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Libertarianismo & Anarcocapitalismo: sob a óptica da Ciência
Libertarianismo & Anarcocapitalismo: sob a óptica da Ciência
Libertarianismo & Anarcocapitalismo: sob a óptica da Ciência
E-book985 páginas11 horas

Libertarianismo & Anarcocapitalismo: sob a óptica da Ciência

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Sobre este e-book

Este pequeno Tratado aborda um assunto pouco explorado pela doutrina e pela Academia: o libertarianismo e seu desmembramento, o anarcocapitalismo.

Tais movimentos ideológicos ganharam força na última década: impulsionados pela polarização política mundial e pelo poder das redes sociais, milhares de jovens foram atraídos pela defesa da liberdade irrestrita e pelo confronto ao Estado.

Analisa-se, neste trabalho, o núcleo do movimento libertário e anarcocapitalista, com ênfase nas principais bandeiras erguidas por seus defensores:
• o objetivismo de Ayn Rand;
• a praxeologia e o dualismo metodológico de Mises;
• a big issue austríaca em Hayek;
• a aversão à economia matemática em Menger;
• a justiça e segurança privadas em Rothbard;
• a oposição à democracia em Hoppe e
• o recente universo das criptomoedas.

Também são detalhadamente abordados os conceitos de capitalismo e anarquismo, Contratualismo sociológico e jurídico e conceitos de jusnaturalismo e positivismo jurídico. Destaca-se a análise do primado libertário da manifestação absoluta do pensamento, minuciosamente investigado.

Os pilares científicos utilizados são os da Economia, Direito, Filosofia, Neuroeconomia, Sociologia, Política, História e Epistemologia. Considerações de Psicologia Social e de Psicanálise também são realizadas.
Imprescindível para consulta acadêmica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de jul. de 2023
ISBN9786525297323
Libertarianismo & Anarcocapitalismo: sob a óptica da Ciência

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    Libertarianismo & Anarcocapitalismo - Camilo Thudium Vargas dos Santos

    I. INTRODUÇÃO

    There is no Austrian economics - only good economics, and bad economics.

    MILTON FRIEDMAN⁴⁰

    Opresente tratado traz, como tema principal, o libertarianismo e o anarcocapitalismo frente ao Contratualismo, à Teoria do Estado e à Economia como ciência, com ênfase na análise do niilismo. Secundariamente, serão confrontados os postulados libertários sob a ótica do Direito, da Sociologia e da Filosofia. Abordar-se-ão aspectos econômicos, jurídicos, filosóficos, matemáticos e estatísticos, como forma de validar, ou não, os primados encontrados no núcleo da ideologia anarcolibertária. Assim, com o objetivo de tornar clara a linha argumentativa a ser desenvolvida, faz-se necessária uma breve e sintética apresentação dos elementos característicos desse movimento e, em seguida, o enquadramento em que se apoiam os argumentos que serão desenvolvidos.

    Sem prejuízo da posterior análise, mais aprofundada e amplamente referenciada, mas já antecipando o que será amplamente combatido, elencam-se os principais pressupostos ligados ao libertarianismo. Trata-se de um movimento não muito recente, mas que a partir de meados de 2010 tomou fôlego, passando a ser abertamente defendido por um número crescente de indivíduos no seio de uma sociedade em incipiente conflito ideológico (no Brasil e no mundo). A despeito de não possuir uma fonte que reúna os postulados, ou uma linha mestre que oriente qual é o paradigma a ser debatido, o libertarianismo, lato sensu, e seu desmembramento radicalizado, o anarcocapitalismo, comungam, entre outros ideais, dos seguintes pressupostos:

    (1) Liberdade absoluta:

    • apenas limitada quanto à violência física;

    (2) Oposição ao Estado;

    (3) Oposição ao ordenamento jurídico;

    (4) Rejeição ao sistema democrático;

    (5) Rejeição à tributação;

    (6) Rejeição ao sistema estatal de Justiça:

    • Poder Judiciário, Ministério Público e Advocacia;

    (7) Rejeição ao sistema de segurança pública:

    • Polícia civil, Polícia Militar e Forças Armadas;

    (8) Rejeição a qualquer serviço público

    • em especial os alocativos e os distributivos;

    (9) Defesa da liberdade absoluta de manifestação;

    (10) Rejeição ao sistema monetário fiduciário:

    • Moeda estatal, Bancos comerciais e Central;

    (11) Alinhamento com a Escola Austríaca.

    Cite-se Frédéric Bastiat, festejado filósofo que recebeu grande atenção do público libertário. Em lúcida interpretação do espírito da legislação, declarava que a verdadeira Lei seria aquela que cumpre os desígnios da justiça, não impondo aos indivíduos mais do que vedações, negativas, pois a essência do convívio pacífico em sociedade é exatamente a delimitação das ações reciprocamente consideradas:

    (...) quando a lei e a Força retêm um homem na Justiça, não lhe impõem nada além de uma pura negação. Elas impõem-lhe apenas que se abstenha de lesar outrem⁴¹.

    A finalidade legal seria não a imposição de justiça, mas sim a proibição da injustiça⁴². A lei deveria, então, ser reduzida a sua única atribuição racional: regular o direito individual de legítima defesa e reprimir a injustiça⁴³.

    O libertarianismo, entretanto, acabou por extrapolar a interpretação de Bastiat, generalizando a ideia de que Lei alguma deveria existir. Libertários negam a existência não apenas das leis positivas⁴⁴, mas também das negativas⁴⁵. Trata-se de um passo que Bastiat não deu, a despeito de ser tratado como fonte de inspiração anarcolibertária. O aludido movimento, assim, quando não idealiza sistemas utópicos, acaba por distorcer conceitos pacíficos na doutrina, a exemplo da equivocada interpretação do sentido das Leis em Bastiat.

    Essas são as linhas gerais, usadas como suporte ao longo de toda a presente obra. Compreender os postulados adotados como tese a ser confrontada⁴⁶ é salutar, para que a abordagem seja clara, sem que se perca de vista a evolução argumentativa. Justifica-se, desde já, as eventuais derivações e aprofundamentos realizados, tidos como necessários para que a validação de todo o raciocínio não seja mitigada por futuros questionamentos à margem do tema central.

    O presente tratado foi elaborado com fundações doutrinárias majoritárias nos campos, principalmente, da Economia e do Direito. Os pressupostos são todos relacionados os liberalismo clássico, segundo o qual os valores da liberdade e do indivíduo se encontram no núcleo paradigmático e epistemológico da ciência aplicada às humanidades. Parte-se do pressuposto de que a reciprocidade é fundamental entre os agentes em sociedade, uma vez que a evolução humana se dá, hodiernamente, em aglomerados urbanos. Assim, ordenamentos jurídicos públicos, promulgados democraticamente e titularizados pelo Estado, através de representação política, são elementos indissociáveis do liberalismo. Daí eclode o Contrato Social, com limitações recíprocas entre os indivíduos, e entre eles e o Estado. Esse contratualismo busca resguardar o núcleo da dignidade de todos, algo essencial ao convívio pacífico. Dentro desse escopo, o Estado é limitado a funções preferencialmente exclusivas, naturalmente necessárias, o que garante a livre iniciativa, o livre-arbítrio e o sistema de trocas voluntárias, consagrado pelo modelo capitalista.

    É notório que os adeptos dos primados liberais pertencem a uma parcela reduzida na sociedade: não é à toa que eles são tratados jocosamente como isentos, sendo que a literatura já contornou a ojeriza a eles, classificando-os positivamente como Vulcanos⁴⁷ ⁴⁸. A visão política dominante, ao contrário, encontra-se mergulhada em uma falsa dicotomia intitulada esquerda x direita, que mais diz respeito aos sentimentos antagônicos do citado dualismo do que a qualquer fundamento singular de cada lado. A superficialidade desse maniqueísmo é facilmente observável pela convergência das práticas populistas e demagógicas colocadas em frente pelos governos eleitos por ambas as rubricas. Assim, a sociedade é dividida entre conservadores (autoproclamados de direita) e progressistas (autoproclamados de esquerda): os primeiros defendem pautas de costumes ortodoxos; os segundos propõem políticas econômicas heterodoxas. Em ambos os casos, não há liberalismo, tese aqui defendida, mas um não-liberalismo, dada a redução da liberdade nos dois casos: no primeiro, dentro da individualidade de terceiros; no segundo caso, dentro das livres forças do mercado. A ideia é simples: ou o sistema é liberal (autossustentável), ou é não-liberal (artificializado, tanto na proposta de esquerda como na de direita). O libertarianismo, que nada mais é do que uma reunião disfuncional de direita (falsamente defendido como um prolongamento dos primados liberais), caracteriza-se por ser não-liberal, e sim um prolongamento da direita clássica conservadora. O anarcocapitalismo (uma distopia da disfuncionalidade libertária) encontra-se mais adiante dentro desse domínio.

    A etérea divergência entre direita e esquerda, da qual os liberais não pertencem, apenas transparece uma incômoda (quiçá comprometedora) realidade: esses extremos não existem no campo epistemológico ideal como solução ao homem na sociedade. As opções, ao contrário, deveriam ser apenas duas: ser liberal ou ser não-liberal. Ou o indivíduo preza pela liberdade vigiada com reciprocidade na harmonia, ou defende um sistema que suprime (com alguma intensidade) os demais agentes, seja na área econômica, seja na social. Os liberais são, assim, pregadores no deserto, mas firmes na convicção de um propósito filosófico, que busca esclarecer as pessoas e aprimorar o sistema, mesmo que não seja provável alcançar níveis de tolerância e liberdade tais quais seus postulados propõem. Trata-se de uma proposta desencorajadora em termos práticos, mas libertadora em termos metafísicos. A dialética e a razão são as únicas ferramentas dos liberais, as quais serão exaustivamente utilizadas neste Tratado.

    O tema presente surgiu a partir de meados de 2015, sendo fortalecido progressivamente nos anos posteriores, durante os quais se notabilizou o crescimento de uma já existente onda de insubordinação e revolta contra assuntos até então não debatidos pelo público em geral. Um contingente cada vez maior de pessoas (tanto leigas quanto instruídas) passou a questionar instituições basilares da sociedade, não raras às vezes de forma superficial ou sanguínea. É certo que a virada tecnológica impulsionou tais movimentos, em especial as redes sociais, blogs, canais de streaming etc. Contra isso não há o que fazer: a situação está posta. Resta lidar com ela de forma construtiva e antitética, que nada mais é do que o objetivo da ciência. Assim, multiplicaram-se vertiginosamente as teses conspiratórias e teorias excêntricas, basicamente tendo como alvos: o sistema, a sociedade e o Estado. A plataforma utilizada é majoritariamente virtual: artigos pseudocientíficos, streaming de notícias falsas (conduzidos por blogueiros, youtubers, digital influencers), canais de mídia populares sem o menor caráter informacional (verdadeiros palanques políticos) etc. Nesses pontos virtuais imperam, além da viralização de memes, deboches, ironia e sarcasmo infundados, os discursos de ódio e toda sorte de desinformação ideologicamente motivada. A informação nesses meios de comunicação é calibrada conforme o apetite dos usuários.

    Não existe mais a verdade, e sim o que se deseja ouvir: o relativismo niilista da liberdade ressignificou os fatos em ponto de vista, e a essência de tudo em mera opinião. Sobre esse último termo, notabiliza-se um nivelamento pretencioso dele frente à ciência: tese científica e opinião leiga foram equiparadas, e os indivíduos passaram a arrogar para si uma suposta legitimidade de opor suas crenças a qualquer argumento contrário. As palavras de um cientista passaram a valer o mesmo que a opinião de um leitor de manchetes. Quando indivíduos reagem a um argumento declarando que ele é apenas uma opinião de seu interlocutor, a tendência é o encerramento do debate. Se um argumento é qualificado como opinião, quem assim o declara nada mais faz do que incorrer em relativismo puro, em apego subjetivo de ideias, na desvalorização da visão alheia. Em outros termos, em niilismo: uma antifilosofia que depõe contra a dialética. Sem dialética, não há ética, nem valores morais, nem paz social⁴⁹. Essa é a razão pela qual a superficialidade líquida tem comprometido o convívio humano: ao ignorarem argumentos, os relativistas tornam as ideias subjetivas, e o mundo passa a ter um aspecto deontológico de Dever-Ser, agora elevado ao íntimo de cada indivíduo. O caos decorrente desse comportamento torna a subversão um potencial a ser considerado.

    O niilismo envolvido nesse comportamento transforma-se em um verdadeiro Ode categórico, uma forma poética de se explicar a realidade, acentuada ora pela estética subjetiva do orador, ora por sua crítica pessoal: o objetivo no Ode é valer-se da emoção frente a argumentos técnicos. Se o preparo científico demanda estudo, tempo e dedicação, nada mais racional do que recorrer ao Ode categórico: abrevia-se o trabalho e nivela-se o debate pela subjetividade do interlocutor, tornando-a a regra.

    Juntamente com a desinformação generalizada, surgiram inúmeros seguidores de teorias obscuras esquecidas no tempo, como é o caso do(a):

    (1) Refutação niilista e extremista de Nietzsche

    • século XIX

    (2) Objetivismo desumanizado de Ayn Rand

    • meados do século passado e

    (3) Anarquismo radical e irredutível de Rothbard e Hoppe

    • meados do século passado, idem.

    Tais ideologias passaram a ser defendidos na sua forma mais reacionária, beirando (em alguns casos) um aparente fenômeno narcisístico. Instituições basilares, como a ciência e a paz social⁵⁰, sofreram um revés significativo: pequena parcela da sociedade, virtualmente organizada, passou a impulsionar ideias de reinterpretação generalizada do que é pacífico, encarando o relativismo anticientífico próprio do niilismo como liberdade de pensamento, e o ódio argumentativo objetivista como direito de expressão. Essa parcela não só age de forma temerária, como se orgulha de pertencer a um substrato radicalizado da sociedade, onde impera o maniqueísmo do all or nothing. É, então, dentro desse contexto de indeterminação semântica, que emergiu o movimento neolibertário, representado em grande medida pelo anarcocapitalismo. Frente a esse fenômeno, então, buscou-se no presente tratado uma maior compreensão e, finalmente, diagnosticou-se quais premissas são válidas e quais pressupostos são insustentáveis perante o método científico.

    Idealizado pelos mais leigos, então, como uma evolução do liberalismo, surge o libertarianismo, sendo o anarcocapitalismo a radicalização desse desmembramento, um tipo de movimento que já não guarda o mínimo de racionalidade econômica ou jurídica. O anarcocapitalismo, adiantando-se uma apertada síntese de tudo o que será explicitado minuciosamente ao longo dos capítulos que seguem, defende a eliminação do Estado e dos tributos, bem como a potencialização dos direitos individuais, inclusive frente aos coletivos, e a liberdade total de mercado e de pensamento. É um fenômeno neolibertário que contém o mesmo pressuposto inconsistente do comunismo, qual seja: a ausência de leis e do Estado:

    (1) No comunismo, parte-se da ideia utópica da não aplicação legal perante indivíduos, que jamais se desigualarão, e é nessa igualdade que reside a desnecessidade das leis (e do Estado);

    (2) No libertarianismo, defende-se, igualmente, a ausência de leis, pois os indivíduos, agora desiguais (em oposição ao pressuposto comunista) não podem ser oprimidos por um Estado que reduza sua liberdade individual absoluta.

    Indivíduos, quando iguais (comunismo), não precisam de leis, e quando desiguais (libertarianismo) não podem se sujeitar às mesmas, pois mitigam a sua individualidade única. Aqui se percebe que a teoria da ferradura pode ser revisada, para além das extremidades convergentes (socialismo e fascismo). Há, pelo menos do ponto de vista hipotético, o avanço de tais extremidades para além da própria ferradura: um lócus sem Estado.

    (1) No lado esquerdo, a extremidade totalitária do socialismo daria seguimento ao comunismo (fim do Estado e igualdade geral incontrolável);

    (2) No lado direito, a extremidade totalitária do fascismo daria seguimento ao libertarianismo (fim do Estado e desigualdade geral incontrolável).

    O convite é justificado: é do propósito do filósofo, tal qual o do profeta, levar a todos a ideia racional (no caso do primeiro) e a palavra divina (no caso do segundo). Ambos objetivam aumentar a virtude dos homens em sociedade. Stuart Mill corrobora esse desígnio, asseverando que os indivíduos devem ajudar uns aos outros no esclarecimento do que é melhor e do que é pior, estimulando-se mutuamente para o exercício mais elevado de suas faculdades, e em prol das mais sábias reflexões, dos mais grandiosos pensamentos, a fim de que as concepções tolas e as ideias degradantes sejam paulatinamente abandonadas⁵¹. Toda a tese, prosseguindo na apresentação, requer provocação cognitiva, e desde já se assume o mais sério compromisso de demonstrar que a simetria proposta (ferradura) é justificável, pois se abordarão múltiplas áreas do conhecimento, todas estritamente científicas, com dedução e indução, dentro do mais rigoroso método argumentativo, o que por vezes pode tornar até mesmo árida a discussão. Os campos de conhecimento utilizados para as conclusões finais serão os da Economia, Direito, Filosofia, História, Sociologia, Matemática, Estatística, Psicologia, Neuroeconomia e Psicologia Social. A multidisciplinariedade não é só importante: é necessária. Na ciência social, supõe-se a consagração de pressupostos mediante o apoio de todos os ramos científicos que se dedicam a estudar o homem e a sociedade. O reforço mútuo dessas áreas torna robusta toda conclusão que venha a ser declarada e, acima de tudo, demonstra o compromisso assumido no trato técnico dos assuntos, sempre com atenção à prudência e à razoabilidade, o que se observa pela extensa lista bibliográfica e da grande quantidade de referências em cada argumento. A tese aqui jamais se distanciará do que é consagrado pela doutrina.

    O grande problema na defesa do movimento libertário está, então, na sua não plausibilidade fática (na falta de evidência fenomênica, no mundo concretâneo).

    Inúmeros argumentos serão elencados nos diversos capítulos deste livro para desmistificar os postulados anárquicos desse levante radical, mas já é possível, prima facie, demonstrar o quão distópico é o assunto. Pense-se em uma profissão da mais alta importância social: a medicina. É um caso típico de mercado protegido pela lei e pelo Estado, o que depõe contra os postulados libertários mais fundamentais. O número de faculdades e de médicos existentes no Brasil é rigidamente controlado pelo Estado, por intermédio de suas autarquias profissionais (CFM e CRMs), que lhes asseguram, via reserva de mercado, o resguardo de valores constitucionais, como é o caso da vida e da saúde pública. Nesse caso, o mercado não é totalmente livre: há outros interesses envolvidos, que não apenas a demanda e a oferta. Dessa forma, a remuneração de um médico especialista se justifica pela intensa preparação⁵² e pela competição acirrada das vagas disponíveis⁵³. Acrescenta-se o fato de que durante o próprio exercício da carreira há constante atualização e estudo, o que é possível justamente por existir remuneração fidedigna e atraente. Isso motiva o aperfeiçoamento de forma constante, algo que o controle legal e administrativo do Estado propicia. Segundo a ideologia libertária, entretanto, o número de médicos (por mil habitantes) no Brasil em 2020 (2,4)⁵⁴ seria insuficiente, pois não determinado pelo sistema de mercado: como base para esse argumento, citar-se-ia uma oferta consideravelmente maior (dados de 2011) desses profissionais em países modelo como a Áustria (4,8), Itália (4,1), Portugal (4,0), Suécia (3,9) e Alemanha (3,8) ⁵⁵ ⁵⁶. Esse questionamento, ainda que microeconomicamente defensável, não leva em conta, além dos valores constitucionalmente protegidos, que a proliferação de profissionais nessa área tenderia a reduzir a qualidade do serviço prestado, bem como o controle do processo como um todo, o que multiplicaria o trabalho de fiscalização dos órgãos competentes, gerando um alto custo administrativo em prol de resultados incertos (tanto sociais como práticos). Pois é exatamente aí que entra a distopia libertária: para os defensores desse movimento, não se deveria prestigiar regulamentos para categoria nenhuma de profissionais⁵⁷. Muito pelo contrário: o Estado sequer deveria existir, de forma que, pelo lado da medicina, qualquer indivíduo poderia praticá-la, ao arrepio da formação acadêmica. Leis deixariam de existir e, assim, não mais seria tipificado como crime o exercício ilegal da aludida profissão⁵⁸. Nem mesmo a fiscalização centralizada de todo o processo existiria, tornando a situação num cada um por si: imperaria a soberania do indivíduo racional e seus custos privados⁵⁹. Pacientes assumiriam o custo privado de buscar informação acerca dos médicos existentes em sua região, tendo que avaliar e ponderar sua formação (certificada ou não), tal qual se dá quando se entra em um supermercado e se opta por produto de marca X em detrimento de outro, de marca Y. Os libertários, assim, acreditam em uma mercantilização generalizada e incondicional da economia (ausência de barreiras na entrada e na saída do mercado), crendo que a mão mágica Smithiana e o laissez faire seriam suficientes para que os consumidores (clientes e pacientes) alcancem a satisfação ótima, eis que senhores de suas escolhas e dos riscos a elas associados.

    Externalidades, fraudes, abusos, crimes: nada disso perturba a mente libertária. O único valor a ser respeitado é o da liberdade, seja lá como ela será alcançada. A superficialidade dessa ideologia, felizmente, é provada na prática: em lugar nenhum do mundo ela foi aplicada, se é que alguma nação terá um dia a pretensão de permitir uma desregulação caótica de serviços essenciais nos moldes apresentados.

    As sociedades não desaguaram em tamanha imaturidade a ponto de tornarem real a ficção no estilo Mad Max. O povo e seus representantes (majoritariamente) desde sempre aceitam o império das leis, para que a convivência social seja pacífica, ordeira e previsível. Todos esses valores dizem respeito à segurança jurídica, algo não bem digerido pelo libertarianismo.

    A par dessa situação hipotética, pode-se perceber que a Academia tem dado pouca ou nenhuma atenção a essa virada anarcolibertária. Os principais economistas e filósofos de hoje não têm, aparentemente, se preocupado em corrigir tamanha desinformação, seja porque esse movimento não ganhou corpo significativo na sociedade, seja porque os verdadeiros cientistas se acomodaram na premissa do in claris cessat interpretatio⁶⁰. Desconfia-se que esse último motivo seja o preponderante.

    Mas a verdade é que os insatisfeitos estão cada vez mais tentando reinterpretar o que é claro, óbvio e pacífico, sob a perspectiva de que qualquer argumento ou qualquer realidade são válidos em prol da liberdade de pensamento. Ciência e crença são colocadas lado a lado, como se houvesse vasocomunicação apta a deflagrar antítese entre ambas. O termo opinião foi alçado à existência metafísica do Ser: qualquer uma é válida, pois a democracia aceita o debate, por mais absurdas que sejam as premissas. O valor ontológico da mera opinião passou a ser equilibrado vis-à-vis aos maiores postulados científicos aceitos. A opinião de um blogueiro⁶¹ se torna um Ode categórico: passa a ter o mesmo peso epistemológico do que o argumento de um cientista, por maior que seja sua trajetória acadêmica. Não há mais verdade: ela foi substituída por views e likes nas redes sociais e canais de streaming⁶². Mede-se o valor da informação não pelos elementos constitutivos dela, e sim pela sua exposição nos trending topics da web. E isso não se questiona: o conforto cognitivo de pertencer a movimento tal e qual supera qualquer inquietação filosófica. Nesse quadro perturbador, quiçá disruptivo, pensar (refletir) passou a ser moeda de reserva, pois a de troca é forjada com o nihil argumentativo que nada aceita quando confrontado com os fatos. A emoção no Ode categórico não aceita argumentos, pois a subjetividade é o valor primeiro do poeta.

    Em tais tempos de pós-verdade e relativismo niilista, não é de se admirar a defesa das ideias supracitadas⁶³. É a partir desse quadro que se decidiu explorar o tema libertarianismo e anarcocapitalismo, pois eles representam a ideologia de boa parte (se não da maioria) dos anarquistas contemporâneos, que decidiram desafiar o conhecimento mainstream e as instituições. Questionou-se, ao definir esse assunto, acerca da repercussão negativa que ele poderá causar nas correntes mais radicais desses defensores, não tanto em função de eventuais críticas bem fundamentadas, que venham a contribuir para correções de qualquer imprecisão cometida neste tratado⁶⁴, mas muito em função da possibilidade de vozes radicais no assunto criarem, a partir de discursos de ódio, eco no mundo digital que cerca a todos. Aliás, dedicaram-se capítulos inteiros à questão do ciberativismo e do niilismo, que transbordam as relações sociais atuais. A visão niilista dos mais inconformados, salvo melhor juízo, é o motor de propulsão de todas as discussões superficiais e infundadas aqui tratadas, acessíveis a um mero clique (frente à tela de um computador ou celular).

    Sim, frente a um computador ou celular. Vivemos numa sociedade pouco dedicada a leitura tradicional (livros, periódicos físicos etc.): é muito mais fácil acessar um blog com sínteses superficiais de assuntos complexos do que ler, efetivamente, as respectivas obras consagradas⁶⁵. Schreiber sintetiza bem esse fenômeno: a modernidade líquida tornou os homens, paulatinamente, em leitores de manchetes⁶⁶, o que aparentemente tem sido suficiente para que as pessoas passem a defender tese ‘A’ ou ‘B’, sem que se adentre na profundidade do assunto correlato. Pouco se pode esperar de um debate baseado em conhecimentos sintetizados pela chamada de uma notícia ou artigo.

    Lê-se pouco, argumenta-se muito. Pesquisa realizada pela Pró-livro (Projeto Retratos da Leitura no Brasil – IPL)⁶⁷ dá conta de que o brasileiro leu no ano de 2019, em média, 4,95 livros (2,5 na íntegra e 2,4 parcialmente) (para efeitos de comparação, o francês médio lê em torno de 21 livros anualmente⁶⁸). Levando-se em conta os desníveis da concentração educacional, chega-se a um número médio de leitura, na verdade, muito menor, ao se considerar o extrato populacional, dado que um leitor que concentre muitos livros lidos ao ano (no Brasil, em especial), gera uma média que não corresponde à leitura real dos demais indivíduos da amostra⁶⁹. Com base em tais dados, compreende-se que o florescimento de comunidades que conspiram contra o sistema e contra o conhecimento convencional não é mero acaso.

    Indivíduos possuem, em média, pouco conhecimento (seja por preparo, seja por hábito), e as redes sociais tornaram possível o debate global, universal e popular; um resultado que, para Pondé, é um ruído, que enche o mundo de Nada, de Não Ser, de coisa alguma⁷⁰: As redes sociais são o túmulo da lenda da democracia e da sua expectativa por um diálogo maduro. A partir daí, a superficialidade ganhou velocidade assustadora: refuta-se tudo, desde o tradicional até o contemporâneo, em decorrência do ridículo afetivo, da pobreza intelectual e da mísera semântica que delas exalam⁷¹. É a moeda podre de Gresham expulsando as melhores mentes, e convidando um ator novo, o niilista (um refutador sistemático), cuja predileção é semear a dúvida. E com sua moeda má, disputa o libertário seu lugar ao sol epistemológico, de cuja análise não se furtará o presente trabalho.

    Enfim, modernidade líquida, nas palavras de Bauman. Por que motivo perder semanas de leitura aprofundada de um assunto se é possível obter o resumo abreviado dele? E mais: poder debater em pé de igualdade com os maiores especialistas, ao entrar no campo de comentários, estrategicamente oferecidos ao final de cada artigo/post na web. Liquidez imediata, sensação de pertencimento e ilusão, para não se adentrar em outras consequências psíquicas envolvidas. Alicerçado nesse processo superficial, há o feed de comentários em redes sociais, onde qualquer um vira crítico das mais diversas áreas (postura alavancada por curtidas e comentários que emulam os efeitos típicos da dopamina no cérebro⁷², algo que resulta em grande atividade neurológica, a partir de cognição e memórias sociais⁷³). Platão já alertava quanto à proliferação desses especialistas, que aparentam ser sábios aos seus discípulos, verdadeiros sofistas, que tudo dominam, mas que na verdade se baseiam apenas em opinião, e não no verdadeiro conhecimento⁷⁴. Uma breve checagem em qualquer rede social atesta essa previsão: a internet é o reino do Ode categórico.

    Feita a exposição inicial dos motivos, e ciente de que por trás da trincheira oposta há a paixão e mimetismo acima de tudo⁷⁵, reúnem-se, nesta obra, anos de pesquisa e leitura das obras consideradas mais importantes para a compreensão do Estado, da Economia e de seus fins, sem perder de vista que a tese científica é provada pelos fatos, e é com base nela que será defendida a existência do Estado, a despeito do embate inevitável com a proliferação de crenças.

    É possível se alcançar a razão defendendo o presente tratado: é na dialética platônica, ou seja, na busca pela essência da verdade, racionalmente considerada⁷⁶ e refutando-se qualquer opinião baseada em favoritismo, que se guiará a argumentação nos capítulos que seguem. Os doutrinadores do movimento libertários, ao contrário, e como será demonstrado adiante, nada conseguiram provar com relação aos fatos, estando os mesmos distantes da verdade no terceiro grau socrático. Iludem-se a si próprios, talvez mesmo até a multidão. Falta-lhes dialética, nos termos platônicos, e acima de tudo: distinção entre opinião, crença e verdade. Misturar esses três elementos num mesmo cesto semântico, como o querem os poetas do Ode categórico, é prova aparente de despreparo. Sugere-se especial atenção à questão do niilismo: compreender a insatisfação das pessoas, a partir desse fenômeno, contribui sobremaneira à elucidação das mais equivocadas premissas advogadas sobre assuntos como o papel do Estado, das leis e da sociedade.

    Dito isso, o método argumentativo utilizado daqui em diante partirá da premissa defendida por Stuart Mill⁷⁷, qual seja: da análise ampla da doutrina libertária, tanto pela consulta dos trabalhos realizados pelos autores de referência (dessa ideologia), quanto pela observação da ocorrência fenomênica dessa no seio da comunidade leiga, para só então partir-se em direção ao enquadramento de tais ideias no espectro científico da Economia, do Direito, da Sociologia e da Filosofia, considerando-se as concepções majoritariamente aceitas nessas últimas. A argumentação se desenvolverá sobre três pilares:

    (1) Doutrina contratualista;

    (2) Doutrina libertária e anarcocapitalista;

    (3) Contextualização frente a eventos presentes ou históricos;

    Parte-se do pressuposto que toda a argumentação a ser desenvolvida no presente tratado será mais confiável a partir do enquadramento nos três alicerces referidos acima.

    O objetivo, com isso, encontra-se amparado igualmente em Mill⁷⁸: reforçar, confrontando-se a antítese libertária, a teoria do Estado e a condição sine qua non de existência desse Ente para a consagração dos objetivos individuais do homem dentro da sociedade, daí surgindo as ciências sociais suprarreferidas. É da discussão dentro do antagonismo Estado x Anarquia que se dá o aprimoramento argumentativo em favor do primeiro, promovendo-se maior compreensão da importância da liberdade, mitigada pelas leis, e mantendo-se lúcida a ideia do individualismo, assegurado por ordenamentos jurídicos que enalteçam o livre-arbítrio dos homens contra eventuais investidas injustas de seus pares. A esse desiderato, seguir-se-á igualmente o modelo de investigação proposto por Durkheim⁷⁹: compreender os desvios para ressaltar-se a normalidade, o que equivale a analisar-se a patologia para esclarecer-se a fisiologia per se. O libertarianismo, mais do que uma defesa de ideias opostas à Economia e ao Direito, reforça-os, justamente pela inviabilidade racional de seus pressupostos. Verificar essa inviabilidade é importante para legitimar a própria Teoria do Estado.

    Parte-se da premissa de que o Estado é uma construção abstrata intuitiva nas reuniões sociais, aceito pela maioria dos indivíduos de forma pacífica, e que a melhor condução dele se dá pela moderação política, rejeitando-se visões extremistas de esquerda ou de direita, bem como a negação desse espectro pela via anárquica. Ocorre que a moderação política nem sempre é compartilhada por todos, em razão da crescente inconformidade de parcela da população que já não enxerga legitimidade nessa estrutura social. É do confronto da visão majoritária do papel do Estado com a visão anarquista, libertária e anarcocapitalista que será desenvolvido o atual debate.

    Advertem-se os leitores, e desde já se pede vênia, pelo fato de o presente tratado não ser um mero apanhado sintético de pensamentos ou uma simples revisão efêmera voltada ao público leigo (produto on the shelf). É, na verdade, um trabalho que exige, preferencialmente, interdisciplinaridade de assuntos, ensejando, em alguns pontos, considerável análise matemática e estatística. O mesmo ocorre com a análise histórica e política, aprofundadas com base nos melhores doutrinadores e obras de referência, a maioria em sua versão original, o que pode causar certa dificuldade quanto ao vocabulário. Também serão feitas análises jurídicas, considerando-se a capacidade do leitor de compreender o processo decisional pautado não só em leis, mas na doutrina e nos precedentes, valendo-se de linguagem técnica, jusfilosófica e jurisprudencial. Complementarmente, serão colacionados conceitos filosóficos, com base principalmente em trabalhos e verbetes consagrados em dicionários acadêmicos e em obras originais, como as de Platão, Aristóteles etc., nas quais não se fará, por economia de espaço, a tradução semântica por trás dos enunciados. O arcabouço científico é amplo, de modo que a leitura pode se tornar indigesta em certos pontos caso não seja dada a devida atenção ao elo entre a sequência de raciocínios, em especial quando há comprovação teórica a partir de doutrina mainstream⁸⁰. Para aqueles que dispensam análises numéricas ou comprovação jurisprudencial⁸¹, procurar-se-á demonstrar as premissas e conclusões antes de tais demonstrações, de forma que o leitor possa pular as etapas de verificação dos postulados.

    É possível que o leitor da presente obra conjecture ser a mesma de viés progressista, quiçá meramente de esquerda, após a leitura da tese aqui desenvolvida, majoritariamente oposta ao libertarianismo, eis que esse se situa no lado direito da ferradura. Nada mais falacioso. Os postulados utilizados contra a teoria libertária e anarcocapitalista são de cunho liberal, fora da ferradura, tanto no campo econômico como no de costumes. Se não foram elencadas, de forma sistemática, antíteses aos postulados de esquerda, o motivo é óbvio: há dezenas de obras consagradas dedicadas a esse objetivo⁸², o que tornaria o presente livro mera repetição daquelas. A finalidade aqui é oferecer ao leitor ferramentas e argumentos necessários ao debate de um campo incipiente e pouco explorado, qual seja, o do libertarianismo, de forma a acrescentar algo à ciência, o que não se daria se a discussão se concentrasse em aspectos contrários ao socialismo (e sua quimera, o comunismo), tendo em vista isto já ter sido feito por renomados autores. Da mesma forma, não será objeto desse tratado o aprofundamento do Liberalismo, pois esse sistema político-econômico já foi exaustivamente comprovado como o ideal, e tratado detalhadamente em inúmeras obras consagradas⁸³.

    O objetivo é, ao contrário, específico: analisar a infundada ideologia libertária e anarcocapitalista, pois nesse caso a literatura acadêmica ainda é escassa, o que demanda um maior esclarecimento desses movimentos na atualidade.

    O atual tratado é voltado preferencialmente ao público acadêmico, em especial a turmas de Direito e Economia dos primeiros semestres, bem como àqueles que buscam melhor compreensão sobre os diversos assuntos da humanidade de forma independente. Dentro desse grupo estão os liberais, os conservadores e os progressistas. Em que pese ao fato de se supor necessária alguma instrução nos assuntos que serão trazidos à baila, não há a presunção de que somente o preparo é condição para o entendimento. A prudência, fruto da experiência, não requer, como ressalta Hobbes⁸⁴, técnica alguma. Indivíduos sensatos, mesmo sem aprofundado preparo, estão muito mais propensos a se aproximar da virtude do que aqueles que, a despeito de eventual intelectualidade, insistem em raciocínios errados. Os que confiam em regras infundadas e as generalizam, de forma absurda, o fazem pela crença cega em seus próprios desejos, algo inconcebível do ponto de vista da ciência. A prudência, segundo Hobbes, é sempre preferível à intelectualidade mal aplicada, ou em suas palavras, à ignorância das causas e das regras. De nada serve o preparo formal quando se abandona a busca pelas consequências e interdependência dos fatos, condição necessária à verificação lógica, própria da ciência⁸⁵.

    Libertários e anarcocapitalistas, assim, não são o público-alvo do presente livro: parte-se do pressuposto de que dificilmente o adquirirão ou, eventualmente adquirindo, não farão sua leitura na íntegra. Essa premissa se baseia na tese elaborada ao longo do trabalho (mais precisamente nos tópicos voltados à elucidação das heurísticas, dos vieses de raciocínio e do niilismo) segundo a qual a dissonância cognitiva é sempre um obstáculo aos defensores de uma ideologia construída com apego emocional, algo que os torna, no geral, avessos ao contato com antíteses e, principalmente, contrários à dialética. O conforto cognitivo da defesa ideológica é sempre preferível ao antagonismo: dele eventualmente surge a dura reflexão e o possível reconhecimento dos erros metodológicos e materiais, ora defendidos pelos idealistas, emocionalmente envolvido com suas premissas. É notório o costume de grande parte dos anarcoindividualistas de restringirem seu estudo ao exíguo leque de livros e autores voltados à defesa da utopia libertária. Esse organicismo é evidente, em especial no anarcocapitalismo, de forma que, de seus defensores, não se espera a leitura do que aqui será debatido. Se excepcionalmente essa premissa for quebrada, tanto melhor, pois o móvel por trás do presente trabalho é somente um: aproximar-se da verdade, por meio do método próprio da ciência. Esse objetivo é válido para todos, em especial àqueles que se encontram imersos em ideias confusas ou inaplicáveis: a esses, o ganho será (presume-se) inequívoco.

    A estruturação dos tópicos no presente tratado pode parecer turva, mas a linha de raciocínio é firme: primeiramente, abordar-se-á a questão da moralidade do individualismo, passando-se para a análise do método libertário frente à ciência. Após, argumentar-se-á acerca da superficialidade e da distopia dos primados anarcoindividualistas, para então ingressar num dos pilares da tese ora desenvolvida: o niilismo presente no libertarianismo. Encerrada essa primeira etapa, considerar-se-ão aspectos ligados ao ciberativismo, mola propulsora dos ideais libertários e anarcocapitalistas. Em seguida, será feita uma revisão dos conceitos de anarquismo e capitalismo, para melhor enquadramento do assunto. Daí em diante, os capítulos se concentrarão na maioria dos fundamentos libertários, quais sejam: o individualismo, o objetivismo, a praxeologia, a ojeriza à democracia, a oposição aos ordenamentos jurídicos, a manifestação absoluta do pensamento, a autopropriedade, a defesa da justiça e seguranças privadas e o confronto aos tributos. Encerrada essa última etapa, será feita uma revisão detalhada da Escola Austríaca. Ao final, serão abordados os criptoativos, a oposição ao sistema financeiro hodierno e, no último capítulo, a demonstração das funções regulatórias do Estado (rejeitadas pelo libertarianismo).

    Por ser um assunto ligado à política, economia, direito e filosofia, inevitavelmente serão traçados paralelos com situações reais ocorridas (especialmente) no Brasil de 2010 em diante, quando floresceu a retomada dos ideais anarcolibertários. Em alguns tópicos, haverá uma análise da convergência entre os libertários e os neoconservadores (the new right), especialmente no tópico sobre a manifestação do pensamento.

    Adverte-se, em tempo, que o objetivo que motivou o livro que segue não está associado a qualquer tipo de desqualificação pessoal dos libertários ou dos anarcocapitalistas, tampouco a busca por qualquer tipo de modificação de suas crenças. Parte-se do pressuposto liberal de que a sociedade é livre, e a defesa de ideias, desde que não atentatórias aos direitos dos demais, é plena. Nisso se inclui as teses anarcoindividualistas. Da mesma forma, respeita-se no presente tratado o livre-arbítrio considerado como tal por todos, pois (talvez) o único objetivo, sabidamente inquestionável de qualquer indivíduo, é estar em paz consigo mesmo e com a coletividade, satisfeito com suas opções e livre para defendê-las como melhor entende. O confronto de ideias se resume no campo dessas, nada mais.

    Deseja-se uma boa e frutífera leitura a todos.


    40 DOLAN, 1974, p. 4

    41 2019, p. 64

    42 Ibid., loc. Cit

    43 Ibid., p. 89

    44 que implementam alguma obrigação em nome de prestações estatais voltadas a solidariedade

    45 que impõe restrições penais e civis fundamentais ao convívio humano, incluindo as que determinam o custeio ao aparato público destinado ao cumprimento de tais prestações

    46 pela antítese aos pressupostos anarcolibertários

    47 https://veja.abril.com.br/coluna/fernando-schuler/o-toque-de-neymar/

    48 Vulcanos: um grupo reduzido de indivíduos altamente consciente, que analisa o sistema de forma exclusivamente racional e ponderada, jamais deixando que as emoções pessoais interfiram no julgamento a ser realizado. Daí a associação à figura mítica eternizada por Leonard Nimoy no personagem Spock (seriado Star Trek). Spock é um Vulcano que contribui decisivamente na tripulação da USS Enterprise, agindo de forma sobre-humana ao oferecer perspectivas lógicas, desprendidas de emoções, ou pelo menos lutando para que sua condição semi-humana redunde em influências contraproducentes de sentimentos frente a assuntos técnicos. É um dilema quase que freudiano, quando se dá a atuação do superego como filtro das erráticas pulsões cotidianas oriundas do Id (inconsciente).

    49 BLACKBURN, 2020, pp. 41-43

    50 inicialmente asseguradas de forma mais ou menos razoável a partir do fim da segunda grande guerra

    51 2018, p. 135

    52 para o ingresso no mercado da medicina se requer uma média de 8~10 anos, sendo 6 de faculdade e 2 ou 4 de residência, o que garante, na maioria dos casos, profissionais altamente qualificados

    53 a disputa chega a atingir no vestibular para medicina 129 candidatos por vaga - FUVEST 2020, USP de São Carlos

    54 https://portal.cfm.org.br/noticias/explode-numero-de-medicos-no-brasil-mas-distorcoes-na-distribuicao-dos-profissionais-ainda-e-desafio-para-gestores/

    55 MOTA, Nancy Peres da; RIBEIRO, Helena. Mobilidade internacional de médicos. Lua Nova (98), May-Aug 2016, disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/SFzHDmxJQ9jB4XfrNtHKQfk/?lang=pt.

    56 Organization for Economic Cooperation and Development. 2013. Panorama de la santé 2013: les indicateurs de l’OCDE. Disponível em (página 67): http://www.oecd.org/fr/els/systemes-sante/Panorama-de-la-sante-2013.pdf. Acesso em: 09/10/2020

    57 seja pelas condições de trabalho, seja pela remuneração adequada e digna

    58 Código penal, art. 282

    59 outra quimera clássica, que beira a utopia em certos paradigmas acadêmicos

    60 o óbvio não requer maiores explicações/interpretações

    61 seja em canal próprio, seja ao lado de pseudojornalistas em plataformas que um dia se ocupavam do ofício informacional

    62 LANIER, 2018, pp. 90-94

    63 a reboque de outras, extremamente questionáveis

    64 o que é salutar, pois a ciência vive da antítese, que contribui para aperfeiçoá-la

    65 exceção feita à leitura técnica de artigos acadêmicos, que atualmente se encontram quase que em sua totalidade em ambiente virtual

    66 SCHREIBER, 2020, p. 60/61

    67 http://plataforma.prolivro.org.br/retratos.php

    68 https://www.rfi.fr/br/cultura/20190313-franceses-leem-21-livros-por-ano-cinco-vezes-mais-que-brasileiros

    69 por conta do desvio padrão existente em qualquer substrato não homogêneo

    70 2021, p. 142

    71 Ibid., loc. cit.

    72 LANIER, 2018, p. 17: Segundo o autor, Sean Parker (1º presidente do Facebook) fez a seguinte declaração: Precisamos lhe dar uma pequena dose de dopamina de vez em quando, porque alguém deu like ou comentou em uma foto ou uma postagem, ou seja lá o que for (...) Isso é um circuito de feedback de validação social (...) exatamente o tipo de coisa que um hacker como eu inventaria, porque explora uma vulnerabilidade na psicologia humana (...) Os inventores, criadores - eu, Mark [Zuckerberg], Kevin Systrom no Instagram, todas essas pessoas, tinham consciência disso. E fizemos isso mesmo assim (...) isso muda a relação de vocês com a sociedade, uns com os outros (...) Isso provavelmente interfere de maneiras estranhas na produtividade. Só Deus sabe o que as redes sociais estão fazendo com o cérebro de nossos filhos.

    73 SHERMAN, 2016, p. 1033

    74 2007, Diálogos I, Sofista, p. 199

    75 o que Platão, em sua célebre obra A República já advertia

    76 2020, p. 261

    77 2018, pp. 67-68

    78 Ibid., pp. 72-73

    79 1999, p. 9

    80 que na origem é destinada ao meio acadêmico, com todo o tecnicismo próprio de investigações mais aprofundadas

    81 com termos que dizem respeito ao cotidiano de operadores do direito

    82 sugere-se a leitura de Hayek, Mises, Popper e Fukuyama

    83 sugere-se, em especial, a leitura de Smith, Mill, Popper e Bobbio

    84 2015, p. 50

    85 Ibid., loc. Cit.

    SEÇÃO I

    ANARCOLIBERTARIANISMO

    VS.

    FILOSOFIA

    II. DA MORALIDADE: O INDIVIDUALISMO ANTIÉTICO

    Age apenas de acordo com aquela máxima pela qual você pode ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal.

    IMMANUEL Kant⁸⁶

    Onúcleo argumentativo do libertarianismo reside no Princípio da Não Agressão – PNA (que será aprofundado em capítulos posteriores). Esse traz à tona questões morais e éticas importantes, razão pela qual por ele se iniciará o presente tratado. A interpretação do PNA resulta em entendimentos que, infelizmente, beiram a teratologia. Essa constatação coloca em xeque os pressupostos libertário frente à Ética, o que depõe contra a seriedade do movimento.

    Talvez um dos idealizadores dos argumentos mais absurdos já proferidos em sede de libertarianismo seja Murray Rothbard. Em sua questionável obra A ética da liberdade, Rothbard defende, entre outros despropósitos claramente subversivos ao Direito posto, a coisificação das crianças dentro da modalidade propriedade pertencente aos seus pais. Nas palavras do ideólogo libertário⁸⁷:

    (...) a mãe ou qualquer outra parte ou partes podem ser o dono do bebê (...) qualquer tentativa de confiscar o bebê através da força é uma invasão do direito de propriedade dela.

    Como decorrência desse argumento, Rothbard conclui que os pais de uma criança, face aos seus direitos de propriedade, possuem o direito de não lhe oferecer o adequado tratamento estipulado pelas leis estatais, inclusive deixando-a falecer por negligência, eis que o Estado não pode, pelo PNA, obrigar ninguém a agir por leis positivas, somente por leis negativas, como a da não agressão física imotivada (PNA), algo que Block explicita em seu trabalho⁸⁸. Dado o horror desse argumento, transcreve-se na íntegra o pensamento de Rothbard:

    Aplicando nossa teoria ao relacionamento entre pais e filhos, o que já foi dito significa que os pais não têm o direito de agredir seus filhos, mas também que os pais não deveriam ter a obrigação legal de alimentar, de vestir ou de educar seus filhos, já que estas obrigações acarretariam ações positivas compelidas aos pais, privando-os de seus direitos. Os pais, portanto, não podem assassinar ou mutilar seu filho, e a lei adequadamente proíbe um pai de fazer isso. Mas os pais deveriam ter o direito legal de não alimentar o filho, i.e., de deixá-lo morrer. A lei, portanto, não pode compelir justamente os pais a alimentar um filho ou a sustentar sua vida. (Novamente, se os pais têm ou não têm mais propriamente uma obrigação moral ao invés de uma obrigação legalmente executável de manter seu filho vivo é completamente outra questão.) Esta regra nos permite resolver aquelas questões complicadas como: será que os pais deveriam ter o direito de deixar um recém-nascido deformado morrer (e.g., ao não o alimentar)? A resposta é claramente sim, resultando a fortiori do direito mais amplo de permitir que qualquer recém-nascido, deformado ou não, morra. (Ibid., p. 163) (grifei)

    Contra o absurdo argumentativo de Rothbard, cite-se Nozick: uma pessoa viva tem direitos, mesmo contra aqueles cujo objetivo, ao criá-la, consistia em violá-los⁸⁹. Nada mais falacioso do que a defesa de arrogar um direito de violação de direitos de terceiros, como no caso supra: os genitores não possuem a autopropriedade de seus filhos, pois esses últimos são detentores de direitos próprios, inalcançáveis pela pretensa propriedade aludida dos pais.

    Rothbard insiste na distópica idealização do PNA em outras interações sociais. Segundo o ideólogo, todo o homem é autoproprietário de si, o que torna inválida a propriedade de terceiros, que se configuraria verdadeira escravidão. Essa seria, de acordo com Rothbard, a consequência fática da intromissão do Estado por via legal, quando da estipulação de tipos penais que considerem crimes os atos atentatórios à dignidade dos ofendidos: como os indivíduos não possuem a propriedade de sua reputação, não haveria o direito de tê-la resguardada. Assim, seriam plenamente válidas a difamação, o libelo e a calúnia: lei alguma deveria impedir a ocorrência desses atos, muito menos os tipificar como crimes⁹⁰. O equívoco desse argumento é notório, pois a dignidade (que o ideólogo se refere como reputação) é cláusula primeira em qualquer ordenamento jurídico republicano, sendo um direito conferido a todos, independentemente de devaneios quanto a propriedade abstrata dela ou não pelos indivíduos. E, sendo direito, resta garantida quanto a atos ofensivos, o que se dá pela capitulação penal das ações contrárias à sua integridade, o que será mais bem explicado no capítulo relativo à liberdade de expressão.

    O PNA é uma fonte quase que inesgotável de aplicações contrárias ao Direito e à Ética, e infundadas segundo a Sociologia. Pegue-se, por exemplo, outra passagem excêntrica de Rothbard: a defesa do delito da chantagem. O autor entende que essa prática não seria ilegal em uma sociedade livre, pois se trataria de mero serviço de confidencialidade sobre informações de outras pessoas, plenamente negociável, sem que haja qualquer tipo de agressão a direitos do chantageado⁹¹. A defesa distópica da chantagem, entrementes, é didaticamente confrontada por Nozick. Por agregarem valor ou utilidade aos indivíduos, os negócios produtivos são válidos, e sempre ocasionam ganhos em comparação ao custo de oportunidade de os mesmos não existirem⁹². Já as atividades improdutivas, que causam prejuízo, demandariam desembolso contratual dos que sofrem o dano em favor dos que os perpetram. Um chantagista ocasiona dano aos outros, e só é silenciado na razão do desembolso do chantageado. Esse desembolso é pior do que a situação original da ausência do chantagista (o deslocamento da curva de utilidade do chantageado é no sentido da origem, para esquerda e para baixo, o que é pior, na análise ordinal), e jamais supera qualquer benefício, razão pela qual a proibição legal dessa atividade se impõe, a despeito da utópica mercantilização dos delitos defendida por Rothbard⁹³.

    O desequilíbrio argumentativo de Rothbard, em decorrência de sua visão radical do libertarianismo amparado no PNA, também o faz defender o uso da propriedade dos filhos a fim de negociá-los livremente, em um então vantajoso mercado de adoção. A coisificação das crianças é patente nesse caso: em mercados são negociados objetos, e não seres humanos. Para o ideólogo, a posse de filhos permite aos pais sua transferência a outras pessoas, dada a propriedade sobre eles, dentro de um negócio celebrado por contratos voluntários. Daí a defesa de um livre mercado de crianças, consagrado por seu superior humanismo decorrente da liberdade total de todos. Contrariar essa premissa, segundo Rothbard, é agredir o sistema microeconômico de preços livres, gerando escassez do produto: produto, nesse caso, seriam as crianças, objeto de negociação. O controle das adoções, no sistema vigente, seria dado por agências tirânicas do Estado, monopolistas, que não respeitam a demanda existente. A solução de mercado, para o controvertido autor, resultaria em satisfação a todos: pais ofertantes, pais demandantes e as próprias crianças⁹⁴. Milton Friedman aponta sinteticamente o erro desse absurdo argumentativo, ao citar o fato de que os pais não possuem direito de maltratar, matar ou negociar seus filhos quando crianças, pois essas são indivíduos responsáveis em estado embrionário, e não simples objetos manipuláveis por seus tutores⁹⁵. Mas nem é necessário se socorrer de doutrina, em se tratando da defesa de um mercado de adoção: o raciocínio deformado de Rothbard se dá basicamente por desconsiderar que a transferência de guarda de um filho é realizada no interesse da criança, primordialmente, e não no dos pais. O Estado busca proteger a criança a ser adotada, e não os interesses dos pais na sua adoção. O erro argumentativo de Rothbard é decorrência de sua coisificação de tudo, incluindo pessoas, o que beira a desumanidade. A lei, por si só, já descarta essa visão deturpada das coisas⁹⁶.

    1. ÉTICA E MORALIDADE

    Por Ética⁹⁷, entende-se a ciência que diagnostica os imperativos morais, ou seja, quais comportamentos são moralmente aceitáveis, tanto pela finalidade atingida por eles quanto pelos meios utilizados. Divide-se tradicionalmente a concepção de Ética em dois focos:

    (1) finalidade e meios (racional) e

    (2) motivos (subjetivo).

    No caso da finalidade, tem-se a valoração moral do objetivo perseguido. São assim consideradas éticas as seguintes finalidades:

    (1) Justiça (Platão);

    (2) Felicidade (Aristóteles);

    (3) Deus (Tomás de Aquino);

    (4) Autodeterminação do Eu (Fichte);

    (5) Estado (Hegel);

    (6) Consciência absoluta (Green);

    (7) Espírito absoluto (Croce);

    (8) Conservação na moral fechada e renovação na moral aberta (Bergson);

    (9) Vontade de poder (Nietzsche)

    Destaca-se, nesse rol de categorias éticas, a da vontade de poder: Nietzche, como será melhor compreendido em capítulos vindouros, está intimamente associado ao subjetivismo relativista de certos pressupostos nucleares do Libertarianismo. Essa influência é, desde já, tida por problemática e desabona, senão o todo, ao menos a parte dialética eventualmente desenvolvida no âmago libertário, o que lhe trará certo grau de não cientificidade e imoralidade.

    Entendendo ser a Ética uma necessidade de valor, ou seja, eterna e imutável (objetivamente cognoscível), Sheler a categoriza como oposta ao relativismo ético de Nietzsche (problematicidade de valor): nesse último, dar-se-ia uma subjetividade atrelada aos apetites humanos, considerados fins em si mesmos. Ao se combater a relativização niilista, tomam-se os valores ex ante, apriorísticos, independentes dos fins e pré-concebidos em uma hierarquia moral associada à conservação da espécie humana. Hartmann ratifica a ideia de objetividade transcendental dos valores morais apriorísticos, oposta também ao relativismo nietzschiano, ao dispor que eles independem da ação ou do desejo: intuitivamente é possível considerar algo Ético, mesmo sem a persecução volitiva de determinado valor.

    A concepção da Ética como móvel (motivos), a seu turno, é fundada no comportamento volitivo, no objeto da vontade humana (sentimento). Nesse caso, da mesma forma que a Ética do fim e dos meios, o objetivo permanece o mesmo: a sobrevivência humana e a conformação do indivíduo ao cosmos. Essa adequação, que é social, se torna categórica como forma de se obter maiores chances de perseverar aos infortúnios que a vida oferece. A intuição substitui a razão nesse caso.

    São exemplos de objetivos morais, no sentido do móvel humano:

    (1) Reciprocidade (Pródico)

    (2) Respeito mútuo (Protágoras)

    (3) Prazer da sobrevivência (Aristipo, Epicuro, Valla)

    (4) Autoconservação (Hobbes)

    (5) Amor-próprio (Espinoza)

    (6) Prática da virtude (Locke)

    (7) Busca da alegria (Leibniz)

    (8) Felicidade geral (Hutchinson)

    (9) Utilidade geral (Hume)

    (10) Cálculo dos prazeres e dores (Bentham)

    (11) Simpatia (Smith)

    (12) Altruísmo (Comte)

    (13) Imperativo categórico (Kant)

    (14) Adaptação biológica e evolucionista ao meio (Spencer)

    (15) Desejos da espécie em geral (Russell)

    (16) Valores filosóficos mutáveis da vida social (Dewey)

    (17) Abertura ao Outro (Lévinas)

    (18) Exercício concreto da Virtude (Arendt, Gadamer, Ritter, Bubner)

    (19) Estruturas universais linguísticas necessárias ao convívio democrático (Habermas, Apel)

    (20) Imperativos ecológicos e tecnológicos (Jonas)

    (21) Neocontratualismo igualitário e procedimentalista (Rawls)

    (22) Neoutilitarismo social (Hare, Harsany)

    (23) Comunitarismo de tradições históricas e interpessoais (Mac Intrye, Sandel, Tylor)

    (24) Caridade secularizada (Vattimo)

    (25) Solidariedade (Rorty)

    (26) Diferença sexual e Feminismo

    A moralidade, então, seja ela apresentada pela óptica dos meios e fins (razão objetiva), seja ela diagnosticada pela visão dos motivos (sensação subjetiva), é sempre orientada à preservação humana, à conservação do indivíduo dentro do convívio social estabelecido, à evolução sustentável do homem frente aos demais. Toda e qualquer filosofia moral e ética consagra-se pelo aspecto dialógico, ou seja, para além da individualidade isolada.

    2. SÍNTESE

    Daí a inadequação do libertarianismo aos pressupostos éticos e morais: por ser uma ideologia voltada ao individualismo autorreferido, despido de uma arquitetura social palpável e, acima de tudo, negador da reciprocidade humana, jaz, assim, no limbo filosófico, tal qual o niilismo e seu relativismo, esses últimos sepultados pela atual fundamentação antiantropocêntrica da ética de Nietzche.

    Os libertários, e em especial os anarcocapitalistas, opõem-se às regras de conservação do indivíduo social, coisificam tudo ao seu redor e negam a objetividade das regras de convivência, que se dão pelo direito e pela materialização do Estado (mesmo que mínimo). O relativismo niilista dessa ideologia a torna, inexoravelmente, natimorta: por negar a moral e a ética, acaba por se tornar mera especulação teorética, sem apoio de fundações minimamente seguras em prol de sua defesa.

    Dedutivamente se conclui, então, pela sua impossibilidade fática, o que se corrobora pela não ocorrência fenomênica de qualquer sistema próximo a esse devaneio filosófico.


    86 1959, p. 58

    87 2010, p. 162

    88 2015, p. 44

    89 2011, p. 48

    90 2009, Capítulo 2, Item 13

    91 Ibid., nota de rodapé 150

    92 Ibid., p 107

    93 Ibid., pp. 109-110

    94 2010, pp. 166-167

    95 2015, p. 63

    96 Lei 8.069/90, arts. 28, 39 e 43

    97 ABBAGNANO, 2012, pp. 442-451

    III. DA NÃO CIENTIFICIDADE: A AUSÊNCIA DE MÉTODO

    Creio que uma discussão razoável é sempre possível quando os interlocutores se interessam pela verdade e estão dispostos a dar atenção ao que dizem as várias pessoas que se manifestam.

    KARL POPPER⁹⁸

    Um dos maiores desafios ao se analisar o libertarianismo e o anarcocapitalismo é encontrar, na boa doutrina, previsão metodológica e análise histórica de seus pressupostos. Os economistas e filósofos mais consagrados jamais se debruçam sobre tal assunto, seja porque ele é deveras recente, seja porque não reuniu, até o momento, método adequado para ser considerado um paradigma de pensamento válido a ser contrastado perante as demais correntes de pensamento. O verbete anarcocapitalismo não foi localizado, durante o presente trabalho, em nenhuma obra consagrada na área de Economia, tais quais dicionários de economia ⁹⁹, de filosofia ¹⁰⁰ e de política ¹⁰¹, ou em manuais de história do pensamento econômico ¹⁰² ou de microeconomia ¹⁰³ e macroeconomia ¹⁰⁴. Não há catálogo de seus primados, a não ser de forma dispersa nas obras de seus alegados idealizadores, a saber: Hoppe e Rothbard. O próprio economista da escola austríaca, Ludwig Von Mises, então sinalizado como inspirador do movimento, não concatena pressupostos metodológicos sobre esse assunto, tampouco Hayek, sucessor daquele, o que indica que os mesmos não podem ser encarados como formuladores de ideias anarcocapitalistas. Os defensores desse movimento têm, como hipótese, a existência de um sistema capitalista sem a presença do Estado.

    O patrono do método científico é Galileu Galilei (1564-1642). O famoso astrônomo revolucionou o mundo a partir de descobertas que seguiam o método científico. Tal método estaria entre o racionalismo metafísico puro (elaboração de hipóteses tautológicas dedutivas que se comunicam entre si) e o empirismo total (relacionamento de regras indutivas a partir da observação pura). Teorias devem se basear na experiência para a sua credibilidade, algo que une a dedução metafísica com a indução materialista, até então irreconciliáveis ao tempo de Galileu¹⁰⁵. O anarcocapitalismo, dessa forma, deve preencher tanto o aspecto racionalista como o empirista, a fim de que seja considerado como um paradigma científico.

    1. METAFÍSICA

    Do ponto de vista racionalista, o libertarianismo não preenche o requisito de universalidade, ou seja, o de que seus postulados sejam iguais a todos e em todos os lugares, em todos os momentos da história. Muito pelo contrário: em sendo uma ideia excêntrica, jamais provou ser recorrente, muito menos a regra das sociedades pós-barbárie. Aprioristicamente não se concebe uma sociedade capitalista sem a presença do Estado, pois, como poderá ser visto em capítulos próximos, ambos são interdependentes, não sendo possível abstrair uma sociedade que prima pela propriedade privada sem a proteção estatal dela. Ou seja, não há, em termos platônicos, uma dimensão suprafísica do libertarianismo: esse movimento não é transcendental nem hiperurânico¹⁰⁶.

    Pelo método de Descartes, deve-se descartar as opiniões e as incertezas¹⁰⁷, de forma que:

    (1) o método exige a impressão primeira de veracidade;

    (2) a divisão da essência seja defendida em tantas partes quanto possível;

    (3) haja uma crescente complexidade na análise dos objetos fracionários e

    (4) se enumerem todas as frações da essência de forma a vislumbrar o composto reunido racionalmente¹⁰⁸.

    Assim, não é racional ou metafísica a previsão do libertarianismo, pois ele não é, em primeiro lugar, intuitivo, ou seja, não se aplica a premissa do Penso, logo existo, muito pelo contrário: é necessária uma abstração que afaste a maior parte das hipóteses factuais da vida para validá-lo como sistema.

    2. EMPIRISMO

    Já em termos empíricos, a partir do qual se concebe o conhecimento tendo em vista o exame da atividade da própria mente (com a necessária experiência), assume-se, em Locke, o combate da teoria das ideias inatas e a defesa de que todos os conteúdos do conhecimento procedem da experiência, bem como em Hume, onde as sensações surgem por meio do contato com as coisas externas, as quais chegam ao intelecto pelos sentidos¹⁰⁹. Nessa concepção idealista¹¹⁰, sucumbe novamente o libertarianismo, pois não se observa experiência alguma de seus postulados na história: com a evolução da divisão do trabalho, da produtividade e da propriedade privada, a sociedade cada vez mais se encontra sob

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