Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

(Des)arrumação
(Des)arrumação
(Des)arrumação
E-book345 páginas3 horas

(Des)arrumação

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Filipa sempre foi uma amante da escrita, mas não consegue escrever nada há anos, seja por falta de tempo ou por falta de inspiração. Numa tarde chuvosa decide pegar no  computador e começar a escrever a história de Matilde,  uma personagem fictícia criada por si para fugir aos  seus pensamentos e sentimentos, com os quais vai  deixando de saber de lidar. Entre dois amores, perde-se  e apenas consegue encontrar-se quando escreve esta  narrativa, que se mistura com a sua. 

Matilde, a personagem criada por Filipa, vive um amor  intenso, enquanto aprende a lidar com as  crises de ansiedade e tenta acalmar uma depressão.

Talvez estas duas personagens não sejam as únicas a tentar arrumar a sua vida criando outra que não a sua...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2024
ISBN9789895791484
(Des)arrumação

Relacionado a (Des)arrumação

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de (Des)arrumação

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    (Des)arrumação - Andreia Cardoso Dias

    Capítulo I

    Filipa

    O som da chuva sempre me fez entrar numa bolha introspetiva. Nunca percebi bem o motivo. Não sei se pela melancolia do barulho das gotas a bater nas janelas ou se pelo tom mais escuro dos dias chuvosos. Sei apenas que a chuva sempre me deu vontade de lavar a alma e deixar sair um pouco daquilo que sinto. A verdade é que nunca fui muito boa a demonstrar sentimentos, bons ou maus, normalmente sinto tanta coisa, ao mesmo tempo, que nem sei bem o que sinto. Para além disto, admiti-los só para mim custa muito menos. Parece que se não os contar a ninguém não vou ser magoada. Por isso, decidi começar a escrevê-los. Se ficarem apenas cravados nas páginas do meu computador serão sempre só meus.

    Lembro-me quando era adolescente e escrevia, escrevia muito. Sobre tudo e nada. Às vezes poesia, outras vezes, histórias parvas e sem sentido. Escrevia um pouco sobre aquilo que eu gostava que fosse a minha vida. Também escrevia sobre aquilo que era a minha vida, mas eu não gostava que fosse. Na altura escrevia à mão. Dá para acreditar? Cheguei a escrever uma história com 600 páginas escritas à mão, que nunca saíram do meu móvel do quarto. Ainda lá está, em folhas de papel, com as letras meio apagadas e com os sentimentos infantis, que eu achava fazer sentido colocar em palavras. Com as 600 páginas surgiram os dedos calejados, que assim permanecem até hoje.

    Achei, durante muito tempo, que as minhas histórias inventadas tinham desaparecido da minha alma e que já não sabia escrever. A vida meteu-se no meio e a paixão, que, em tempos, achei ser eterna, desvaneceu-se no meio da correria da minha vida. Quando era pequena dizia, muitas vezes, que queria ser escritora, mas fui levada para outros caminhos e a vontade de escrever deixou-se levar pelo cansaço do dia a dia. Às vezes, ainda tentava sentar-me no computador a escrever sobre qualquer coisa boa, que me tinha acontecido naquele dia, só que nunca consegui escrever muito mais do que um parágrafo e a frustração de achar que já não tinha sentimentos para escrever foi-me deixando deprimida.

    Não é que hoje tenha muito tempo. Na verdade, devia estar a estudar para um exame que vou ter, mas resolvi parar o tempo lá fora, agarrar num copo de vinho e ver se conseguia escrever algo. Sentei-me no sofá com o computador em cima das pernas, respirei fundo e parece que nunca o deixei de fazer. Tenho os fones nos ouvidos e estou a ouvir Harry Styles. Lá fora o fim do dia está chuvoso e a inspiração acabou por surgir. Vejo as folhas das árvores a bater na minha janela, a chuva a cair e tenho, em mim, mil palavras para colocar por escrito.

    Matilde

    A chávena de café está quente e tenho de apanhar o autocarro para ir para o trabalho. Já estou atrasada e o meu chefe ainda ontem implicou comigo. Começo a beber o primeiro gole de café e parece que ainda o estou a ouvir:

    - Matilde, já lhe disse que não pode continuar a chegar atrasada. Não tem cumprido os timings que lhe damos para entrega dos projetos e ainda chega constantemente atrasada!

    Sinto dores todos os dias e, muitas vezes, o meu corpo não acompanha a energia da minha mente. A depressão, que tive quando era adolescente, deu lugar a uma energia interminável, que provavelmente é uma forma de não me recordar das minhas lembranças negativas e atualmente sinto que sou uma pessoa feliz e animada. Só que o problema de saúde que descobri recentemente não me permite fazer tudo aquilo que quero. As dores são constantes e o cansaço não me abandona. A primeira vez que cheguei atrasada ao escritório tentei explicar isso ao meu chefe. Embora se tivesse demonstrado compreensivo, com o tempo a compreensão deu lugar à impaciência. Nunca pedi um tratamento diferente de ninguém, mas a verdade é que viver com uma doença crónica não é fácil e tenho a sensação que acham sempre que por não termos algo visível estamos ótimos.

    Enquanto bebia o meu café aproveitei para mandar uma mensagem de bom dia ao João. É um ritual nosso começar o dia desta forma. Nós vivemos juntos, mas temos horários desencontrados, por isso, quando saio de casa ele ainda está a dormir e gosto de o acordar com uma mensagem carinhosa, todos os dias: Bom dia, amor. Já estou atrasada e sei que vou ouvir o meu chefe. Hoje até tive uma noite tranquila, mas a minha barriga ainda se queixou um bocadinho. Quando acordares avisa. Amo-te.

    Meti Rosalía a tocar baixinho na minha coluna portátil e fui tomar um duche rápido. A água quente relaxou todos os meus músculos. Por momentos, esqueci-me das dores. Estava preparada para um novo dia. Vesti umas calças bege, uma camisa castanha e um blazer. Enquanto meti uma meia torrada na boca, fui a correr para a paragem do autocarro.

    Normalmente, enquanto espero pelo autocarro, gosto de observar as pessoas à minha volta e tentar decifrar o que pensam ou sentem. Vejo, muitas vezes, os rostos cobertos de preocupações, os sorrisos tímidos, enquanto vão olhando para o telemóvel e imagino que devem fazer algo parecido comigo e enviar uma mensagem matinal aos seus namorados e namoradas. Às vezes, também, vejo algumas mães a ir deixar os filhos à escola e penso que gostava de ser mãe brevemente. Depois lembro-me, por momentos, que a minha doença pode colocar alguns entraves a este objetivo.

    Descobri que tenho Doença de Crohn¹ há dois anos, depois de uma crise de quase um mês. Naquela altura juro que achei que ia morrer. Tinha dores abdominais constantes, não conseguia sair da casa de banho e perdi cerca de 20 kg. Entre várias idas às urgências de vários hospitais e diagnósticos errados, pensei, muitas vezes, que, mais tarde, iria acabar por desaparecer. E a verdade é que fui efetivamente desaparecendo aos poucos, sendo cada vez menos eu. Não conseguia sair de casa, nem sequer levantar-me da cama. Acho que durante muito tempo, não sorri. Mais do que fisicamente, desaparecia todos os dias mais um bocadinho psicologicamente. Um dia cheguei a desmaiar de tão fraca que estava e esse foi um ponto de viragem. Os meus pais meteram-me no carro e fui novamente ao hospital.

    Nunca gostei de hospitais, pois sempre me fizeram lembrar que se as pessoas ali estão é porque não estão bem e se não estão bem é porque estão a um passo da morte. Sei perfeitamente que é um pensamento sem sentido, o correto seria pensar o oposto: se as pessoas ali estão é porque estão mais perto da cura. Mas sei lá, quem é que gosta de hospitais? O cheiro entranhado a remédios, desinfetantes e doenças. Naquele dia fui para o hospital bastante contrariada, porque sabia que o quadro não devia ser animador, mas, ao mesmo tempo, tinha a certeza que não podia continuar assim. Mal sabia eu que aquela ida ao hospital iria mudar a minha vida. Falo disto com muito pouca gente, mas vivi, durante muito tempo, atormentada pela minha estadia naquele hospital.

    Vejo uma criança a olhar para mim e tento abstrair-me da preocupação se posso ou não ser mãe. Até porque o autocarro chegou e essa preocupação foi substituída pela ânsia de saber como iria reagir o meu chefe a um novo atraso.

    Cheguei ao escritório e assim que pendurei o casaco vi o seu ar reprovador a olhar de soslaio. Quase que já estava a ver as rugas franzidas da sua testa e o seu mau humor matinal a cruzar-me o peito que nem uma flecha. Sou uma pessoa sensível e choro com facilidade, talvez fruto da minha ansiedade e da depressão que passei, e já sabia que assim que ele começasse a falar iria desmoronar. Como sempre.

    - Matilde, já lhe disse que não pode continuar a chegar… - resmunga.

    - Atrasada. Já sei. Peço desculpa – interrompi como forma de proteção. Se ele não acabasse a frase talvez não magoasse tanto. Talvez eu conseguisse não chorar. Como eu odeio chorar à frente das pessoas e como é o que eu mais faço às vezes.

    Ele calou-se. Felizmente. Não acrescentou mais nada, porque acho que teve pena de mim ou então porque fiz um beicinho involuntário. Também é comum. Quando me irritam, quando não quero chorar, quando estou demasiado feliz. Muitas vezes, não controlo o meu lábio inferior e lá surge um beicinho. Às vezes tímido, outras vezes não. Muitas vezes acompanhado de mil lágrimas. Mas ainda bem que se calou, não queria passar pelo martírio de lhe explicar novamente o motivo do meu atraso. Ele ia ouvir, mas não ia compreender. Como nunca o faz.

    (…)

    Filipa

    Continua a chover lá fora e eu consegui escrever 15 parágrafos. 15 pequenos, curtos parágrafos, mas 15 parágrafos. Meio desajeitados e talvez sem nexo, mas estão escritos. Há tanto tempo que não escrevia que fico feliz com o meu feito, quase como se tivesse escrito os Maias, mas sem nenhum Carlos e Maria Eduarda com a sua relação incestuosa. Só mesmo uma história solta, perdida e talvez descompensada. Provavelmente, nem sequer vai ver a luz do dia, mas faz-me bem. Deixar de viver um pouco da minha história e viver um pouco mais da história de outro alguém, mesmo que não seja verdadeira. Acho que, às vezes, até a minha não o é, portanto, não é por aí.

    Nem sei em quem me inspirei quando criei a Matilde e o João. Nunca tive uma relação estável, duradoura e quando os imaginei, imaginei com tudo. Com o estereótipo de casal perfeito e unido. O típico casal romântico, que vai ao cinema namorar, que passeia de mãos dadas à beira-mar, que faz muito sexo e que imagina o seu futuro com um casamento duradouro e cheio de filhos. Mas, sinceramente, nunca vivi esse amor. A primeira e única relação em que estive é aquela que tenho agora, que não é de todo perfeita. O Martim não é de todo perfeito.

    Conheci o Martim num tribunal. Que romântico, não? Fui defender um cliente de um crime de assassinato. Na verdade, foi o meu primeiro caso maior. Por todos os motivos. O meu cliente matou a mulher à facada por ela o ter traído com o melhor amigo dele. Só que o meu cliente não era uma pessoa qualquer, era um pivot do maior telejornal do país. Claro que a sala de audiência estava completamente cheia de jornalistas.

    No canto da sala de audiência estava um jornalista, que me chamou a atenção durante todo o julgamento e que fez com que me distraísse mais do que queria, várias vezes. As expressões dele não eram de curiosidade pelo caso. Diria que vi tristeza no seu olhar e isso inquietou-me. Por que é que um jornalista que estava apenas a fazer o seu trabalho estaria triste num julgamento? E, para além disto, ele era lindo. Parecia alto, mas sentado não conseguia perceber bem, mas conseguia ver as formas bem definidas do seu corpo, nos braços principalmente. Tinha uns olhos lindos com as suas pestanas delineadas na perfeição e uns lábios promitentes, que não me deixavam desviar o olhar. Sei que ele também olhou para mim. Mais do que o ver olhar para mim, senti uma vontade enorme de lhe dar colo, porque percebi que algo estava errado.

    Assim que acabou o julgamento levantei-me para ir embora. Estava profundamente frustrada por não ter conseguido aquilo a que me tinha proposto. Claro que sabia que não haveria absolvição possível, mas não consegui absolutamente nada. O caso não podia estar mais perdido. Então saí da sala meio a correr e sem querer encarar ninguém. Mas encarei-o. Ele cruzou-se comigo à saída e perguntou-me se estava bem. Respondi com a minha arrogância:

    - Acabei de perder o meu primeiro caso importante. Acha que estou bem?

    Ele desabou. Desabou completamente à minha frente. Em lágrimas. Acho que nunca tinha visto um homem a chorar sequer. Ou talvez tenha visto o meu pai quando o meu avô faleceu, mas não a chorar daquela maneira incontrolável. Muito menos um homem a desmoronar por completo, o que me deixou confusa e perguntei de imediato:

    - Desculpe-me… Não queria ser rude. Está tudo bem? Precisa de alguma coisa?

    - Não faz mal. Eu compreendo, mas é que a mulher daquele sacana era minha amiga. Trabalhávamos juntos na redação.

    Nem pensei que fosse possível fazerem tal crueldade. Ele devia estar longe daquela história. Devia estar protegido e não preocupado em bisbilhotar a morte da sua amiga e possivelmente do seu amigo, porque certamente que se conheciam, tendo em conta que trabalham todos no mesmo meio.

    - Desculpe mais uma vez! Fui uma besta – é o habitual digo entredentes – não deve ser fácil.

    Nem sabia bem o que dizer. O que se diz nestas situações? Diz-se que se lamenta? Abraça-se? Eu queria muito abraçá-lo e aqueles olhos estavam a pedi-lo, mas era um estranho. Não deixava de ser um estranho. Ia achar-me louca por desatar aos abraços a ele. Certamente que já me achava depravada por estar a defender o assassino da sua amiga… Porra… Eu defendi o assassino da sua amiga.

    - Desculpe também por o ter defendido … Bem, é o meu trabalho… Mas peço muita desculpa.

    - Já conseguiu pedir-me desculpa umas dez vezes neste curto espaço de tempo – e sorriu. As lágrimas tornaram-se num sorriso tímido. Parecia que já tinha visto aquele sorriso mil vezes e que ele já me era tão familiar.

    Admito que fiquei nervosa. O sorriso dele intimidou-me, por isso, limitei-me a sorrir para ele e a acenar. Não sabia o que havia de dizer, primeiro, porque fui desagradável e depois, porque fiquei sem jeito. Como é que se reage a um sorriso daqueles?

    Durante alguns dias, pensei muito naqueles olhos tristes, enquanto o julgamento decorria e naquele sorriso quando se despediu de mim. Aliás quando o obriguei a despedir-se de mim, porque pareceu que ele tinha muito mais para dizer, mas fui eu que terminei a conversa. Pensei também se o iria ver novamente, mas achei sempre que seria improvável, pois o nosso meio de trabalho nem sequer estava ligado. Naquele dia apenas calhou. Foi um mero acaso.

    Capítulo II

    (…)

    Matilde

    Não tinha um dia de trabalho tão atarefado há imenso tempo. Consegui finalmente acabar todos os projetos, que tinha pendentes. O projeto da casa do Estoril foi, sem dúvida, o que me deu mais trabalho, ou não estivéssemos nós a falar de uma mansão de luxo de um qualquer jogador de futebol, que não faço ideia de quem seja. A verdade é que este projeto acabou por destabilizar a minha organização quanto a todos os outros, porque me deu uma ansiedade fora do normal.

    Lido com ansiedade desde cedo. Dos ataques de ansiedade à depressão foi um salto demasiado pequeno e rápido. A primeira vez que me lembro de ter tido um ataque talvez tenha sido quando tinha uns 15 anos. Tinha uma paixoneta por um rapaz da minha escola, mas ele não tinha por mim e eu não soube lidar com a rejeição. É certo que sempre fui dramática, e eu sei disso, mas aquela primeira desilusão de amor pareceu-me o fim do mundo. Verdade seja: quem nunca?

    No primeiro ataque de ansiedade senti que não conseguia parar de chorar. Achei mesmo que não sabia fazer mais nada. Chorava por tudo. Depois chorava mais um pouco por nada. Chorava tanto que não conseguia respirar e engasgava-me no soluçar. Percebi que isso não era normal quando a angústia começou a consumir-me e comecei a questionar quais as minhas formas de acabar com a dor. Nesses pensamentos ocorreram-me mil ideias, mas a minha ingenuidade de adolescente e a distração do dia a dia fizeram-me esquecer essa dor.

    Depois as discussões com os meus pais. Não sei por que motivo, mas sempre fui uma rebelde. Sempre fiz exatamente o contrário do que me diziam. E quando eu digo sempre não estou a exagerar, era mesmo sempre. Os meus pais diziam Não faças isso! e era precisamente isso que eu fazia. As mil discussões nunca ajudaram na minha ansiedade e sempre me fizeram sentir uma incapaz, que nunca acertava nas escolhas que fazia e que acabava sempre por desiludir os pais.

    Nos dias de hoje e depois de mil ataques de ansiedade pelos mais variados motivos, sei que isso me afeta muito. Em tudo, mas principalmente no meu trabalho. Às vezes, tenho picos de ansiedade tão grandes que não me consigo concentrar em mais nada do que na minha respiração, porque sinto que se não o fizer sufoco.

    Muitas vezes, acho que é muito para lidar. Uma doença crónica. Ou duas. Não será a ansiedade e até mesmo a depressão uma doença crónica? Já tento sair delas há tanto tempo e quando, às vezes, parece que consigo… Volta tudo ao mesmo.

    Agora, com este projeto, os ataques de ansiedade voltaram. A pressão de ter um projeto importante para entregar e estar atrasada. As palavras de constante reprovação do meu chefe. A doença que, às vezes, não me dá paz. A medicação para a minha doença que, às vezes, me dá

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1