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Liberdade Religiosa: formação, desenvolvimento e questões controversas
Liberdade Religiosa: formação, desenvolvimento e questões controversas
Liberdade Religiosa: formação, desenvolvimento e questões controversas
E-book393 páginas5 horas

Liberdade Religiosa: formação, desenvolvimento e questões controversas

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Sobre este e-book

O estudo sobre a formação e o desenvolvimento da Liberdade Religiosa acaba por confundir-se com o próprio estudo sobre a formação e o desenvolvimento do Estado Constitucional. Nesse sentido, publico esta obra com o intuito de analisar essa intrigante relação entre a Igreja e o Estado ao longo da história, bem como o debate sobre as questões controversas envolvendo a Liberdade Religiosa, na atualidade. Na primeira parte do presente trabalho, realizo um estudo sobre as origens da religião e a sua influência no Estado na Antiguidade, na Idade Média e na Idade Moderna, analisando também o surgimento do Cristianismo. Em seguida, adentro no estudo da Liberdade Religiosa nos Estados Unidos, na França e na Alemanha, por entender que cada uma dessas nações, por meio dos seus eventos históricos e políticos, bem como do desenvolvimento de sua doutrina constitucional e de sua jurisprudência, exerceu, e exerce, significante influência no debate sobre a Liberdade Religiosa. Finalmente, no último capítulo da presente obra, aprofundo-me no estudo do Direito Constitucional à Liberdade Religiosa no Brasil, desde o surgimento do país, até os dias atuais. Dessarte, ao fim da leitura, o leitor estará com um bom embasamento sobre o tema, estando apto para se introduzir melhor nesse envolvente debate.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de set. de 2023
ISBN9786527005728
Liberdade Religiosa: formação, desenvolvimento e questões controversas

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    Liberdade Religiosa - Alexandre Freitas Couto

    1. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA LIBERDADE RELIGIOSA

    1.1 LIBERDADE

    Um marco na formação do pensamento liberal moderno é a obra de Benjamin Constant, Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, escrita em 1819, em que o autor expõe sua tese de que, entre os antigos, a liberdade era entendida como algo coletivo, na qual o indivíduo, na condição de completo submisso ao Estado, tinha direito à participação na condução da coisa pública, e, entre os modernos, a liberdade passou a ser entendida como exercício individual de um direito¹ ². Segundo Constant, deve-se aprender a combinar essas duas liberdades.

    Ressalta-se, para o presente trabalho, na obra de Benjamin Constant, a liberdade dos modernos que, como explica o filósofo russo Isaiah Berlin no escrito Liberdade, de 1962, refere-se à ideia de que há um [...] campo da vida – vida privada - em que é indesejável, salvo em circunstâncias excepcionais, pela autoridade pública, interferir. A questão central colocada no mundo antigo é: ‘Quem deve me governar?’ [...] No mundo moderno, uma igual e importante questão é ‘Quanto de governo deve haver?’³

    Afirma ainda Berlin que o Paternalismo é despótico, não porque é mais opressivo que a pura, brutal e não iluminada tirania, [...] mas, porque é um insulto à minha concepção de mim mesmo enquanto ser humano, determinado a construir minha própria vida de acordo com meus próprios (não necessariamente racionais ou benevolentes) propósitos e, além de tudo, intitulados a serem reconhecidos como tais pelos outros.⁴ Portanto, A essência da noção de liberdade [...] é o afastamento de algo ou de alguém – de outros que transgridam meu campo ou declarem sua autoridade sobre mim [...]⁵. O autor defende a liberdade de escolhas individuais pelos indivíduos, porquanto [...] suas vidas e pensamentos são determinados por categorias morais fundamentais e conceitos que são, em qualquer grau e sobre grandes extensões de espaço e tempo, e quaisquer que sejam suas origens definitivas, uma parte de sua existência, seu pensamento e senso de sua própria identidade; parte do que os fazem humanos.

    Sobre essa moderna concepção de liberdade, também traz reflexões interessantes o constitucionalista alemão Ernst-Wolfgang Böckenförde, no artigo O Direito Fundamental da Liberdade de Consciência, publicado em 1970, em que afirma que a Liberdade de Consciência consiste na [...] base de nossos modernos Direitos de liberdades individuais – na verdade, na moderna concepção da liberdade em si.⁷ Afirma ainda o autor que tal liberdade relaciona-se com a tolerância e com a pluralidade de opiniões:

    [...] o critério para a presença de uma genuína decisão de consciência não pode ser encontrado em sua verdade na forma de uma conformidade com princípios legais universais, com a lei moral, com normas gerais de conhecimento, com uma aceita ordem de valores, ou qualquer coisa do tipo.

    No mesmo sentido, o jurista J. J. Calmon de Passos, em sua famosa obra Direito, Poder, Justiça e Processo: julgando os que nos julgam, de 1999, afirma que, diferente dos outros seres da natureza, a existência humana é consciente e indeterminada, sendo livre e responsável por sua construção⁹. O homem é o único ser vivo em condições de ter "[...] a si mesmo como objeto de sua consciência [...]. O seu agir resulta de finalidades que se propõe ou que lhe são propostas e às quais adere." (Itálicos do original).¹⁰ O ser humano, além de pertencer ao mundo da necessidade (já que, igual aos outros animais, possui limitações biológicas), pertence também ao mundo da liberdade, devido à sua capacidade [...] de se colocar alternativas e optar por uma delas.¹¹ A liberdade humana, portanto, associa-se ao imperativo da opção: O agir do homem é sempre fruto de uma seleção de alternativas, por força da indeterminação que está na origem de seu atuar.¹²

    Exercer tal liberdade de escolha, porém, não é apenas um luxo para o homem, bem como também uma necessidade. Dito de outra forma, o homem necessita de um propósito, caso contrário, [...] a criatura humana apenas pode sobreviver em nível inferior ao do animal, porque mutilado em sua humanidade, fica desprovido de força e da segurança do animal, que se apóia na sabedoria inconsciente dos instintos.¹³ Nesse sentido, a liberdade humana, antes de ser um Poder, "[...] é, em verdade, tragicamente, a ausência de suficiente informação biológica do homem a respeito de quanto lhe cumpre fazer. O animal sabe o seu agir. O homem precisa se propor o seu agir." (Itálicos do original).¹⁴

    Com base nessas reflexões, fica claro que a ideia moderna de Liberdade relaciona-se à noção de Liberdade de Consciência, sendo que os indivíduos devem ser livres para manterem sua individualidade, realizando livremente suas escolhas e formando livremente seu pensamento. O paternalismo despótico consiste em um risco às liberdades do indivíduo, impedindo-o de realizar livremente suas escolhas. É preciso, portanto, valorizar a tolerância e a pluralidade de opiniões dos outros indivíduos. Isso porque a liberdade de escolha, inerente ao ser humano, trata-se não meramente de um luxo, mas de uma necessidade humana, sendo essencial que todo indivíduo tenha a oportunidade de agir em conformidade com um propósito. Entende-se, portanto, que a Liberdade Religiosa, tema desta obra, consiste em uma das modalidades da Liberdade de Consciência, devendo por isso ser entendida como essencial à dignidade humana.

    Inspirado nessa noção clássica de liberdades individuais, o famoso dicionário da língua francesa, Littré traz a definição mais clássica de liberdade, que consiste na Condição do homem que não pertence a nenhum senhor¹⁵, bem como no Poder de agir ou de não agir¹⁶. Comentando essa definição, Jean Rivero e Hugues Moutouh explica que Da comparação entre essas duas fórmulas, ressalta uma idéia essencial: a liberdade é um poder de autodeterminação, em virtude do qual o próprio homem escolhe seus comportamentos pessoais.¹⁷ Essa conceituação, portanto, relaciona-se ao poder de escolha. Do mesmo modo, também explica Jean-Jacques Israel que A liberdade é, portanto, o poder de resolver por si mesmo, ou seja, o poder de escolher sua conduta.¹⁸

    Heloísa Sanches Querino Cheloud caracteriza a Liberdade Religiosa como uma Liberdade Pública, [...] porque esse direito implica garantir ao cidadão uma área de atuação livre, que se deve manter isenta da intromissão estatal.¹⁹

    Sobre as Liberdades Públicas, Jean Rivero e Hugues Moutouh trazem o seguinte entendimento: "[...] a liberdade apresenta uma série de problemas sociais." (Itálico do original).²⁰ Portanto, como explica Israel, "A liberdade jurídica abrange, além da liberdade em sua acepção filosófica, obrigações inerentes à vida do homem em sociedade. Esta impõe um enquadramento dos comportamentos individuais, que pode limitar a liberdade do indivíduo ou, ao contrário, criar direitos em seu benefício." (Negrito do original).²¹ Dessa forma, explica Israel que o Direito, enquanto disciplina social, vem regular o exercício das liberdades, de forma que estas tornam-se públicas:

    O Direito, como disciplina social, como disciplina normativa, rege o comportamento do homem na sociedade, define as condições do comportamento do indivíduo no exercício de suas liberdades. O Direito vem, assim, reconhecer, garantir, até mesmo limitar o exercício das liberdades: pelo fato de elas estarem assim consagradas pelo Direito, as liberdades são, então, denominadas públicas. (Negrito e itálico do original).²²

    Afirma ainda o autor que até as liberdades privadas são públicas, posto que "[...] todas as liberdades interessam ao Estado e ao direito, inclusive naquilo que poderia evocar o direito privado [...]. É, portanto, a intervenção do direito positivo, tradução do reconhecimento e do ordenamento da liberdade pelo Poder, pelo Estado e pelo Direito, que faz de uma liberdade pública." (Itálico do original).²³ Na mesma linha, Rivero e Moutouh explicam que, uma vez que as obrigações impostas aos particulares, de respeitarem suas respectivas liberdades, supõem necessariamente uma intervenção do Estado, as liberdades particulares também podem ser entendidas como públicas:

    Não existem liberdades privadas. A obrigação imposta aos particulares de respeitar sua liberdade recíproca supõe necessariamente a intervenção do Estado, que a impõe por sua legislação e a sanciona por suas jurisdições. Todas as liberdades, interessem elas diretamente às relações dos particulares entre si ou com o poder, são liberdades públicas na medida em que só entram no direito positivo quando o Estado lhes consagrou o princípio, regulamentou o exercício e assegurou o respeito. [...] As liberdades públicas são poderes de autodeterminação consagrados pelo direito positivo.²⁴

    Rivero e Motouh, dessarte, propõem a seguinte definição das Liberdades Públicas, levando em consideração os Direitos do Homem, o poder de escolha e o seu reconhecimento pelo Estado, por meio da positivação:

    [...] as liberdades públicas são direitos do homem que reconhecem a este, nos diversos campos da vida social, o poder de escolher sozinho seu comportamento, poder organizado pelo direito positivo, que lhe confere uma proteção reforçada e o eleva ao nível constitucional [...].²⁵

    Surge daí a dúvida sobre se haveria alguma distinção entre as Liberdades Públicas e os Direitos Fundamentais. Para Rivero e Moutouh é difícil estabelecer uma hierarquia entre as liberdades públicas conforme certos textos lhes reconheçam ou não um caráter fundamental.²⁶ Para os autores, a constitucionalidade não comporta graus, sendo que Todas as liberdades [...] são igualmente ‘fundamentais’, ou seja, necessárias ao desenvolvimento da pessoa humana.²⁷

    De forma diferente pensa Israel. Para o autor, de fato, ambas as noções possuem em comum [...] o reconhecimento jurídico e a garantia pelo direito sob o controle de um juiz qualquer²⁸. A distinção, porém, situa-se [...] em dois aspectos: a lei, de um lado, a Constituição e o tratado, de outro. Ela opera, em seguida, em função do juiz que intervém, juiz ordinário, de um lado, ou juiz constitucional ou internacional, de outro.²⁹ Portanto, dessa forma, Uma noção não exclui a outra e uma mesma liberdade pode ser uma liberdade pública e um direito fundamental.³⁰ Israel apresenta, então, sua definição de Liberdade Fundamental, como [...] uma liberdade reconhecida por um princípio ou uma regra de nível jurídico mais elevado, seja constitucional ou internacional.³¹

    Sobre assunto, independentemente da tese adotada sobre a diferenciação entre as liberdades públicas e as liberdades fundamentais, o fato é que, sem dúvidas, a Liberdade Religiosa, que é o tema do presente trabalho, consiste em uma Liberdade Fundamental de suma importância, tendo sido, inclusive, o estímulo inicial para a conquista das Liberdades Modernas (como será demonstrado a seguir). Por isso, é mister que a estudemos, para que compreendamos melhor as bases do Estado Constitucional.

    O escritor israelense Yuval Noah Harari, em seu best-seller Sapiens: uma Breve História da Humanidade, traz uma interessante discussão sobre a religião. Segundo o autor "[...] só o Homo sapiens pode falar sobre coisas que não existem de fato e acreditar em meia dúzia de coisas impossíveis antes do café da manhã." (Itálico do original).³² Assim, "[...] a ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso coletivamente. [...] Os sapiens podem cooperar de maneiras extremamente flexíveis com um número incontável de estranhos. É por isso que os sapiens governam o mundo [...] (Itálico do original).³³ Afirma ainda o autor:

    [...] a religião foi o terceiro maior unificador da humanidade, junto com o dinheiro e os impérios. Uma vez que todas as hierarquias e ordens sociais são imaginadas, elas são todas frágeis, e, quanto maior a sociedade, mais frágil ela é. O papel histórico crucial da religião foi dar legitimidade sobre-humana a essas estruturas frágeis. As religiões afirmam que nossas leis não são resultado de capricho humano, e sim determinadas por uma autoridade suprema e absoluta. Isso ajuda a tornar inquestionáveis pelo menos algumas leis fundamentais, garantindo, desse modo, a estabilidade social.³⁴

    Portanto, para Harari, a religião, um dos maiores unificadores da humanidade, ajudou a fortalecer os padrões que regem a estrutura da sociedade, fazendo com que os homens cooperem entre si, mantendo-se a estabilidade social, tendo papel fundamental na formação do Estado. É claro que para [...] unir sob sua égide uma grande extensão de território habitado por grupos diferentes de seres humanos, uma religião precisa ter outras duas qualidades. Em primeiro lugar, precisa sustentar uma ordem sobre-humana abrangente que seja verdadeira sempre e em toda parte. Em segundo lugar, precisa insistir em difundir essa crença para todos. Dito de outro modo, precisa ser universal e missionária.³⁵ Esse caráter universal e missionário, como será demonstrado mais à frente, ganhou destaque com o surgimento do Cristianismo.

    Não obstante a religião ter contribuído para unificar a humanidade, o fato é que o fenômeno da secularização serviu como gatilho para a manifestação das Liberdades Modernas. Analisar-se-á, então, o debate sociológico, filosófico, jurídico e político acerca dessa liberdade, bem como será exposto o seu desenvolvimento histórico, que acaba por confundir-se com a própria história da limitação do Estado e do desenvolvimento dos Direitos Fundamentais. Como explica Manoel Jorge e Silva Neto, Estudar a origem da religião é examinar também a evolução histórica das comunidades humanas.³⁶

    Nessa linha, Georg Jellinek, em A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: Contribuição para a História do Direito Constitucional Moderno, escrito em 1895, afirma:

    A ideia de consagrar legislativamente os direitos inalienáveis e invioláveis, os direitos naturais do indivíduo [principalmente, nos Estados Unidos], não é uma ideia de origem política, mas, sim, uma ideia de origem religiosa. O que até o presente cremos ser obra da Revolução não é, em realidade, senão um produto da reforma e das lutas que ela originou.³⁷ ³⁸

    Sem mais delongas, segue-se à análise desse importantíssimo Direito.

    1.2 PRÉ-HISTÓRIA E A FORMAÇÃO DA RELIGIÃO

    Segundo Jorge Bacelar Gouveia, tratando da pré-história da humanidade, "Do ponto de vista antropológico, está hoje cientificamente comprovado que o homo sapiens coincidiu com o aparecimento do homo religiosus, pelo que se percebe que a humanidade anda de mãos dadas com a religiosidade." (Itálicos do original).³⁹ No mesmo sentido, Paulo Pulido Adragão, afirma que o homem, além de ser um animal naturalmente político (como afirmou Aristóteles) [...] é certamente também um animal religioso, um ser para quem a questão religiosa é uma pergunta existencial fundamental.⁴⁰

    Afirma ainda Manoel Jorge e Silva Neto que existem registros, por meio de pinturas em cavernas, que comprovam que os homens pré-históricos possuíam religiosidade:

    Há registros de pinturas e desenhos dos agrupamentos primitivos que habitavam cavernas nos quais se representava o sol e a lua, presumivelmente como as mais antecedentes manifestações de religiosidade da espécie humana. Traduzia-se nesses astros a tentativa do homem primitivo de neles buscar proteção contra as intempéries e os animais predadores.⁴¹

    Segundo o autor, no período Paleolítico Superior (30.000 a.C a 18.000 a.C.), devido à glaciação, os homens isolaram-se em cavernas, e, foi essa [...] longa permanência nas cavernas, aliada a inteligência mais desenvolvida, que tornou possível o nascimento da arte, com as representações de cenas de caça nas paredes das cavernas, assim como as referidas manifestações de religiosidade.⁴²

    Sobre o que levaria os primeiros seres humanos a abraçarem a religião, o filósofo inglês, David Hume, em História natural da religião, de 1757, afirmou que [...] as primeiras ideias da religião não nasceram de uma contemplação das obras da natureza, mas de uma preocupação em relação aos acontecimentos da vida, e da incessante esperança e medo que influenciam o espírito humano.⁴³ Silva Neto, na mesma linha, afirma que o surgimento da religião está associado à insegurança humana⁴⁴. Heloísa Sanches Querino Chehoud salienta o medo da morte em sua origem: A morte é o maior temor humano, e é exatamente aí que entre a religião, como proposta de salvação, a vida eterna, por meio da fé.⁴⁵

    O pai da psicanálise, Sigmund Freud, pensa parecido, no que se refere à necessidade humana:

    Tal como para a humanidade em seu todo, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. Uma cota de privações lhe é imposta pela cultura de que faz parte; outra porção de sofrimento lhe é causada pelas demais pessoas, seja a despeito dos preceitos da cultura, seja em consequência das imperfeições dela. Acrescenta-se a isso os danos que a natureza indomada – ela a chama de destino – lhe provoca. [...]

    [...] a autoconfiança gravemente ameaçada do homem exige consolo; o mundo e a vida devem ser despojados de seus pavores; e, ao mesmo tempo, a curiosidade humana, sem dúvida impulsionada pelos mais poderosos interesses práticos, também quer uma resposta.⁴⁶

    Portanto, para Freud, a vida humana é marcada por sofrimentos, que requerem uma resposta. O primeiro passo, segundo o autor, foi humanizar a natureza. Dessa forma, o homem se sente mais aliviado, com um domínio maior da situação, ao substituir a ciência da natureza pela psíquica:

    Forças e destinos impessoais são inacessíveis, permanecem eternamente estranhos. Porém, [...] se mesmo a morte não é algo espontâneo, mas o ato de violência de uma vontade maléfica; se, na natureza, o homem está cercado em toda parte por entes iguais àqueles que conhece em sua própria sociedade, então ele respira aliviado, sente-se em casa em meio a coisas inquietantes e pode elaborar psiquicamente a sua angústia sem sentido.⁴⁷

    Essa humanização da natureza, para o autor, está ligada a um modelo infantil, sendo, [...] na verdade, apenas a continuação de uma situação antiga, pois uma vez o homem já se encontrou em tal desamparo: quando criança pequena diante de seus pais, que tinha razão para temer – sobretudo o pai –, mas de cuja proteção contra os perigos que então conhecia também estava seguro.⁴⁸

    Freud reconhece que, com o tempo, [...] são feitas as primeiras observações de regularidades e de leis nos fenômenos naturais e, com isso, as forças da natureza perdem seus traços humanos. Mas o desamparo dos homens permanece, e, com ele, os deuses e o anseio pelo pai. Os deuses conservam a sua tripla tarefa: afastar os pavores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, em especial como ele se mostra na morte, e recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a convivência na cultura lhes impõe.⁴⁹ Para o autor, [...] quanto mais a natureza se torna independente, quanto mais os deuses dela se retiram, tanto mais seriamente todas as expectativas se concentram na terceira tarefa que lhes é atribuída, tanto mais o âmbito moral se transforma em seu verdadeiro domínio. [...] A esses preceitos será atribuída origem divina, serão elevados acima da sociedade humana e estendidos à natureza e aos acontecimentos do mundo.⁵⁰ Cria-se, assim, um patrimônio de ideias, que diz algo como: Tudo o que acontece neste mundo é a realização dos propósitos de uma inteligência superior que, mesmo por caminhos e descaminhos difíceis de entender, acaba por guiar tudo para o bem, ou seja, para a nossa satisfação.⁵¹

    As primeiras religiões teriam sido totêmicas, sendo que o Deus animal, em seguida, foi substituído pelo Deus humano, e essa ligação consistiria na continuação do desamparo da criança no adulto, com base no complexo de Édipo:

    [...] a mãe que satisfaz a fome se transforma no primeiro objeto de amor, e, certamente, também na primeira proteção contra todos os perigos indeterminados e ameaçadores do mundo exterior – na primeira proteção contra o medo, podemos dizer.

    Nessa função, a mãe logo será substituída pelo pai, mais forte, que a conserva ao longo de toda a sua infância. A relação com o pai, porém é acometida por uma ambivalência peculiar. Ele próprio era um perigo, talvez desde o tempo de sua relação com a mãe. Assim, ele não é menos temido quando se anseia por ele e o admira. [...] Quando então o adolescente percebe que está destinado a ser sempre uma criança, que jamais poderá prescindir de proteção contra poderes desconhecidos, empresta-lhes os traços da figura paterna, cria os deuses, dos quais tem medo, que procura agradar, e aos quais, no entanto, confia a sua proteção. Assim, o motivo do anseio pelo pai é idêntico à necessidade de proteção contra as consequências da impotência humana; a defesa contra o desamparo infantil empresta seus traços característicos à reação contra o desamparo que o adulto é forçado a reconhecer, reação que é precisamente a formação da religião.⁵²

    Fazendo-se um resumo, pode-se dizer que o pensamento de Freud, no que se refere à origem das religiões, diz respeito a esta ter surgido como uma resposta ao sentimento de desamparo do ser humano, em face dos diversos sofrimentos presentes na sua vida. Esse desamparo é preenchido, na infância, pelo pai, e na vida adulta, pelos deuses, incialmente animais, que, em seguida, foram substituídos por deuses humanos. A religião derivar-se-ia então do Complexo de Édipo freudiano.

    Dando seguimento ao trabalho, explana Silva e Neto que, no período neolítico (18.000 a.C. a 5.000 a.C.), [...] novas alterações climáticas modificaram a vegetação da face da Terra, tendo havido aumento das populações primitivas e, inversamente, da caça e pesca, determinando a sedentarização do homem, o início e o desenvolvimento da agricultura e o aparecimento dos primeiros aglomerados urbanos.⁵³ Trata-se, portanto, da Revolução Agrícola.

    Segundo Yuval Noah Harari, (de uma forma diferente da explicação de Freud, que afirmou que a explicação da transição do Deus animal para o Deus humano está presente no Complexo de Édipo) foi essa revolução o fator responsável pela transição, pelos humanos, das religiões animistas para as naturistas. Explana o autor que as religiões animistas [...] tendiam a ter uma perspectiva muito local e a enfatizar as características singulares de lugares, climas e fenômenos específicos. A maioria dos caçadores-coletores passava a vida inteira em uma área de não mais de mil quilômetros quadrados.⁵⁴ Desse modo, "A Revolução Agrícola parece ter sido acompanhada de uma revolução religiosa. Os caçadores-coletores caçavam animais selvagens e coletavam plantas silvestres, que podiam ser vistos como iguais em status ao Homo sapiens. [...] Portanto, o primeiro efeito religioso da Revolução Agrícola foi transformar as plantas e os animais de membros iguais de uma mesa-redonda espiritual em propriedade. (Itálico do original).⁵⁵ Com essa revolução, Deuses [...] perderam sua capacidade de falar, e a principal função dos deuses era fazer a mediação entre os humanos, as plantas e os animais calados."⁵⁶

    Afirma Harari que No início, a Revolução Agrícola teve um impacto muito menor no status de outros membros do sistema animista [...]. Mas, quando os reinos e as redes de comércio se expandiram, as pessoas precisaram contatar entidades cujo poder e autoridade abarcassem um reino inteiro ou uma região comercial inteira.⁵⁷ Surgiram daí as religiões politeístas, onde os espíritos que compunham a natureza [...] eram muito menos importantes que os grandes deuses, mas eram bons o bastante para satisfazer as necessidades mundanas de muitas pessoas comuns. Para Harari, o maior impacto da ascensão dos grandes deuses se deu "[...] sobre o status do Homo Sapiens. Os animistas acreditavam que os humanos fossem apenas uma das muitas criaturas que habitam o mundo. Os politeístas, por outro lado, cada vez mais viam o mundo como um reflexo da relação entre deuses e humanos. [...] O politeísmo, portanto, exaltava não só o status dos deuses como também o da humanidade." (Itálico do original).⁵⁸

    As religiões politeístas, segundo Harari, costumam ser mais tolerantes em relação às monoteístas:

    A ideia do politeísmo leva a uma tolerância religiosa muito maior. Como os politeístas acreditam, por um lado, em um poder supremo e completamente desinteressado e, por outro lado, em muitos poderes parciais e tendenciosos, não há dificuldade para os devotos de um deus aceitarem a existência e a eficácia de outros deuses. O politeísmo é inerentemente tolerante e raramente persegue hereges e infiéis.

    Mesmo quando conquistaram grandes impérios gigantescos, os politeístas não tentaram converter seus súditos.⁵⁹

    Afirma ainda o autor que Como os monoteístas costumam acreditar que são detentores de toda a mensagem de um único Deus, são compelidos a descrer de todas as outras religiões. Nos últimos dois milênios, os monoteístas tentaram, repetidas vezes, se fortalecer exterminando de maneira violenta toda concorrência.⁶⁰

    Na mesma linha, David Hume explica que o politeísmo [...] possui a evidente vantagem de limitar os poderes e funções de suas divindades, admitir naturalmente os deuses de outras seitas e nações como partícipes da divindade e permitir a associação das diversas divindades entre si, bem como dos ritos, das cerimônias e das tradições.⁶¹

    Sobre essa questão relacionada à intolerância religiosa, é interessante a abordagem do pensamento do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. O autor, realizando uma comparação no Estado Constitucional atual entre o cidadão secularizado e o cidadão religioso, explica que, para aquele, "[...] o pluralismo de modos de vida nos quais se refletem, respectivamente, diferentes imagens de mundo, não provoca dissonâncias cognitivas com convicções éticas próprias." (Itálico do original)⁶². Para um cidadão religioso, entretanto, a situação é um pouco diferente, uma vez que "Cada religião é, originalmente, ‘imagem de mundo’ ou ‘compreensive doctrine’, inclusive no sentido de que ela pretende ser, ela mesma, uma autoridade capaz de estruturar uma forma de vida em seu todo. (Itálicos do original).⁶³ Portanto, Quando o etos estranho não é apenas uma questão de valorização relativizadora, mas também de verdade ou inverdade, a exigência de manifestar igual respeito por cada cidadão sem considerar sua autocompreensão ética ou sua conduta de vida particular constitui um peso maior."⁶⁴

    Insta salientar que essa comparação realizada por Habermas entre os cidadãos secularizados e os religiosos, no Estado Constitucional atual, assemelha-se à comparação entre as religiões monoteístas e politeístas, realizadas por Harari e por Hume. Ora, nas religiões politeístas, o pensamento diferente não causava incômodo, pois a mensagem profanada por um determinado Deus não seria necessariamente mais verdadeira que a proferida por outro Deus de outra tribo. Do mesmo modo, o cidadão secularizado também não possui sua verdade como algo absoluto, necessariamente verdadeiro, mas apenas como uma determinada visão de mundo. Já os monoteístas descritos por Harari e por Hume, semelhantes aos cidadãos religiosos atuais descritos por Habermas, por terem uma verdade absoluta e inequívoca, acabam sendo mais propensos a não aceitar um pensamento diferente como algo digno de ser colocado.

    Disso conclui-se que a raiz do problema da intolerância, não apenas religiosa, mas também de qualquer outra forma de convicção político-filosófica, depende da forma como os indivíduos enxergam suas respectivas convicções político-filosófico-religiosas: se tais convicções são tidas como verdades absolutas incontestáveis, será necessário um esforço maior por parte desse cidadão para aceitar o pensamento divergente como algo digno de ser colocado, aceitando, portanto, que o Estado Constitucional estará acima de suas crenças particulares.

    Voltando ao assunto, sobre a passagem do politeísmo ao monoteísmo, Freud afirma que sua origem está no [...] estabelecimento de relações mais íntimas entre nações diferentes e à construção de um grande império.⁶⁵ Afirma o autor:

    Com a união das tribos e dos povos em unidades maiores, os deuses também se organizam em famílias, em hierarquias. Muitas vezes um deles é elevado à categoria de soberano acima de deuses e homens. De maneira hesitante, ocorre então o passo seguinte, de adorar um só deus, e por fim sucede a decisão de conceder todo o poder a um único deus e não tolerar quaisquer outros deuses ao seu lado. Apenas com isso fora restaurada a magnificência do pai da horda primordial, e os afetos que lhe diziam respeito puderam ser repetidos.⁶⁶

    Ressalta-se que nesse último trecho, quando Freud fala que foi restaurada a magnificência do pai da horda primordial, o autor está se referindo mais uma vez ao Complexo de Édipo⁶⁷.

    Harari, mais uma vez divergindo de Freud, defende que esse caráter missionário - e muitas vezes até mesmo violento - das religiões monoteístas, é o que consiste no fator responsável para o atual prevalecimento do monoteísmo, na crença dos seres humanos⁶⁸. Mas, assim como o animismo continuou a sobreviver no interior do politeísmo, o politeísmo também continuou a sobreviver no interior do monoteísmo.⁶⁹ Portanto, As religiões monoteístas expulsaram os deuses pela porta da frente com muito barulho, para em seguida aceita-los de volta pela janela lateral. O cristianismo, por exemplo, desenvolveu seu próprio panteão de santos, cujos cultos pouco diferiam dos cultos aos deuses politeístas.⁷⁰

    Feita essa breve explicação psicológica, sociológica e filosófica sobre a formação e o desenvolvimento das religiões, de sua forma anímica ao monoteísmo, seguiremos à análise histórico-política sobre a relação entre a Religião e o Estado, desde a antiguidade até o atual Estado Constitucional. Perceberemos que o desenvolvimento dessa

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