Etiquetas (i)morais: Coletânea de contos sobre a vida ordinária
De Miguel Amy
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Sobre este e-book
Nesta coletânea, o bem e o mal, o santo e o pecador, a Zona Sul e os subúrbios, encontram-se no solo comum dos afetos, desilusões e tragédias humanas: ingredientes de um mundo que tem o cheiro da vida, mas também o gosto da morte.
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Etiquetas (i)morais - Miguel Amy
Copyright © 2023 de Miguel Amy
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Labrador.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Jéssica de Oliveira Molinari - CRB-8/9852
Amy, Miguel
Etiquetas (i)morais : uma coletânea de contos sobre a vida ordinária : volume 1 / Miguel Amy. -– São Paulo : Labrador, 2023.
ISBN 978-65-5625-328-2
1. Contos brasileiros I. Título
23-1860
CDD B869.3
Índice para catálogo sistemático:
1. Contos brasileiros
Editora Labrador
Porquanto tudo o que em trevas dissestes será ouvido à luz do dia;
e o que sussurraram aos ouvidos dentro de casa,
será proclamado dos telhados.
Lucas 12:3
SUMÁRIO
PRÓLOGO: DA PARÁBOLA DA MULHER DESVAIRADA
DO CONGRESSO
DA DESCARADA
DA CONDESSA
DA BRINCADEIRA
DO NAMORADO
DO DIA DAS MÃES
DO ORGASMO
DO BANHO
DO PASSEIO EM FAMÍLIA
DA TOCATA
DO MATRIMÔNIO
DAS COLUNAS DO TEMPLO
DO DESCONSTRUÍDO
DO PASTOR
DA PROFECIA
DA CEGUEIRA
DOS CONVERTIDOS
DOS BENFEITORES
DA PORTELINHA
DA BELA DA NOITE
PRÓLOGO:
DA PARÁBOLA DA MULHER DESVAIRADA
Tendo, talvez, a mais caótica das origens, Eva parecia condenada a arrastar sobre a terra uma desproposital existência. Se algo lhe fazia sentido, passava-se unicamente pela ânsia de sentir. Pouco lhe importava o quê. Prazer e dor tornaram-se, para ela, faces de uma mesma moeda. Oscilando entre o deleite mais extasiante e a tortura mais abissal, parecia buscar afastar de si todo e qualquer vestígio de quietude. A certa altura, porém, as velhas artimanhas foram se mostrando obsoletas. Crescia em torno de si um tipo de crosta resistente aos estímulos, que trazia à luz do dia o assombro perante um vazio inefável. Sentia, mas não como antes. A desesperada busca por razões e culpados foi sucedida pela previsível opção de levar sua arte às últimas consequências. Esticando-se o tanto quanto possível, foi capaz de tocar na mortalha do além. Salvaram-na a tempo da morte, mas nem mesmo os medicamentos de hospital foram capazes de afastar a ideia funesta de que apenas no desconhecido estaria o seu último reduto de significado. Era a erva daninha do suicídio germinando no solo fértil do caos, uma ameaça que estaria, dali em diante, presente em seus mais recônditos pensamentos.
Querer a morte não significa, porém, ter força para fazê-lo. E foi justamente na busca por um trágico e eventual desfecho que conheceu Eliel. Naquele dia de março, chovia como nunca. Tendo a visão encoberta pelo guarda-chuva, Eva não atentou para o ônibus desgovernado que cortava, como um relâmpago, a avenida do Catete. Assustando-se com o alarido da buzina, teve apenas o tempo para avistar, de soslaio, a tão sonhada morte se aproximar com o número e a placa do Rio de Janeiro. A outrora inoperante endorfina deu novamente o ar da graça, disparando uma última descarga de alívio por todo o seu corpo. Eliel, que passava pelo local, não pensou duas vezes. Investido de uma compaixão sem igual, lançou-se sobre a moça, salvando-a do terrível atropelamento. Por alguns instantes, Eva se enfureceu com o socorro. No entanto, tão logo fitou com atenção o nobre rapaz, a mulher dos mil e um amantes viu-se como que hipnotizada por aquela beleza divina. Um convite para o café arrefeceu os ânimos e principiou as apresentações. Tão fechada nos próprios dilemas, Eva sentiu uma vontade incontida de expor, sem reservas, sua dramática condição. Não poderia desejar melhor ouvinte. Com uma delicadeza perspicaz, Eliel acessava, lentamente, as camadas de um dilacerante sofrimento. Mas aquele mestre da escuta tinha também o dom da palavra, e pelos lábios proféticos de Eliel a sofredora ouviu, por vez primeira, a graça de uma boa nova:
— Sabe, Eva… E se eu te disser que tudo isso que você disse tem uma explicação?
— Impossível! Já tentei tudo o que você possa imaginar. — Lamentava a mulher, examinando o joelho machucado.
— Nem tudo… Conheces a parábola da ovelha perdida?
— Não conheço.
— É linda… Certa vez, um humilde pastor preparava-se para dar de comer às suas cem ovelhas juntas no aprisco. Porém, naquela tarde, ao fazer a contagem diária, deu falta de uma. Foi imediatamente devastado por uma tristeza jamais vista. Mas, graças ao seu amor incomensurável, o pastor não hesitou em procurar pela filha perdida. Deixou as noventa e nove bem abrigadas e, em seguida, iniciou sua incursão pelas montanhas. Ali, ele se deparou com uma ovelha ferida e tremendo por conta do frio. Trouxe-a, imediatamente, para casa. Curou suas feridas. E ao aconchego do lar ela retornou. Veja bem. Ele deixou as noventa e nove por uma, porque, aos seus olhos, todas eram importantes… Você é essa ovelha, Eva! Por longos anos, você tem se aventurado pelas montanhas da vida em busca de sentido, em busca de respostas e culpados para esse vazio que te aflige. A verdade é que a única culpada de tanto sofrimento é você mesma. O pecado te afastou do aprisco, mas Ele não desiste de ti. Ele me pôs no teu caminho para te mostrar a salvação: venho te dizer que Ele é o bálsamo para todos os que sofrem.
Por toda uma vida, Eva deu mostra da sua capacidade hercúlea de suportar o sofrimento. Faltava-lhe apenas um porquê. Depois de um longo tempo, o motivo veio: Eva sofria porque pecava. Um antídoto simples, mas poderoso. Forte o bastante para esconjurar o fantasma do vazio e qualquer inclinação ao suicídio. Daí em diante, apegou-se aos ensinamentos do seu anjo salvador. Casou-se com ele sob a grinalda de uma inveterada cristã, daquelas cujas vivências dava per se o testemunho de santidade. Amparada pelo esposo, fundou um ministério dedicado à árdua tarefa de procurar ovelhas perdidas como ela fora um dia. Expandiram-se rapidamente em riqueza e influência pelas nações. Faltava, no entanto, o coroamento da união: um filho. As primeiras tentativas do fértil casal foram prontamente atendidas. A barriga crescente era escancarada e aclamada por todo o rebanho. Uma grande expectativa foi depositada naquele pedacinho de gente que se formava sob atentos cuidados. No oitavo mês, entretanto, uma complicação levou a mãe às pressas para o hospital. Emanuel, o filho, sufocava com o cordão umbilical atado em volta do próprio pescoço. O parto foi marcado de imediato. Horas depois, o médico responsável avançou, apressadamente, pelo corredor da enfermaria. Trazia uma fatídica notícia para o pai, que aguardava do lado de fora em fervorosa oração.
— Venho informar que a sua esposa sobreviveu.
— Graças a Deus! — exultou Eliel, de joelhos. — E quanto a Emanuel, ele está bem?!
Adquirindo um semblante circunspecto, disparou:
— Sinto muito, senhor… Mas seu filho está morto.
A partir de então, nada seria mais como antes. Uma tristeza devastadora invadiu a jovem Eva que tinha no filho o coroamento de sua nova existência. Rogaram aos céus por outro herdeiro, mas não tiveram sucesso. A medicina disse-lhes o porquê: com o passar dos anos, Eva havia desenvolvido um câncer no colo do útero. O diagnóstico era unânime entre os médicos:
— A senhora não pode mais ter filhos!
O duro golpe não foi, todavia, assimilado por Eva. No afã de achar responsáveis, culpabilizou o marido; divorciou-se. O ceticismo quanto aos desígnios divinos veio em consequência das orações não atendidas. Sabia, agora, que não havia ninguém nos altos céus para lhe ouvir. Assim, decidiu procurar, por si mesma, o homem apto a lhe trazer a felicidade plena da maternidade. Recorreu a vários, das mais diversas localidades, profissões, credos e etnias. Com alguns, conseguia engravidar, não obstante nenhuma das tentativas chegasse perto da longevidade de Emanuel. Em face de um fracasso, Eva pulava para o próximo, sempre munida de uma boa justificativa. A misteriosa regressão do câncer deu-lhe uma sobrevida amaldiçoada pela sequela da infertilidade. Assim, Eva adentrou a velhice enganando e se deixando enganar, sem que ninguém tivesse correspondido ao seu anseio. A melancolia crescente tem ressoado, desde então, um perigoso alarme para o levante de fantasmas do passado. Sua última defesa parece ser o refúgio na loucura. Protegida por essa venda, desvia o olhar da verdade fatídica, mantendo viva a dissonante obsessão por um homem que a engravide de novo. Contam os rumores que não raramente é possível encontrá-la, vestida em uma túnica, na mais apinhada região das cidades. Ali, empunhando uma lanterna em plena luz do dia, Eva costuma berrar, ensandecida, aos transeuntes:
— Procuro o