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Escatologia e espaço: A dimensão perdida na teologia do passado e do presente
Escatologia e espaço: A dimensão perdida na teologia do passado e do presente
Escatologia e espaço: A dimensão perdida na teologia do passado e do presente
E-book272 páginas3 horas

Escatologia e espaço: A dimensão perdida na teologia do passado e do presente

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Sobre este e-book

Este livro trata da escatologia, parte da teologia que reflete sobre os eventos finais da nossa existência como morte e salvação, no presente e nos mais variados contextos. Terra, limites, migração, deslocamento, marginalidades, racionalidades, são temas que colocam a questão escatológica em primeiro plano.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de ago. de 2023
ISBN9786556000466
Escatologia e espaço: A dimensão perdida na teologia do passado e do presente

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    Escatologia e espaço - Vítor Westhelle

    Originalmente publicado em inglês sob o título "Eschatology and Space; The Lost Dimension in Theology Past and Present, by V. Westhelle, edition 1 copyright @Vítor Westhelle, 2012. Esta edição foi traduzida e publicada com licença da Springer Nature America, Inc., que não se responsabiliza pela exatidão da tradução.

    Direitos para a língua portuguesa pertencem à

    Editora Sinodal, 2023

    Rua Amadeo Rossi, 467

    93030-220 São Leopoldo/RS

    Tel.: (51) 3037 2366

    editora@editorasinodal.com.br

    www.editorasinodal.com.br

    Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Programa de Pós- -Graduação em Teologia da Faculdades EST.

    Tel.: (51) 2111 1400             est@est.edu.br

    Fax: (51) 2111 1411            www.est.edu.br

    Conselho editorial:

    Prof. Dr. Júlio Cézar Adam (coordenador)

    Prof. Dr. Flávio Schmitt

    Prof. Dr. Oneide Bobsin

    Prof. Dr. Marcelo Saldanha

    Tradução: Luís Marcos Sander

    Capa: Joice Elisa de Oliveira

    Produção editorial e gráfica: Editora Sinodal

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Westhelle, Vítor

    Escatologia e espaço : a dimensão perdida na teologia do passado e do presente / Vítor Westhelle ; tradução Luis Marcos Sander. -- São Leopoldo : Editora Sinodal, 2023.

    Título original: Eschatology and space:the lost dimension in theology past and present.

    ISBN 978-65-5600-052-7

    ISBN 978-65-5600-046-6 (e-book)

    1. Escatologia 2. Espaço - Aspectos religiosos - Cristianismo 3. Teologia filosófica I. Título.

    23-160452 CDD-236

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Escatologia : Cristianismo 236

    Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.

    Sumário

    Agradecimentos

    Introdução: Na beira

    1 Re(li)gião: a luta entre espaço e tempo

    2 Espaço, história e o Reino

    3 Conquista da escatologia

    4 Taxonomias escatológicas

    5 Uma abordagem latitudinal da escatologia

    Interlúdio: À flor da pele

    6 O desafio pós-colonial: eschata cotidianos

    7 Dimensões da liminaridade

    8 Estratégia e tática nas práticas escatológicas

    Conclusão: Em alto-mar: à guisa de conclusão

    Referências bibliográficas

    Agradecimentos

    Vivendo em um tempo em que as perdas superam os ganhos, quando demasiadas vezes os resultados de exames de sangue, ultrassom ou biópsia dizem a ominosa palavra positivo, em que casas são arrastadas pelas águas, destruídas ou tomadas por execução de hipoteca, quando respostas negativas para pedidos de emprego vêm uma depois da outra – como eu iria escrever sobre a esperança de vida nova por vir? E, no entanto, como eu poderia não escrever sobre essas faíscas de esperança que se recusam a morrer como as brasas de um fogo em extinção?

    Escrever sobre o fim ou os términos é estar na beira, como o orvalho que dança na ponta de uma folha. Dançar nessa borda tem sido uma experiência que me tornou humilde e me honrou imensamente. E foi o amor e apoio de minha família, amigas e amigos e colegas que me impediu de cair e manteve aquelas brasas de esperança ardendo.

    Sementes deste projeto começaram a germinar no início da década de 1980, quando eu estava trabalhando com agricultores sem terra que tinham perdido sua terra e seu meio de subsistência e estavam de fato vivendo nos limites, nas beiras – nas margens de estradas, entre as beiradas de estradas e cercas de grandes fazendas cujas terras, no passado, cultivavam e em que tiravam o sustento para sua família. Para essas pessoas, a escatologia não era um conceito teológico, mas uma realidade viva. Pela inspiração para escrever as páginas que se seguem, tenho uma dívida de gratidão para com suas vidas e reflexões, por perguntarem com frequência: Pastor, por que estamos neste não lugar?. Ao dizerem pastor, sugeriam uma resposta teológica que eu estava procurando articular.

    Enquanto que um período sabático da Lutheran School of Theology at Chicago (LSTC) durante o outono de 2011 me deu, tecnicamente, o tempo para redigir o manuscrito, minha subsequente nomeação para a cadeira de Pesquisa de Lutero na Escola Superior de Teologia (EST) em São Leopoldo me colocou diretamente na terceira margem, no entremeio, onde tive de aprender a ser e me tornar. Agradeço a ambas as instituições em que passei parte do ano por me darem o tempo e espaço para elaborar meus pensamentos. Mas também não posso deixar de agradecer à Universidade de Aarhus e ao Departamento de Cultura e Sociedade, que me receberam em seu corpo docente como professor honorário de Teologia, dando-me, com isso, mais outro local para me envolver em conversações teológicas que não podiam ficar confinadas a locais provincianos, mas me desafiaram para algumas travessias – e transgressões – que têm incidências escatológicas inequívocas.

    Desde o início até o final, ou seja, desde quando escrevi minha proposta até a submissão do manuscrito, fui abençoado com o amor e apoio de muitas amigas e amigos e colegas que me ajudaram a explorar meus pensamentos e fazê-los chegar às folhas do manuscrito.

    Devo muito a Barry Hopkins, bibliotecário auxiliar para serviços públicos na biblioteca JKM na LSTC, que foi generoso me disponibilizando seu tempo e conhecimento especializado para minha pesquisa. Também tenho uma dívida de gratidão para com Theodore W. Jennings, Jr., e Ted Peters, que revisaram e criticaram minha proposta e me ofereceram comentários construtivos que, assim espero, tornaram esse meu projeto mais aberto, coerente e acessível.

    Colegas que tenho tanto nas instituições em que leciono quanto no mundo inteiro têm sido uma grande fonte de incentivo. Allen Jorgenson, Barbara Rossing, Kadi Billman (junto com a qual realizei uma atividade letiva chamada Narrativas de esperança), David Tiede, Kurt Hendel, José David Rodríguez, Else Marie Wiberg Pedersen, Valério Schaper, Rudolf von Sinner, Deanna Thompson, Danilo Streck, Oneide Bobsin, Luís Henrique Dreher, Sérgio Sauer, Philip Hefner, Roberto Zwetsch e Ulrich Duchrow são alguns dos nomes dessa lista longa e inesgotável. Todas elas e todos eles aparecem aqui e ali no fogo branco destas páginas, mesmo que seus nomes não estejam gravados em caracteres negros.

    Devo muito a minhas alunas e meus alunos a quem tenho tido o privilégio de lecionar e de quem tenho aprendido, tanto na LSTC e na EST quanto em Aarhus. Eu não cumpriria meu dever se não mencionasse algumas delas e alguns deles, cujas contribuições visitaram, com frequência, muitas páginas do que se segue: Neal Anthony, John Nunes, Robert Saler, Birgitte Jeppersen, Philip Ruge-Jones, Malin Pilgren, Justin Eller, Kathlen Luana de Oliveira, além de muitas outras e muitos outros a quem a parcimônia e amnésia me impedem de agradecer devidamente. Discussões em sala de aula, trabalhos de estudantes e conversas nos corredores, que não devem ser esquecidas, ajudaram-me a situar meus pensamentos quanto redigi o manuscrito.

    Dos oito capítulos deste livro, o capítulo 5, Uma abordagem latitudinal da escatologia, é o capítulo retrabalhado, com uma abordagem e perspectiva diferentes, de minha contribuição para o Oxford Handbook of Eschatology (Liberation Theology: A Latitudinal Perspective. In: WALLS, Jerry (ed.). Oxford Handbook of Eschatology. New York: Oxford University Press, 2007. p. 311-327). Uma seção do capítulo 2, Espaço, história e o Reino, é uma versão revista de Exposing Zacchaeus, artigo publicado em The Christian Century (Exposing Zacchaeus, The Christian Century, v. 123, n. 22, p. 27-31, 31 out. 2006).

    Sou grato por ter recebido apoio financeiro do Fundo de Pesquisa Teológica Lilly da Associação de Escolas de Teologia. Agradeço a Stephen Graham, diretor de Iniciativas em Educação Teológica e Desenvolvimento de Docentes, e a Fran Pacienza, coordenadora de Programas de Docentes e Avaliação Organizacional, e a membros do comitê por terem tornado possível a realização deste projeto.

    Como posso escrever ou falar sobre escatologia e esperança sem o amor inabalável da minha família? Afinal, quem sou e onde estou agora começa e termina com ela. Christiane, minha esposa; meus filhos Felipe, André e Carlos Henrique; e as netas, Ana e Gabi, me agraciaram com sua paciência e amor quando tinham o direito de esperar muito mais do meu tempo. Minha irmã Regina e seus queridos Geraldo e Marina foram uma fonte constante de incentivo. Obrigado por abrirem seu lar e coração para este irmão visitante temporário. Agradeço a Wilson, Dani, Matheus, Mariane e Henrique pelo companheirismo e o tempo que não me negaram. A todas e todos vocês e à mamãe Veny, obrigado pelo projeto arquitetônico e pelo prédio que, com labor amoroso, forneceram arcadas ou passagens que têm sido um consolo para mim em minhas viagens.

    Burke Gerstenschlager e a equipe editorial da Palgrave Macmillan merecem meu profundo apreço por terem aceito minha proposta e meu projeto com entusiasmo, especialmente por sua paciência enquanto eu andava pelo mundo e passava por adversidades imprevistas.

    Joy (Mary Philip), minha cara amiga, assistente e editora, obrigado por me ensinar a acreditar no poder impressionante da esperança frágil. Para descrever o que aprendi, tomo emprestada a voz de Emily Dickinson:

    A esperança é a coisa com penas

    que se empoleira na alma,

    canta a melodia – sem as palavras,

    e nunca, mas nunca, para,

    […]

    Eu a ouvi na mais gelada terra

    e no mais estranho mar;

    no entanto, nunca, nem na hora do apuro,

    ela pediu sequer uma migalha de mim.

    Introdução

    Na beira

    Só mais tarde compreendi que é preciso completar

    os sinais dos tempos com os "sinais dos lugares

    Pedro Casaldáliga¹

    A teologia tem ficado para trás de outros campos no tocante à importância de abordar a geografia e questões espaciais. Ao trabalhar na Comissão Pastoral da Terra (CPT), depois de ter concluído o doutorado, eu não estava preparado para encontrar subsídios na literatura teológica. Em certo domingo, um irmão capuchinho e eu estávamos dirigindo uma celebração religiosa em um acampamento de agricultores sem-terra no sudeste do Brasil, perto da cidade de Cascavel, no oeste do estado do Paraná, no que era efetivamente uma chora [ou khôra] (um espaço entre espaços, nem dentro nem fora, e sim em ambos). Cerca de trinta famílias viviam em tendas de plástico preto sob o sol escaldante. Elas já estavam lá há mais de três meses. O lugar era uma faixa de terra de não mais de vinte metros de largura, ao lado de uma estrada que liga o Brasil e o Paraguai, flanqueada, no outro lado, pela cerca de uma megafazenda. Entre os textos bíblicos para a celebração estava o Salmo 24.1: Ao Senhor pertence a terra e a sua plenitude, o mundo e os que nele habitam. Um dos agricultores sem-terra, que tinham perdido seu lote familiar devido às políticas agrárias adotadas pelo regime militar na década de 1970, disse em claro e bom som: Se a terra pertence ao Senhor, como é que eu só vejo essa cerca?. Com exceção de estudos sobre arquitetura de igrejas, a teologia não me dava uma orientação bíblico-teológica na formulação de experiências espaciais.

    Essa experiência, entre muitas outras, deixou-me com uma necessidade muito grande de explicar a salvação e condenação, categorias básicas da escatologia, para aqueles agricultores e as pessoas que trabalhavam com eles.² Não havia um marco teórico adequado que me possibilitasse abordar sua experiência de marginalidade espacial, deslocamento e liminaridade, em categorias teológicas. Quando essas experiências adentram o discurso teológico, isso ocorre sob os auspícios da moralidade e da ética, mas não em categorias escatológicas. Meu esforço nas páginas que se seguem é estruturar o pensamento teológico de uma maneira que aborde a experiência das pessoas que vivem em e através dos eschata diariamente em relação aos lugares em ela acontece. Além disso, ele avalia as teorias escatológicas que adiam perenemente a verdade escatológica para um futuro indefinível, ou então para um nunc aeternum kairótico (um momento qualitativo no tempo que resiste a uma mensuração cronológica) e místico, o agora eterno.

    A frustração com a pouca ajuda que pude obter de fontes teológicas modernas ensejou uma investigação sobre as razões dessa deficiência. E não fiquei de fato surpreso ao descobrir que a deficiência de preocupações espaciais não era uma infeliz negligência, mas uma exclusão intencional e militante de reflexões dimensionais do cerne da pesquisa teológica. A dimensão perdida é o título de um livro de uma das mais militantes vozes contra o pensamento espacial na teologia: Paul Tillich³. O problema não é que uma dimensão (no caso dele, a da profundeza) se perdeu, e sim que a própria dimensão é perdida.

    Na modernidade ocidental, o discurso escatológico foi sequestrado pela dominância do pensamento histórico. Confinado ao tempo, e vinculado aos tropos que criamos a partir do movimento da Terra ao redor do Sol, esse pensamento oferece trajetórias longitudinais pelas quais a verdade e verificabilidade final estão exclusivamente vinculadas ao tempo. Mas essa é, com efeito, uma narrativa ocidental de longa duração que é anterior à modernidade. Suas origens na teologia podem ser localizadas no início do século V. Orósio e seu discípulo Agostinho propuseram uma concepção da história como a peregrinação da igreja para o desdobramento progressivo do tempo (procursus), enquanto o paganismo era representado como uma perambulação espacial sem destino em um esforço sem propósito.

    Essa concepção normativa do tempo se beneficiou de uma tradição em grande parte inquestionada, tanto no cristianismo quanto no Ocidente secular. Paul Tillich chegou a descrever a oposição entre tempo e espaço como paralela à oposição entre o monoteísmo judaico-cristão e o paganismo, respectivamente.⁵ A razão pela qual a ousada tese de Tillich jamais foi contestada é reveladora. Na academia, tanto quanto sei, ela nunca foi realmente discutida ou contestada porque, presumo eu, a tese estava em sintonia com a racionalidade ocidental dominante, obviando qualquer contestação. Tillich, um teólogo de resto atraente e controvertido, apertou a tecla emudecer nas suposições ocidentais sobre o tempo e a escatologia.⁶ Mais de um século antes disso, Hegel já tinha pontificado: O tempo é a verdade do espaço⁷. Para o Ocidente, a questão escatológica tem sido um adiamento temporal perene que atingiu seu zênite na equiparação de revelação e história no pensamento de Wolfhart Pannenberg, seguindo de perto a obra pioneiro do biblista do Antigo Testamento Gerhard von Rad e seus discípulos.

    O resultado final disso é que o discurso escatológico foi equiparado a uma forma do fim do tempo, independentemente de como isso seja interpretado. O impacto do iluminismo do final do século XVIII que levou à desconstrução das provas históricas dadas como certas do cristianismo permaneceu dentro do paradigma histórico ocidental, desencadeando o século seguinte (XIX) como o século da história, como o intitulou Michel Foucault. A questão fundamental que a pressuposição acarretava era a seguinte: por que o mundo não acabou junto com a presença histórica e corporificada de Deus em Jesus de Nazaré? É desnecessário dizer que as respostas permaneceram dentro do mesmo paradigma com uma reafirmação do caráter transcendente do evento escatológico e, portanto, ainda não verificável por critérios históricos.

    Esse pensamento escatológico deu à luz a teologia do século XX com a publicação do comentário à Epístola aos Romanos (Römerbrief) de Karl Barth (1919). A abordagem assertiva de Barth ao tratar do dilema escatológico forneceu uma resposta que haveria de durar pelas décadas que se seguiram. Se a teologia não fosse inteiramente escatológica, não era teologia cristã. As opções dadas eram coerentes com o paradigma que permaneceu incontestado. Enquanto modalidades transcendentes de escatologia floresciam no cristianismo popular no Ocidente, discursos escatológicos mais refinados estavam sendo arquitetados em círculos acadêmicos.

    A primeira metade do século XX redescobriu o nunc aeternum como solução para o problema. A escatologia era um momento existencial dormente de decisão no tempo que precisava ser despertado (Rudolf Bultmann), ou um momento kairótico meio místico do agora eterno que irrompia no chronos (tempo cronológico como o do relógio) (Paul Tillich). Seguiu-se uma versão mais sutil do impasse de se ter o tempo empírico mantido junto com sua suspensão. Uma escatologia realizada (C. H. Dodd) ou inaugurada (Oscar Cullmann) só projetou uma nova fase que surgiu na virada da segunda metade do século. Essa era a época da volta ao Jesus histórico sobre novas bases. O lançamento da nova busca do Jesus histórico por Ernst Käsemann no início dos anos 1950 assinala o momento em que a firme postura barthiana contra o aprisionamento histórico da teologia revelou ser pouco mais do que um período de férias em uma agenda repleta que acabaria tendo de ser retomada. E ainda assim, dentro do mesmo paradigma historicamente vinculado, o pensamento escatológico continuou esquecido das realidades, posições e contextos espaciais, em suma, esquecido de um modo de pensamento latitudinal.

    O reconhecimento do dilema de pensar a escatologia em termos cronológicos levou não poucos teólogos a expressá-la em uma forma de escatologia contínua. Um exemplo proeminente disso é a obra de teólogos do processo, que se enquadram nessa categoria.⁸ Mas também pode ser visto no labor da teologia feminista⁹ e mesmo de um proeminente teólogo da libertação como Juan Luis Segundo¹⁰.

    A crise atual do pensamento escatológico entrou pela porta dos fundos do projeto histórico do mundo ocidental com sua expansão colonial e seu empreendimento de conquista. A face do outro e sua verdade passaram para o primeiro plano por um advento latitudinal. Na tradição de Hegel, os outros dos europeus eram normalmente localizados no passado histórico (os asiáticos¹¹) ou no futuro (os norte-americanos¹²). Mas com o retrocesso colonial o pensamento sobre o outro não podia mais se limitar a uma perspectiva longitudinal e vinculada ao tempo; agora os outros estavam logo ali. Para muitas comunidades no mundo, o movimento da Terra em torno do Sol – que registra o tempo no mostrador de todo relógio analógico que usamos em nosso pulso ou embutido em torres de praças – não é o marco dominante, ou ao menos não o único marco para interpretar a realidade e a experiência do que é último ou definitivo. O outro está claramente em algum outro lugar e não apenas em algum outro tempo. Essas experiências liminares dos fins (eschata) e limites espaciais não são apenas geográficas, mas também abarcam diversas experiências liminares referentes ao local social (p. ex., Amílcar Lopes da Costa Cabral e Gayatri Chakravorty Spivak), identidades étnicas e perfis raciais (p. ex., Léopold Sédar Senghor e Edward Said), classes econômicas e castas (p. ex., Aimé Césaire e James Massey), terrenos psicológicos (p. ex., Franz Fanon e Homi Bhabha), limitações biológicas e de gênero (p. ex., Georges Canguilhem e Michel Foucault), e assim por diante.

    Reflexões sobre questões espaciais (terra, limites, migração, deslocamento, marginalização, racionalidades etc.) são temas que colocam a questão escatológica em primeiro plano em uma perspectiva diferente. Vozes que emergem no pensamento pós-colonial ou mesmo no pensamento crítico ocidental elevaram o assunto do espaço a proporções tais que a teologia não pode mais se dar o luxo de ignorar. Essas são questões teológicas que surgem cada vez que implicam um outro além de um espaço liminar ou vivenciam a liminaridade espacial. E qualquer travessia para dentro do espaço de outrem é também a exposição ao Outro. Daí a importância da teologia, o discurso a respeito de Deus, o discurso acerca do Outro.

    Os capítulos seguintes são reflexões sobre travessias como uma categoria escatológica básica na qual e através da qual a salvação e/ou condenação, o que é grande ou pequeno, último ou penúltimo são vivenciados e, então, articulados teologicamente.

    A travessia de um limiar como experiência escatológica implica exposição. A salvação e a condenação são as extremidades no espectro do discurso escatológico. As implicações da discussão contida nos capítulos seguintes deveriam lançar luz sobre como reler teologoumena (noções teológicas recorrentes) há muito soterrados sob o pó do pensamento escatológico esquecido de experiências espaciais. O que redenção e danação significam não pode ser pressuposto ou conhecido previamente, mas vem junto com a travessia. O terrível e o assombroso são vizinhos. Ou, usando as palavras escritas por William Butler Yeats depois do fracassado Levante da Páscoa de 1916 na Irlanda que gestou um movimento de libertação que viria depois:

    Tudo mudou, mudou completamente:

    uma beleza terrível nasceu.

    Capítulo 1

    Re(li)gião: a luta entre espaço e tempo

    Estávamos parados na beira,

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