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A música no Brasil que você toca
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A música no Brasil que você toca
E-book178 páginas2 horas

A música no Brasil que você toca

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Sobre este e-book

Este livro é resultado dos mais de trinta anos em que Edson Natale percorreu o Brasil como músico ou gestor cultural. São histórias baseadas em muita prosa, recortes, pesquisas e memórias que reúnem passagens por todas as regiões do país. Fruto de tantas viagens, é um alinhavo que inclui acontecimentos da música por este país tão grande quanto diverso. Um convite para pensar, conhecer e se aprofundar na nossa própria cultura, cuja música é uma das suas principais expressões.
IdiomaPortuguês
EditoraParaquedas
Data de lançamento11 de set. de 2023
ISBN9786584764736
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    A música no Brasil que você toca - Edson Natale

    Estrada da vida

    Hernani Vitor Guedes tinha 22 anos em 1946, quando montou sua botica no barco regatão emprestado pelo tio. Foi a maneira que o jovem farmacêutico paraense encontrou de atender aos habitantes da Ilha de Marajó, situada entre o Pará e o Amapá e considerada a maior ilha fluviomarinha do mundo, cuja área supera a de países como a Bélgica. Durante muitos anos Hernani navegou com aquela farmácia aquática, levando consigo atenção, alívio, conhecimento e música. A rabeca do farmacêutico viajava pendurada numa curta e fina corda amarrada a um prego no madeiramento do barco, balançando entre prateleiras cheias de frascos com pomadas, ervas, raízes e outros remédios. Sempre que podia, tocava o instrumento, por isso o apelido de farmacêutico da rabeca.

    Em uma das vezes que esteve em Macapá, lá pelos idos de 1947, ele foi levado por Casimiro Dias para conhecer a festa do Marabaixo, manifestação cultural que reverencia a memória dos escravizados que morreram nos navios negreiros e tiveram seus corpos lançados na água, mar abaixo. Dessa feita, a festa foi realizada no pequeno sítio em que Mestre Julião cultivava legumes, frutas e ervas. O caminho era estreito, mas estradas mais largas seriam inexplicáveis, já que os únicos automóveis da capital do Amapá eram o fusca branco do governador Janary Nunes, o caminhão da usina de luz e o jipe do governo. Além dos barcos, o transporte era feito por carroça, bicicleta ou a pé.

    O que Hernani experienciou naquela noite mudou sua vida para sempre. Apaixonou-se pelo ritual de música, dança e beleza conduzido pelas cantigas e pelos tambores e jamais se esqueceu do impacto que sentiu ao ver os homens vestidos de branco, usando grandes chapéus de palha de carnaúba, e as mulheres com largas saias floridas e blusas brancas com delicados bordados feitos por elas mesmas: a formosura das cores, intensificada pelo canto, pelo ritmo dos tambores e pelos braços que torneavam o vento, floresceu em sua memória. 

    Quando começou a trabalhar no Hospital Geral de Macapá, um ano depois, ele continuou a tocar sua rabequinha e a frequentar as festas do Marabaixo. Além disso, pôde interagir com maior intensidade com a cena musical da cidade, o que resultou na criação de Os Mocambos, em 1963, conjunto musical que marcou presença nos principais eventos e bailes da cidade e que disputou com Os Cometas a preferência do público. O farmacêutico acalentava o sonho de gravar um disco e, para isso, empreendeu todos os esforços, até conseguir reunir as condições técnicas e financeiras para liderar a empreitada – que resultou no primeiro disco da história do Amapá.

    O álbum foi gravado durante uma única madrugada, em maio de 1971, na casa de Alberto Uchoa – que, com a ajuda de amigos e parentes, transformou um dos quartos da residência em um estúdio improvisado, com as frestas de portas e janelas vedadas por trapos retorcidos e pedaços de papel amassado. Também lembraram de pedir que o vizinho deixasse o cachorro dentro de casa, evitando ruídos indesejáveis durante a sessão.

    Tão logo as gravações1 terminaram, Uchoa partiu para o Recife levando consigo a fita matriz. Sua missão? Conduzi-la até a sede da Fábrica de Discos Rozenblit, onde os LPs seriam prensados. E, para isso, foi preciso aproveitar uma carona no avião da Força Aérea Brasileira que partiria às quatro e meia daquela madrugada rumo à capital pernambucana – era a única alternativa de transporte possível, já que naquela época não existiam voos comerciais que incluíssem o Amapá em suas rotas. Ao desembarcar no Recife, Uchoa não seguiu diretamente para a Rozenblit, pois tinha outros compromissos. E, no decorrer do dia, entre uma reunião e outra, sua mala foi furtada. Com ela, a fita.

    Dizem que notícia ruim chega depressa, mas neste caso ela demorou semanas para chegar até Macapá – por intermédio do próprio Uchoa, que, desolado, relatou pessoalmente o triste acontecimento aos músicos. Abalado, na mesma semana Hernani se encontrou com o amigo Livaldo, proprietário de um pequeno laboratório de medicamentos no Recife.

    A conversa girou inevitavelmente em torno da fita furtada, e, entre ponderações e fanfarronices, Hernani topou contratar um detetive recomendado pelo colega.

    Sabe-se lá como se deu a investigação, mas o fato é que, cerca de dois meses depois, o detetive localizou a fita em um sebo do Recife, e ela enfim seguiu seu caminho até a Rozenblit. De extrema importância para a música brasileira, a gravadora lançou, em seus 28 anos de atividade, obras de nomes como Tom Zé, Capiba, Claudionor Germano, Lula Côrtes, Zé Ramalho e Johnny Alf, e chegou a ocupar mais de 20% do mercado nacional de discos e 50% do mercado regional. Em decorrência da maior entre as várias enchentes que invadiram sua sede, em meados da década de 1980 a Rozenblit encerrou sua jornada. Alguns anos antes disso, porém, concretizou o sonho do farmacêutico da rabeca, fazendo chegarem a Macapá os mil LPs de capa azul de

    Os Mocambos.

    *

    O desejo de engaiolar os sons remonta a cerca de dois milênios antes de Cristo, se considerarmos a lenda do viajante que presenteou um imperador chinês com uma caixa de palavras que poderiam ser lidas apenas com as orelhas. Oficialmente, no entanto, o registro musical mais antigo do mundo é de 1860: foi quando o francês Édouard-Léon Scott de Martinville gravou a canção Au clair de la lune por meio do fonoautógrafo, aparelho criado por ele três anos antes – o inventor, aliás, jamais ouviu o resultado de seu experimento, uma vez que a máquina era incapaz de reproduzir os sons que registrava.

    Essa questão foi resolvida cerca de duas décadas depois, em 1877, quando Thomas Edison inventou o fonógrafo, com o qual conseguiu gravar e reproduzir um trecho da canção Mary had a little lamb, em seguida solicitando o registro da invenção na Academia de Ciências de Paris. À revista North American Review, ele fez considerações a respeito das possíveis utilidades do equipamento, como a criação de livros fonográficos capazes de falar com pessoas cegas, o ensino de dicção, o registro das últimas palavras de um moribundo e a reprodução de músicas.

    No Brasil, a curiosidade em torno de algo capaz de encaixotar os sons foi imensa. Em 1891, aos 25 anos de idade, o tchecoslovaco Fred Figner desembarcou em Belém do Pará trazendo consigo a invenção de Edison, apresentada ao público durante a festa do Círio de Nazaré. Da capital paraense, ele seguiu para Manaus, sempre aglomerando centenas de pessoas que pagavam para ouvir os sons que saíam daquele estranho aparelho. E assim esse caixeiro-viajante sonoro – que já tinha trabalhado como cozinheiro, guarda-freios de estrada de ferro e ajudante de relojoeiro – atravessou boa parte do Brasil, passando por Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Salvador, Juiz de Fora, São João del-Rei e Ouro Preto, até chegar ao Rio de Janeiro.

    Na então capital federal, Fred se instalou em uma galeria da Rua do Ouvidor, onde encontrou o lugar ideal para exibir a máquina em duas sessões diárias, divulgadas assim:

    Nesta cidade, na Rua do Ouvidor, 135, estará em exibição A máquina que fala, última invenção, a mais perfeita do célebre Edison. Boa oportunidade para se conhecer um dos inventos mais estranhos e surpreendentes. Esta máquina não só reproduz a voz humana, senão também toda a classe de sons, como canções, óperas, músicas militares. O dono deste fonógrafo traz uma coleção de peças musicais, discursos e canções dos principais artistas do mundo, como Adelina Patti, Christina Nilson, Menotti, tomadas diretamente, as quais são reproduzidas por esta maravilhosa máquina. Se exibirá todos os dias, das 12 às 15 horas da tarde, e das 6 às 8 horas da noite. Entrada: 1$000.2

    Em pouco tempo, por meio da sua Casa Edison, Fred estava gravando e comercializando cilindros com música popular brasileira executada por artistas que se destacavam nos circos, cafés e teatros locais, como Baiano, Cadete, Eduardo das Neves, Benjamin de Oliveira, Gadanha, Veludo e a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, comandada pelo maestro Anacleto de Medeiros. Fred também foi responsável pelo primeiro estúdio de gravação do país e não hesitou em abraçar tecnologias mais avançadas, como o gramofone e os discos feitos de cera criados pelo alemão Emile Berliner.

    Na Casa Edison, as conversas nem sempre eram sobre música. O espiritismo, por exemplo, foi tema de palestras ministradas ali por Pedro Sayão, amigo de Fred e responsável por introduzi-lo à doutrina por volta de 1903. Um caminho que o empresário continuou seguindo com crescente dedicação, seja prestando auxílio aos necessitados3 seja viajando para outros países a fim de se encontrar com célebres espíritas, como fez na Inglaterra com o escritor Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes.

    Foi também por intermédio de Pedro que Fred se aproximou do médium Chico Xavier. Sempre impressionado com as dificuldades que este enfrentava para realizar seus trabalhos assistenciais, ele fez as contas e concluiu que Chico precisaria de uma renda mensal de 300 mil réis para se dedicar exclusivamente à sua missão espiritual, legando em seu testamento – aberto em 1947 – o valor calculado para essa finalidade. O médium, no entanto, doou toda a herança recebida para a Federação Espírita Brasileira.

    Pedro, por sua vez, faleceu quando sua filha tinha apenas 5 anos de idade. Partiu sem saber que Balduína de Oliveira Sayão faria história como Bidu Sayão, uma das maiores estrelas do canto lírico de seu tempo. Nascida em 1904, ela estudou canto no Rio de Janeiro, na Romênia, na França e na Itália, onde, no Teatro Costanzi, em Roma, interpretou Rosina na ópera O barbeiro de Sevilha, de Gioachino Rossini, dando início a uma trajetória profissional que contabilizou mais de 150 récitas só no Metropolitan Opera, em Nova York, lugar em que se apresentou por 16 anos. Também esteve em outros templos, como o Teatro La Scala de Milão e o Carnegie Hall, em Nova York, além da Casa Branca, onde cantou em 1938 a convite do então presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt – que lhe ofereceu a cidadania estadunidense, gentilmente recusada por ela.

    Incensada por músicos como Villa-Lobos, Arturo Toscanini e Beniamino Gigli, Bidu foi tão emblemática que, décadas depois de se retirar dos palcos, foi reverenciada no filme Milk, de Gus Van Sant, no qual Sean Penn interpreta o ativista e político gay Harvey Milk, que, na véspera de seu assassinato, em 27 de novembro de 1978, reconheceu a cantora na plateia do San Francisco Opera, onde ambos estavam para assistir à ópera Tosca, de Giacomo Puccini.

    *

    Bidu Sayão era uma estrela internacional quando se apresentou no Teatro Santo Estêvão,4 em Piracicaba, em 1930. Mas a vida cultural desse município do interior paulista não estava restrita aos teatros e salões, e Cornélio Pires sabia muito bem disso. Nascido em Tietê, em 1884, mudou-se para lá em 1914, onde inspirou a formação de uma das primeiras duplas de música caipira, Mandi e Sorocabinha – que, apesar do apelido, era natural de Piracicaba. Foi também nessa cidade que ele organizou a famosa Turma Caipira de Cornélio Pires, composta inicialmente de Arlindo Santana, Caçula, Ferrinho, Mariano da Silva, Sebastiãozinho, Sorocabinha e Zico Dias, além dele próprio.5

    Antes disso, ainda adolescente em sua cidade natal, Cornélio trabalhou como tipógrafo no periódico O Tietê e pegou gosto pelo jornalismo – aos 17 anos, foi para a capital paulista com o propósito de integrar a redação dos grandes jornais da época. Autor de trabalhos como a coletânea de poemas Musa caipira, de 1910, tornou-se o maior vendedor de livros do país na década de 1920 e o mais obstinado defensor e divulgador da cultura caipira.

    Ninguém sequer pensava na hipótese de lançar discos de música caipira naquela época. Ninguém a não ser Cornélio, que fez a proposta em uma reunião com a gravadora Columbia Records, representada no Brasil pela Byington & Company. Lá, o empresário Alberto Jackson Byington disse que só toparia o projeto com o pagamento adiantado de, no mínimo, mil exemplares. Pouco tempo depois, Cornélio voltou à sede da gravadora para encomendar 25 mil discos – 5 mil unidades de cada título que concebeu.

    O sucesso dessa empreitada foi absoluto, e ele acabou sendo considerado o primeiro produtor independente de discos do país.

    *

    Cornélio Pires morreu 25 anos antes de Romeu Januário de Matos e José Alves dos Santos – ou Milionário & José Rico – desembarcarem em Pequim, em 1983. Jamais imaginou que uma dupla de violeiros pudesse fazer tanto sucesso na China.

    Os músicos foram recebidos no país asiático pelo diretor artístico da gravadora Continental, Wilson Souto Jr., o Gordo, que chegou com antecedência

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