as ordens. Lá no fundo de sua mente, começa o motim. Cansou de ser quem é; a partir de amanhã, dará início a um processo, pois a liberdade só está além dos muros que ela própria construiu.
Capítulo dois
São as escolhas e não a sorte que determinam
o seu destino.
(Jean Nidetch)
Muitos dias passaram, o sol se levantou e se deitou, até Bruna começar uma mudança em sua vida. Sem muito alarde, para ninguém suspeitar, nada sai do habitual. Ela ingressa em um programa de reeducação alimentar, fundado em 1963, que tem como uma das propagandas mais difundidas: Nada é proibido.
Emagreça com o novo programa, mais especializado e flexível, diz o site. Feito especialmente para você. Até um quilo por mês. O melhor, poderia ser feito via celular, não precisaria ir semanalmente a uma nutricionista, ver a reprovação nos olhos de outra pessoa, quando a balança não for para o lado certo. Já chega a Senhora Bege, que sempre torce contra.
— De novo, Bruna. Essa ideia de emagrecer… Você é assim mesmo, minha filha. Aceita isso. Fica até mais fácil a vida, sabia? Não começa a sonhar, menina.
Fecha os olhos e respira fundo. No celular, começa a instalar o aplicativo e o preenchimento do perfil. Tudo muito simples, intuitivo e indolor. Tudo, não, quase tudo. Precisa do peso atual. Traz à mente a balança no chão do quarto. Para que isso, gente? Fala baixinho: Não dá para só começar e daqui há uns 20 anos a gente se pesa?
.
— Vai lá ver o tamanho o desafio. Vai doer.
Bruna passa a chave na porta do quarto. Não quer ter que correr o risco de testemunha. Tira a roupa. Sobe na balança e vê três dígitos. Desce e sobe novamente. Faz contas mentais e é interrompida por essa mulherzinha desagradável.
— Eu disse que ia doer... Olha esse número. E, besta que é, acha que consegue voltar atrás? Vai dar conta? Querida, nós já passamos por essa lengalenga outras vezes.
— Desta vez é diferente. Eu vou fazer até conseguir, nem que leve mil anos. É ridículo, eu tenho duas de mim em mim. Dá para acreditar... E não estou falando de você, Senhora Bege, estou falando de Bruna mais Bruna.
A mulher não chora, não se faz pequena, magoada ou traída, apesar de achar que