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E-book352 páginas5 horas

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Sobre este e-book

São quatro contos: o primeiro, historiado na cidade do Rio de Janeiro, é sobre a obstinação de um espírito-mãe à procura de seu bebê, desaparecido em um acidente; o segundo, é sobre a saga de um homen simples da roça em busca de seu sonho de voar; o terceiro, é uma ficção futurística, iniciada com a fuga inexplicável de um cão de seu próprio dono; por último, um conto de época sobre a arte de fazer da venda de velas um bom negócio.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de jul. de 2023
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    Contos & Descontos - Ribeiro J M

    À Dona Wanda, minha mais preciosa inspiradora.

    SUMÁRIO

    1.  ONDE ESTÁ MEU BEBÊ?

    Obstinação de um espírito-mãe em busca de seu bebê .3

    2.  HELEDINO

    A saga de um homem-pássaro nascido na roça..... 8

    3.  MEU CÃO ME ABANDONOU!

    Futurista: A fuga de um cão que mudou uma cidade ....153

    4.  O VENDEDOR DE VELAS

    Um conto sobre a arte de vender velas ..........................275

    Boa leitura!

    RIBEIRO J.M.

    ONDE ESTÁ MEU BEBÊ?

    N

    ão tinha absolutamente nenhuma ideia do que estava fazendo naquele lugar úmido e de ruídos estranhos. Não se lembrava do momento exato de sua chegada e nem como teria conseguido alcançar aquele local entre milhares de outros interessados que haviam estado ao seu lado, insistentemente, tentando vencer aquela corrida. Só se recordava da força invisível e incontrolável que lhe mantinha à frente de todos, talvez pela ajuda de algumas mitocôndrias a mais que possuísse ou, num contexto quântico, sob a influência da energia que comanda o acaso dos destinos no universo.

    Conseguiu! Havia vencido, cumpriu sua missão: encontrou seu outro eu, sua parte complementar para transformar-se, como em um casulo, num outro indivíduo, uma nova identidade, um microcosmo de energia própria, autônomo, definido por milhares de células, cada uma delas com sua função específica. Certo, haveria ainda um longo caminho à frente para as transformações determinadas pela natureza, mas seria uma nova etapa; o momento era apenas de comemorar o que lhe fora proporcionado pela grande sabedoria que conduzia sua existência naquele momento.

    Outra grande mudança também aconteceu: foi o nascer da consciência, da percepção de sua própria vida, sinalizada pelo pulsar de seu pequeno coração, similar ao som, surdo e compassado, que ouvia ao longe desde que ali havia chegado. A partir daí, viu-se crescer como um indivíduo único, dotado de energia e de uma insondável alma interior, distinta para cada ser desse planeta. Seu cromossomo faltante a identificava fêmea, feminina, suave e determinada, como todas o são quando se trata da preservação da espécie. Desde então passou a ser Ellae. Aos poucos foi interagindo com aquele ser que a abrigava, participando de seus sentimentos e emoções, formando um laço inseparável, único e insubstituível, iniciado com o pulsar de dois corações para tornar-se, agora, uma só vida. Compartilhava as sensações de bem-estar, de carinho e atenção, as vezes alternadas com sentimentos de ansiedade e de insegurança, principalmente. Seria ela objeto de preocupações? Na verdade, esses momentos de incertezas lhe provocavam uma profunda depressão, deixando-a fraca e desolada. Por outro lado, sentir-se acariciada por amor lhe dava um vigor inesgotável, tornando seu desenvolvimento célere, uma intensa explosão de células esculpindo seu corpo e seus primeiros contornos.

    Seu crescimento rapidamente a tornou exigente de espaço e, ao final de algum tempo, podia perceber os incômodos que provocava em seu hospedeiro ao tentar movimentar-se. Estava na hora de se preparar para a saída. Seria uma outra vida que iria começar. Mas Ellae não gostou nem um pouco quando começou a reação daquele corpo que a abrigou com tanto carinho, mas que agora se contorcia para expulsá-la. Sentia-se culpada por estar causando tanta dor e angústia ao despedir-se de quem jamais pensaria magoar. Deveria haver outro sentido para justificar o sofrimento daquele momento da entrega de um novo ser, tão aguardado e amado até então. Não parecia havia lógica nesse ato da vida.

    E aconteceu...

    Ela tentava abrir seus olhos, mas aquela enorme luz branca a cegava completamente. Sua visão, ainda um pouco ofuscada, foi sua primeira descoberta. Não mais sentia o ambiente acolhedor de antes, na verdade, não tinha a menor ideia de onde estava, além da necessidade de respirar... como assim, respirar!? Era sua segunda descoberta. Passou a sentir também um ambiente diferente ao redor e ruídos até então nunca ouvidos. Conhecia somente o som daquele pulsar acolhedor agora desaparecido, estaria ela sozinha, abandonada? Começou a se desesperar, a movimentar-se sem coordenação e, pela primeira vez, ouviu sua voz, ou melhor, seu choro, alto, forte, doído aos seus próprios ouvidos.  Algo a ergueu, parecia estar em pleno ar, sem segurança, equilíbrio, abrigo, apenas um apoio instável a movimentá-la, num balanço constante, endurecido. Sentia falta daquele espaço acolhedor e, principalmente, daquele ruído surdo, gostoso, que a fazia dormir suavemente. Estava vivendo a saudade, sua última descoberta naquele dia de seu nascimento.

    ◆◆◆

    Tudo que ela havia sonhado nos últimos dez anos estava ali naquela imensa barriga que parecia prestes a explodir. Era uma menina, ainda não havia decidido pelo nome e por isso a chamava simplesmente Ela, ao contar e recontar sua gravidez para quem quisesse ou não ouvir a história de sua luta para ter aquele bebê. E não era para menos. O insucesso de engravidar já lhe havia custado dois casamentos e a expectativa de um filho tinha se transformado em uma louca obsessão. Nenhuma coleção de cães e gatos conseguia apaziguar seu coração berçário e nenhum companheiro ou companheira conseguia competir com essa carência. Na verdade, sua história de vida a remetia para a busca de afeto desde sua gestação e nascimento a trinta e cinco anos atrás. Naquele dia, ao vir ao mundo, não havia ninguém interessada nela por trás dos vidros das incubadoras. Ninguém mesmo! Nem mãe, pai, avós, o que seja. Sua mãe, assim que se refez do parto, saiu para comprar cigarros e ninguém nunca mais a viu. Apenas uma tia esquisitona foi avisada e apareceu naquela maternidade comunitária uma semana depois, assim mesmo parecendo mais interessada em negociar seu passe do que dar-lhe cuidados.  Na sua primeira infância, foram dois casais candidatos a receber aquela menina bonitinha e chorona. Dois lares temporários e algum tempo depois, lá estava ela de volta à casa da tia esquisitona, da última vez, já com quase cinco anos. Mas isso foi passado. Conseguiu sobreviver e ter uma juventude casual, sem herdar os comportamentos indesejáveis da tia ou da mãe que não conheceu. Sua meta era ser independente e constituir a família que nunca teve.  Casou-se, mas não teve sorte; viveu uma separação pela falta de interesse do marido em buscar tratamento para um esperado filho. Nova tentativa, porém, sua angústia para ter um filho tornou-se maior, fazendo-a infeliz e má companheira devido à frustração em engravidar.  Fez centenas de exames buscando uma explicação para os insucessos. Nada anormal com sua fisiologia.

    Foi então que ouviu um conselho providencial de sua tia esquisitona em uma das visitas mensais que lhe fazia: Escute menina, esse negócio de não ter filho está te fazendo mal, tu tá um caco, sem brilho, apagada. Faz o seguinte, já que tens dinheiro, procure um desses psiquiatras bonitões para te ouvir e tirar essas ideias da tua cabeça. Quem sabe, consegues até segurar um terceiro casamento embora a ideia de casar-se novamente não fosse relevante, ouvir conselhos profissionais talvez pudesse realmente lhe fazer bem. Foi o que fez. O psicanalista não era tão bonito quanto sua tia havia recomendado, mas sua ajuda no ouvir foi realmente de grande valia e o tema das conversas esteve naturalmente ao redor de seu passado de criança abandonada e das marcas de rejeição deixadas pelas adoções frustradas. Falar de velhas feridas, ainda abertas, foi uma forma radical encontrada de curar dor com mais dor, mas trouxe uma paz profunda e o alívio das dores da mente, das quais nunca nos damos conta até o momento que cessam; e quando nossa poderosa mente respira aliviada até milagres podem acontecer.

    E foi certamente esse tipo de milagre que havia colocado a filha que estava em seu ventre, agora a caminho da maternidade, quando aconteceu o inesperado.

    ◆◆◆

    Sua primeira e única preocupação ao acordar foi saber de seu bebê. Tinha noção de que algo havia acontecido, mas não sabia dizer o quê; tudo estava apagado na memoria desde que entrou naquele taxi a caminho da maternidade. Devagar, abriu os olhos e se viu em um quarto equipado como se fora de um hospital, com aparelhos clínicos e monitores sinalizando em pequenas luzes e gráficos o que se passava com uma pessoa deitada em uma cama próxima, com vários tubos conectados nos seus braços e boca. Mas, espere aí! Aquela pessoa parecia ser ela mesma. Como poderia estar vendo a si própria imobilizada naquela cama? Havia algo errado com tudo aquilo, uma alucinação, talvez efeito de drogas que poderiam ter-lhe dado para prepará-la para o parto. Ela se via de pé, com as mesmas vestimentas que trajava no caminho da maternidade, nada a ver com aquela pessoa acamada, pálida, de olhos fechados e respiração quase imperceptível. Aproximou-se, cautelosamente, para melhor avaliar suas feições e, sem dúvida, era como ver-se no espelho, a despeito da cabeça estar parcialmente enfaixada e haver sinais de ferimentos em uma das faces. Nesse momento, olhou para sua barriga. Meu Deus, exclamou, o bebê já havia nascido, estava sem nenhum sinal da gravidez, totalmente sem aquela protuberância enorme, que tanto a incomodava ultimamente. Deveria haver alguma explicação para tudo aquilo que estava acontecendo, embora nada lhe parecesse ser minimamente razoável.  Resolveu então verificar o prontuário aos pés da cama. Lá estava seu nome, a data de internação, três meses atrás, e uma série de termos médicos indecifráveis, exceto uma anotação: Paciente em Coma – Grau 4. A visão dessas informações a paralisaram. Estaria se vendo naquela cama em estado de terminal? Seria ela, parada ao lado da cama, um ser espiritual a contemplar seu próprio corpo físico? Teria morrido naquele instante e estaria seu ser a caminho do infinito, deixando para trás seu corpo? E seu bebê, o que teria acontecido com ele, onde estaria? Teria sobrevivido ao mesmo evento que a colocara em coma? Ela precisava ter essas respostas e não seria após tantos sacrifícios, tantos anos de espera, tanto amor contido em seu coração, que iria abandonar seu bebê. Jamais partiria para lugar algum sem antes encontrá-lo, jamais o abandonaria, mesmo contrariando as regras divinas. Neste instante entrou uma enfermeira em direção a cama. Sequer a olhou, passando ao seu lado como se não existisse, indo direto consultar os equipamentos.  Mas como ela não a viu parada ali, bem ao lado da cama? Seria impossível, mesmo sendo uma grande distraída aquela moça! Então, tímida e receosa, levantou a mão e disse:

    — Olá! Nada, nenhum movimento, nenhum aceno, sequer um piscar diferenciado de olhos da enfermeira em sua direção. 

    Assustada, tentou novo contato, desta vez, elevando um pouco a voz:

    — Olá enfermeira, bom dia!  Nada novamente.

    Aproximou-se lentamente, chegando a poucos centímetros dela, quase sentindo sua respiração. Nenhuma reação! Então falou bem alto, acenando com as mãos:

    — Ooooiii!

    Nada, nenhuma resposta novamente, sequer qualquer movimento a seu favor.

    Decidiu ser um pouco mais rude e segurar a enfermeira pelo braço, mas, ao fazê-lo, sua mão penetrou no corpo, desaparecendo como se fosse uma imagem holográfica. Como poderia ser? No que havia se tornado?  Uma imagem de luz, sem substância? Haveria morrido e seria agora uma alma invisível, a caminho da eternidade? Totalmente desorientada pelo que estava acontecendo, aproximou-se mais da cama para confirmar se pessoa ali deitada estaria viva. Sim, estava, respirava cadenciada e suavemente. Portanto, pelas suas crenças, não poderia ser ela alma de um corpo ainda vivo. Para se assegurar de suas conclusões, resolveu também tocá-lo, segurando uma de suas mãos, estava fria. Prosseguiu tateando seus dedos ao longo daquele braço inerte e pálido, sentindo a pele suave e fria. Respirou aliviada. Conseguia tocar e sentir aquele corpo ali deitado, mas não a enfermeira ali ao seu lado.  Ao final de alguns minutos a enfermeira terminou seu trabalho e saiu do quarto. Decidiu segui-la, caminhando juntas por um extenso corredor até chegarem a um balcão onde havia uma atendente, que sequer a cumprimentou. A enfermeira deixou ali suas anotações, se despediu. A atendente continuava a ignorá-la. Irritada, acionou a campainha sobre o balcão tentando obter um leve tilintar. Nenhum ruído ou reação da atendente. Mais irritada, socou aquela campainha várias vezes sem qualquer resultado. Continuava com sua presença ignorada. Desolada, retornou ao quarto, atravessando a porta fechada; havia se tornado um ser imaginário, indefinido.

    Seus problemas como espírito invisível pouco importavam, pensou reagindo à sua crise depressiva. Seu único objetivo naquele momento seria descobrir o que teria acontecido com seu bebê; nada importava de resto, ela havia lutado para ter aquela menina a vida toda e não seria agora que iria desistir, sendo um espírito ou não! Teria que agir logo, mas sua decepção consigo mesma era enorme, sentia-se inútil naquele corpo imaterial, incapaz de ser visto, tocado ou ouvido. Como poderia ir atrás de seu bebê? A única coisa a perceber seu toque físico tinha sido seu próprio corpo prostado naquela cama.  Aproximou-se dele segurando uma de suas mãos, apertando levemente seus dedos em torno dela, tentando buscar um apoio para sua frustração. Para sua surpresa, seus dedos foram desaparecendo suavemente naquela pele fria, ao mesmo tempo que sentia movimentos daquela mão até então inerte. Conseguia movê-la! Havia lhe dado vida! Permaneceu olhando por alguns segundos aquele milagre e, em seguida, recuou seu o braço, imediatamente a mão fria quedou-se novamente sem movimento junto ao corpo. Ela havia feito seu corpo físico reagir, mexer, criar vida. Encheu-se de esperanças! Quem sabe poderia utilizá-lo para comunicar-se com o mundo real, enviar mensagens, pedir ajuda, falar com alguém...quem sabe, sua tia esquisitona, embora não acreditasse que ela pudesse entender o que estaria se passando, mas ela era a única chance que dispunha no momento. Para testar seus poderes cinéticos, sentou-se à beira da cama e hesitante se inclinou sobre aquele corpo inerte. Aos poucos foi sentindo o efeito da gravidade sobre seus movimentos, a pressão de seu corpo sobre a cama, o respirar sufocado por aquela máscara de oxigênio e todos aqueles eletrodos fixados em seu peito. Sentiu sua mente confusa por uns instantes, sem instintos, sem memórias ou qualquer lembrança. O que estava fazendo naquele corpo. Por que estava ali? Sentia uma vontade enorme de dormir, um sono intenso, profundo. Mas algo, mais forte, a fazia reagir. Então, num grande esforço, abriu seus olhos e se viu envolvida naquele corpo. Movimentou suas mãos para certificar-se de tê-las funcionado. Queria continuar, talvez levantar aquele corpo, mas sentia-se fatigada, melhor descansar, fechar os olhos, dormir, uma grande vontade de dormir, muito, para sempre, talvez...mas, lembrou-se de seu bebê! Tinha de reagir e, num esforço infinito, abriu seus olhos e levantou-se da cama, olhando para si mesma, ali deitada, imóvel como sempre. Foi sua primeira experiência de reencarnação.

    A localização de sua bebê não seria uma tarefa fácil levando em conta sua incapacidade comunicar-se com os vivos e de movimentar objetos, já que a telecinese ainda não fazia parte de suas habilidades.  Desta forma, a única maneira de pedir ajuda seria usando o corpo que jazia naquela cama; entretanto, tudo deveria ser muito bem planejado para não chamar atenção de pessoas ligadas a fenômenos paranormais., que iriam transformar aquele hospital em um centro de esoterismo e de peregrinação, totalmente avessas à discrição e credibilidade na ajuda solicitada. O primeiro passo seria deixar uma mensagem que pudesse chamar atenção das enfermeiras. O segundo passo, mais difícil, seria escrever algo, bem suscinto, mas que transmitisse, sem alardes, o apelo para a busca do bebê.  Aproveitando a proximidade da troca do plantão, inseriu-se novamente em seu corpo, moveu um dos braços, retirando o cateter intravenoso. Apoiando as costas, escreveu sobre o lençol azul com o líquido que escorria lentamente: I Z A H Restava agora aguardar a reação de quem visse a mensagem e, mais ainda, a de sua tia Izah, caso alguém do hospital ligasse lhe perguntando sobre aquela mensagem.

    ◆◆◆

    Logo chegou a enfermeira olhando diretamente as letras I Z A H escritas no lençol, já quase apagadas pela evaporação. Bastante desconfiada do que estava vendo, fez algumas fotos com seu telefone, recompôs o cateter caído sobre a cama na agulha e se retirou apressadamente indo falar com a atendente.  — Veja essas letras estranhas escritas no lençol da cama da paciente comatosa, disse a enfermeira mostrando a foto. Quem escreveu isso  usou o soro do cateter e ainda deixou desconectado! — Não sei dizer, respondeu a atendente, lendo a mensagem. Que coisa esquisita, a enfermeira de plantão não lhe passou nada?

    — Não! Acho que as letras foram escritas há pouco! Veja, a primeira letra está quase seca. Nem dá para fotografar direito, respondeu a enfermeira. Acho que a doutora chefe da ala precisa ver isso antes de qualquer coisa.

    Minutos depois chegou Dra. Staehla, que analisou a foto apreensiva, perguntando imediatamente:

    — Quem estava no plantão anterior?  Peça a ela para me procurar assim que chegar. E não mexam em nada no quarto, por favor.

    A mensagem havia funcionado: tinha sido vista e fotografada. Restava agora torcer para que fizessem contato com sua tia Izah e que ela viesse visitá-la, quem sabe, trazendo notícias de sua bebê.

    A enfermeira do plantão anterior afirmou categórica não ter visto as letras no lençol e que jamais deixaria a paciente sem medicação. Dra. Staehla, estava diante de um fato inusitado e muito grave. Deixar um paciente em plena UTI, com uma mensagem cifrada escrita no lençol, ia além de uma brincadeira de mau gosto. Alguém, estava querendo prejudicá-la, como responsável que era por aquela ala do hospital. Melhor seria pesquisar um pouco mais e ter algumas respostas antes de levar o caso ao conhecimento da direção do hospital.

    A sequência de letras poderia ser o nome de alguém, ou uma palavra estrangeira.  Staehla decidiu consultar o prontuário da paciente para ver de havia alguma pessoa com aquele nome. Lá estava: Izah; identificada como tia, única parente e com número de telefone para contato. Resolveu então ligar para aquele número.

    — Poderia falar com a Sra. Izah, perguntou quando alguém atendeu.

    — Sou eu mesma, mas não tenho interesse nem dinheiro para comprar nada!

    — Não se trata disso, por favor. Eu sou Dra. Staehla e falo do Hospital Geral da Cidade, a senhora, por acaso, tem uma sobrinha internada aqui?

    — Sim, ela morreu? Tem meses que está internada aí depois do acidente, pobrezinha. Nem visita pode receber!

    — Ela está internada conosco e continua em isolamento total. Nós estamos ligando apenas para confirmar alguns contatos dos pacientes. É só uma informação de rotina, não se preocupe. Muito obrigado por nos atender. A senhora confirma ser tia da paciente? Pelo nosso cadastro...

    — Sou a única parente dela! Exclamou a tia, interrompendo a conversa. Ela não tem mais ninguém. Fui eu que a criei e tudo que é dela me pertence por direito, como única herdeira, se é disso que a doutora quer saber.

    — Fique tranquila senhora Izah. Está tudo bem com ela e só estamos confirmando alguns dados, como disse. Qualquer outro fato entraremos imediatamente em contato com a senhora. Staehla estava surpresa ao terminar a ligação.

    Havia realmente uma tia com aquele nome, mas que parecia mais interessada na morte da sobrinha do que em outra coisa. Talvez fosse melhor esquecer essa senhora já que fora informada do estado da sobrinha e não havia mencionado qualquer intenção de ir vê-la.

    Vou deixar passar o tempo ver o que acontece e assim, não preciso me expor agora junto à administração do hospital com esse incidente, refletiu Staehla consigo mesma. Tenho que descobrir quem fez essa brincadeira, colocando em risco a vida do paciente. Pelo visto, conhece a tal da tia Izah.

    Os dias se passaram e o aparente insucesso da mensagem tornou infinita a pressa para achar seu bebê, pois temia não haver o dia seguinte para sua existência naquele hospital. Talvez devesse ser mais incisiva, colocando um apelo mais forte no lençol. Na manhã seguinte havia novas letras: B E B E

    O olhar da plantonista para o lençol foi quase de terror, saindo em disparada para avisar novamente a atendente de plantão. Em breve, toda a ala do hospital estaria sabendo da segunda mensagem misteriosa, fazendo uma fila na porta da UTI.

    Ninguém havia ainda tocado em nada até a chegada da Dra. Staehla, que permaneceu pálida e calada ao ver aquelas letras.

    — Que brincadeira é essa de novo?

    Não haveria outra explicação, senão uma falsa mensagem escrita por algum interessado em desacreditá-la perante seus superiores. A conclusão era óbvia. Alguém, talvez entre aquelas pessoas aglomeradas ali na porta do quarto, poderia ser a responsável por armar aquela farsa. Deveria ser isso! Queriam que ela se mostrasse uma tola, amedrontada, diante da direção do hospital. Seria, certamente, alguma invejosa de sua posição no comando da Ala Intensiva. Tinha que tomar providências urgentes para descobrir o autor daquelas palavras. O que seria BEBE? Um filho da paciente, por acaso? Staehla verificou novamente o prontuário, nada além da menção à tia interesseira. Talvez devesse falar pessoalmente com ela, antes de causar qualquer repercussão no hospital.

    ◆◆◆

    O Uber parou defronte uma vila modesta de casas em um bairro afastado do centro, típicas construções do início do século IXX, que constituíam as chamadas vilas de casas dos bairros da zona norte do Rio de Janeiro. Aproximou-se da casa e antes de tocar a campainha foi anunciada pelo latido de um cachorro vizinho. — Quem é, perguntou uma voz feminina vinda da casa.

    — Sra. Izah? Sou do hospital da cidade e liguei há dois dias, poderíamos conversar pessoalmente?

    A porta se abriu vagarosamente, aparecendo uma mulher de seus quase setenta anos.

    — Quem é você? O que quer conversar comigo?

    — É sobre sua sobrinha internada no hospital. Meu nome é Dra. Staehla ...

    — Minha sobrinha morreu, doutora?

    — Não, não...ela está bem, quero dizer, continua estabilizada. Não é por isso que estou aqui. É sobre duas mensagens encontradas na cama dela, uma delas citando você.

    — E o que dizem as mensagens?

    — Não sabemos exatamente, por isso estou aqui

    — Não sei de nada, mas deve ser algo importante que ela quer me dizer...

    — Sra. Izah, a primeira mensagem diz apenas seu nome IZAH. Na segunda está escrito BEBE. Seria referência a algum filho da paciente?

    — Como vou saber doutora, mas deve ser algo importante, não acha? No caso do meu nome deve ser relacionado à herança dela. Minha sobrinha era muito bem de vida, tem um apartamento na Gávea, muito bom que eu sei. No caso do bebê, pode ser sobre a filha que ela estava esperando.

    — Filha? Ela estava esperando uma filha. Esta informação não me foi passada. Onde está a menina?

    — Não sei doutora. Ela sofreu um acidente quando ia para a maternidade, mas ninguém me avisou nada na ocasião.

    — A senhora poderia me dizer mais sobre isso?

    O olhar de Staehla se acendia na medida em que Izah fazia uma rápida biografia de sua sobrinha, na qual se inseria como a tia-mãe desolada pela sua ausência desde que ela havia sofrido o acidente. Recordou a vida órfã da sobrinha, abandonada pela própria mãe. Citou a luta de sua sobrinha para ter um filho, sonho infelizmente frustrado pela fatalidade de um acidente às portas da maternidade. Disse nada saber sobre o bebê, e só ter sido informada do acidente algum tempo depois, quando ela não apareceu para a costumeira visita mensal.

    ◆◆◆

    De volta ao hospital Staehla relembrou o relato da tia Izah sobre o acidente da sobrinha ocorrido em condições tão peculiares. Lhe havia chamado atenção o desconhecimento do destino bebê. Haveria ele sobrevivido? Neste caso, onde estaria? Talvez devesse consultar o registro da ocorrência policial e o atendimento da emergência hospitalar para identificar se algum outro parente ou pessoa teria se apresentado como responsável familiar. Embora a citação do bebê mexesse com seus sentimentos, Staehla mantinha sua convicção de que alguém no hospital queria ridicularizá-la diante da administração ao estar postando mensagens na cama de um paciente comatoso sob sua responsabilidade. Não fosse pelo ridículo de instalar uma câmera de vigia no interior de uma UTI, já teria proposto essa solução. Quanto à tia Izah, depois do quinto telefonema, em apenas uma semana, Staehla resolveu atendê-la e marcar a visita. Não foi fácil ajustar uma data para breve, porém alegou razões humanitárias para atender aquela única parente em desespero diante de sua sobrinha em estado terminal. Seria melhor assim, pensou, pois, quem sabe, ficaria livre do pesadelo de ter uma nova mensagem do além aos pés da cama de sua paciente. 

    Mal sabia o que viria pela frente.

    Deveria planejar seu encontro ou, melhor, da tia com aquele seu corpo prostado na cama.  Não seria capaz de dar-lhe vida espontânea, mas talvez pudesse sintonizar sua energia remanescente com a de sua tia e de algum modo empático, envolvê-la e sensibilizá-la na procura pela bebê.

    Visita confirmada, lá estava tia Izah no horário combinado no hall da ala de UTI’s, já com o crachá e as precauções sanitárias devidas. Nada de celular ligado e seriam apenas cinco minutos no quarto, sem fazer barulho ou incomodar pacientes vizinhos, eram suas instruções. Estaria acompanhada de uma enfermeira para o caso de alguma pergunta. Tia Izah entrou no quarto olhando desconfiada para outros pacientes na medida que a enfermeira a encaminhava para uma cama. Nela estava uma moça pálida, com uma máscara na boca e vários fios e pequenos tubos conectados, com olhos fechados, parecendo adormecida naquele momento. — Esta é sua sobrinha. A senhora a reconhece? Perguntou a enfermeira.

    — Pobrezinha. Está bem mais magra e pálida. Ela me ouve? Me entende? Gostaria de fazer algumas perguntas.

    Solícita, a enfermeira orientou a tia:

    — Aproxime-se com cuidado e tente dizer algo baixinho junto ao seu ouvido. Quem sabe, ela poderá reconhecer sua voz.

    Tia Izah se aproximou, colocou uma das mãos em concha, e disse baixinho:

    — Olá minha sobrinha, sou eu sua tia Izah, lembra-se? Preciso pagar algumas despesas do seu apartamento e queria saber se tem algum dinheiro guardado. Pode me dizer?

    Não haveria nenhuma chance em contar com sua tia para achar sua bebê. Ela estava viva, com certeza e jamais deixaria de tentar encontrá-la! Sua esperança voltou-se novamente para as mensagens. Havia visto o interesse da Dra. Staehla na narrativa de sua tia Izah quando se referiu ao destino da bebê. Talvez ela pudesse pesquisar se fosse incentivada por uma nova mensagem. Foi com essa intenção que preparou a terceira mensagem: S T A E L A

    No dia seguinte, uma grande comoção se espalhou na ala das UTI’s quando souberam da nova mensagem da paciente comatosa, desta vez com seis letras, a primeira ilegível, conforme captada na foto enviada à atendente de plantão.  Parecia ser o nome da doutora. Só se ouviam pelo corredor comentários sobre o significado daquela espécie de charada. Estava claro, desta vez, o envolvimento da doutora. O grande porquê era a forma inusitada que continuava sendo utilizada postando as letras no lençol.

    ◆◆◆

    Desta vez, devido ao burburinho dos corredores, não haveria saída: o caso das mensagens teria que ser levado ao conhecimento da Administração. Foi o que Staehla fez ao apresentar-se diante da Diretora Geral do hospital e exibir cada uma das mensagens deixadas, além de resumir sua visita à tia da hospitalizada. A informação sobre as mensagens preocupou a Diretora. Seria o fim de sua carreira enfrentar uma crise pública sobre mensagens para o além, enviadas por pacientes moribundos.  A pergunta óbvia não faltou: 

    — A imprensa já sabe, doutora?

    — Ainda não, pelo que sei,

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