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Relatório De Erros
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E-book383 páginas5 horas

Relatório De Erros

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Sobre este e-book

O presente relatório vem no sentido de apresentar o que eu entendi dessa história desde o seu começo. O café ficou frio e Draize dormiu e eu não tinha escrito nada. O sol ficaria frio e o universo dormiria e eu não escreveria nada. Tentamos fazer relatórios. Tentamos procedimentos e metodologias. Propósito. Onde chegar. Objetivos específicos. Significado. Por que chegar. Objetivos gerais. A vida quer que isso se foda. Um erro é quando os resultados não se encaixam nos objetivos. Só que não acontecer é um erro muito grave para um acerto cometer. “
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de mar. de 2019
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    Relatório De Erros - Carolina L. Gregorio

    Relatório de Erros

    2

    PRÓLOGO

    Já é a décima vez que abro essa página para tentar sangrar em palavras o que me aconteceu.

    A décima vez só hoje.

    Meu ir e vir diante do computador parece o passo incansável e descaminhado de uma mãe no corredor do hospital em que seu filho está sendo operado.

    Um dia sempre espero que pare de doer e eu simplesmente comece a escrever, mas esse dia nunca chega e eu estou ficando cansado.

    Você tem vinte e quatro anos, Thomas. Não pode ficar cansado tão cedo, tem a vida toda pela frente.

    Ah, assista- me.

    Tentei chorar no chuveiro e não consegui. Tentei lembrar das coisas mais tristes que conseguia, tentei lembrar-me de Arthur, a única pessoa capaz de me fazer chorar, mas só escancarei minha boca jogado contra a parede e senti meus olhos úmidos; pudera, estava no chuveiro. Gritei em silêncio até que a ansiedade começou a me dar náuseas. Sequei meu corpo na toalha e estou com um enjoo imenso. Pode ser porque não como nada há mais de vinte e oito horas, mas não sei. Estou repleto de uma angústia como se eu tivesse me enchido de cafeína, mas mal toquei na caneca de café. Respiração pesada e esse nó na garganta. Levemente tonto. Passei cinco minutos olhando para as gotas de glicerina

    que se formaram no sabonete antes de desligar o chuveiro. Passei dez minutos olhando para a caneca de Star Wars cheia de café até tomar um gole do líquido gelado. Passei uma hora olhando para uma página vazia de Word antes de colocar nela sequer uma palavra.

    Parece exagero. Deve ser. Sinceramente, não fiquei contando.

    Aliás, a caneca não é minha. Nunca assisti Star Wars. Isso é coisa do Douglas.

    Quem é que leva canecas para a casa da namorada logo nas primeiras vezes em que começa a dormir na casa dela?

    5

    Deve ser errado falar mal dele agora, mas nada do ocorrido vai limpar da minha mente a imagem de que ele era nada mais do que um qualquer que comia minha mãe, que me deixou nada além de essa caneca e uma ruína do tamanho de Roma incinerada na minha vida.

    Só posso agradecer pelo que ele me deixou, contudo. Até mesmo pela caneca. É uma boa caneca. Bordas grossas para manter o líquido quentinho.

    Vou tentar mais uma vez, por Arthur. Ninguém nunca soube quem ele foi de verdade. Ninguém quis me ouvir, quem sabe alguém aceite me ler. Preciso urgentemente terminar esse manuscrito maldito e vadio, mal escrito e resmunguento, antes que ninguém mais se interesse pela história e tudo seja fadado ao esquecim ento.

    Arthur, o sem coração.

    Todos achavam que ele era um doente. Um demente, um louco, um criminoso. Um assassino.

    Tudo indicaria que ele era, mesmo. As pessoas não podem mais se dar ao luxo de acreditar.

    Talvez ele seja.

    Arthur, The Heartless .

    Essa história não é para ser um exemplo. Ela não é feita para vocês entenderem meu ponto de vista ou me amarem, porque vocês serão ainda mais doentes do que eu se o fizerem. Tampouco é para que vocês acreditem em pessoas como Arthur, porque não existem ‘pessoas como Arthur’.

    Está chovendo e eu não posso sair correndo pela rua. Cogito mesmo assim. Talvez uma caminhada debaixo da água gelada ajude minhas ideias.

    Um pouco de pneumonia sempre cai bem.

    Posso quase ouvir a voz de Arthur ao meu lado, com a sua mão branca de dedos longos e esquemáticos no meu ombro, tamborilando como se minha clavícula fosse um piano. ‘Oh, Thomas, você continua o mesmo’. Ele riria dolorosamente, como quem nunca tinha rido antes. Como resposta automática de seu corpo e como se não houvesse nada de social naquilo.

    Como um ataque epiléptico.

    Arthur, me desculpe. Não foi em vão, eu juro. Se eu fui capaz de sorrir de novo, foi por causa de você. Se eu estou

    6

    vivo hoje, é por causa de você. E isso é terrivelmente, terrivelmente irônico.

    Sou um clichê, e nem é dos clichês bonitos. Nem mesmo é aquele domingo preguiçoso, com o sol lá fora e você jogado na cama, arrependendo-se do nada que fez e angustiando-se do nada que vai acabar.

    Sou o clichê que se chama de clichê antes que alguém o faça. Já tiro esse argumento da boca de todos, mesmo que seja uma verdade. Sou um pleonasmo, e nem é dos pleonasmos que servem para enfatizar algo. Eu sou uma frase malfeita.

    Se eu ainda posso ser um clichê, se ao menos posso ser alguma coisa, bem...

    Eu, um pessimista, irônico, azedo, entorpecido com pouco mais de duas décadas de vida.

    Você está na era da internet. Vê em cinco minutos mais do que uma pessoa da Idade Média veria em sua vida inteira.

    E você tem crise de meia-idade a cada dois minutos e meio.

    Todo mundo quer ser louco para não ser igual a ninguém, e nisso formam um novo tipo de louco padronizado. Você e todo mundo acham que vão contra a corrente e formam toda uma nova corrente para alguém querer ir contra. E para qualquer coisa que você faça sempre existirá uma criança oriental de seis anos de idade que faz melhor que você.

    Você quer um amor verdadeiro mas a cada vez que seu coração se parte você aprende todas as lições erradas. Você quer ser aceito ao mesmo tempo em que quer ser original. Você lê dezenas de livros e assiste a dezenas de filmes querendo que alguém bata à sua porta e te convide para uma aventura, mas é bem verdade que você nunca se permitiria nada daquilo.

    Você? Que mal sai na chuva sem uma sombrinha?

    Ainda mais se você é um riquinho filhinho de mamãe feito eu. Nunca tinha levado um soco na cara na vida, mas que tinha lido Clube da Luta e ao menos achava podia me valer do soco no estômago causado pelas palavras. Eu realmente era um lutador. Um cuspidor de sangue.

    Quando eu era um calouro, eu lia o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos tentava juntar um monte de sintomas para vestir e montar minha insanidade particular.

    7

    E Deus abençoe nossa moralidade burguesa, nosso ateísmo revoltado, nosso coração cauterizado, Deus abençoe esse bando de cheiradores de ciência pulverizada que vertem regras perfeitas pelas artérias. Especialistas em pequenas frases ao alcance do Google. Deus abençoe nossa desconfiança sagrada e afaste-nos do pecado de sermos ingênuos.

    Eu tinha vinte e um anos de idade, minha vida era perfeita e eu queria morrer.

    E isso também não tem nada de original.

    Eu vou tentar poupá-los de divagar demais sobre mim, porque é o tipo de coisa maçante. Pareço aquele tipo de pessoa que arruma uma maneira de falar sobre sua depressão clíni ca em qualquer conversa mundana.

    Por causa do meu antigo namorado eu comecei a beber e me automutilar A pessoa ao meu lado no ponto de ônibus me confessa.

    Verdade, automutilação não é brincadeira. É um vício, eu sei muito bem como você se sente. Respondo, sem perder a grande chance de ouvir os problemas dos outros para ter espaço para falar dos meus.

    Esse diálogo só não é verdadeiro porque eu não andava de ônibus.

    De duas, uma: ou vou gerar imediata identificação dos que são assim e serei abraçado pela turma do eu sei muito bem como você se sente, ou então vou gerar aquele tédio e revolta instantâneos nos que não entendem.

    Você não está partido, você é fraco. Quais são seus problemas? Você, seu riquinho de bosta, mamãe te deu uma Mercedes prateada ao invés da preta? Você está postando sua dor nas redes sociais diretamente do seu laptop da Apple? Macbook, por favor.

    Provavelmente um nome que já vai estar obsoleto até que eu termine minha narrativa sobre Arthur.

    Provavelmente já estará obsoleto até que eu termine essa frase.

    Nós somos cada vez mais livres e cada vez mais perdidos. Nós temos cada vez mais e tudo dura cada vez menos. Nós sabemos demais e queremos desesperadamente sentir alguma coisa. Sofrer de alguma coisa que não podemos explicar,

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    cutucar algo impalpável que nossa repugnância diante da fé não nos permite aceitar como real, só para vê-lo sangrar.

    Alma, em um sentido mais brega.

    Você é uma bichinha fresca. Vocês são a geração de bundões. Vocês não passaram por fome, guerra ou repressão. Vocês sempre tiveram tudo de mão beijada e ficam alimentando sua própria futilidade .

    Primeiro, eu não sou homossexual, mas prefiro que as pessoas achem isso. Então nunca desminto. É mais fácil do que explicar .

    Nós nunca estivemos tão confortáveis e nunca tiv emos tantas oportunidades, mas nós nunca estivemos tão sem esperança.

    Ou sou só eu?

    Talvez isso seja só eu.

    Achar que o mundo gira ao meu redor e ao redor dos meus sentimentos talvez também seja uma doença moderna. Minha mãe realmente me deu uma BMW preta e eu prefiro a branca.

    Nada disso vem ao caso.

    Quero que prestem atenção não em mim, mas na minha história. Eu particularmente sou bem irritante, você vai ver. Você dificilmente vai gostar de mim, e, se gostar vai ser por pena.

    Pegue sua comiseração e enfie no rabo.

    Só estou falando de mim para contar como foi que eu cheguei a conhecer Arthur.

    Oh.

    Olhe. Frases.

    Finalmente consegui digitar algumas páginas. Foi quase fácil.

    Acho que estou pronto para começar.

    9

    PARTE I

    Eleschamamdeamorà vida EuchamodeSíndromede Estocolmo

    10

    I

    Minha mãe tem um laboratório de análises clínicas, e dizer que recebe fluidos corporais e dejetos humanos para exame pode também ser uma boa metáfora para sua vida amorosa. Ela é meio vad ia.

    Vadia no sentido de um possível terrível aspirante a psicólogo que não está com saco para usar um eufemismo.

    Se eu falasse que ela é desapegada das amarras de sua sexualidade feminina, que ela não se prendia a relacionamentos formalizados pela sociedade, que ela busca a satisfação sexual como forma de libertação pessoal em detrimento das coisas consideradas pseudo-corretas, talvez fosse mais bonitinho. Estamos em um mundo pseudo- bonitinho.

    Um discurso cheio de pseudos para mascarar incapacidades. Trocando em termos, ela é meio vadia, sabe. E tá certa

    ela.

    Meu pai nunca passou de um rosto indiferente e um nome que me significava novos jogos de videogame. Ele é dono de um hospital de cardiologia em Porto Alegre e paga uma fortuna de pensão. Todas as férias minha mãe me levava para a Disney, para Miami, para Recife, para Cannes; qualquer coisa para eu não querer ir ali para Porto Alegre ver meu pai.

    Tenho pra mim que ele fez alguma coisa horrível para minha mãe, ou imaginei isso por muito tempo, por não conseguir ver outro motivo para ela me privar irreversivelmente de amor paterno. Contudo, ele também nunca fez questão, e hoje estou certo de que era um alívio e o que eles tinham era um acordo. Consigo visualizar meu pai pagando caro para minha mãe me levar para tudo quanto é lugar e dizer essas férias seu pai não vai poder te ver.

    Minha mãe é de descendência austríaca e meu pai de família britânica, um bando de perdidos que caíram em Londrina. Disso devo ter herdado uma queda por Radiohead e Placebo e certo apego por alguns dos seriados da terra da rainha. Sei que meus pais passaram cinco anos juntos, e eu nasci no ano final. Depois que terminou, ela nunca mais

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    conseguiu ter um relacionamento que durasse sequer um décimo disso.

    Minha irmã, Maya, seis anos mais nova que eu, é filha de um caso que minha mãe teve com um enfermeiro chamado Bruno, que trabalhava para ela.

    Todo final de semana minha irmã e o pai ela saem para tomar café e assistir algum filme alternativo francês, brasileiro ou paquistanês como ela gosta. Ela paga.

    Minha irmã tem dezoito anos e quer fazer Ciências Políticas.

    Ovelha negra de cabelos alaranjados.

    Acho que ter nascido uma linda ruiva de olhos azul- claros deu-lhe uma ideia de que ela era especial o suficiente para fazer a diferença.

    Tomara que ela mude o mundo enquanto eu durmo. Ovelha ruiva.

    Douglas, lá do começo, ainda não tem nada a ver com a história.

    Só quis localizar um pouco. Talvez os nomes estejam misturados agora. Mais adiante talvez fixe melhor. Estela é minha mãe, Augusto é meu pai, Maya é minha irmã e Bruno é o pai dela.

    Douglas foi o filho da puta que arruinou minha vida. Contudo, inesperadamente, foi o necessário para que essa mesma vida inadmissivelmente indesejada se tornasse brilhante. Brilhante como uma peça de cristal lascada, quebrada e repleta de facetas cortantes, mas brilhante.

    Acho que o começo de tudo foi quando decidi ir ao terapeuta.

    Eu estudava Psicologia em uma faculdade particular. Dizem que todo psicólogo precisa fazer terapia, análise ou semelhante, mas eu usava isso para o meu plano.

    Desde os vinte, eu tentava manter um plano para todos os dias. Qualquer plano. Qualquer coisa, por mais imbecil que seja.

    Amanhã eu vou elogiar um desconhecido.

    Daí eu encarava as pessoas de um jeito diferente, diferente da minha maneira de ser sempre tão internalizado, de ver rostos apenas como coisas andando na paisagem. Eu começava

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    a ver as pessoas e a imaginar a vida delas, imaginar quem estava precisando ouvir um ‘você tem lindos olhos’.

    Fazer isso era um desafio e uma superação para um tímido como eu.

    Amanhã quero ver quantas pessoas de roupa amarela passam na minha frente na XV de novembro em uma hora. Dava para fazer um catálogo. Dois vestidos, doze camisetas estampadas, onze camisetas listradas, duas camisas e uma roupinha de bebê em tom quase bege. Se bolsas conferem como roupa, três bolsas. Detalhes amarelos são desconsideráveis.

    Amanhã eu vou ler o capítulo três de Insônia, do Stephen King.

    Amanhã eu vou ler o capítulo quatro de Insônia, do Stephen King.

    Amanhã eu vou comprar lâminas de navalha novas e ver quanto de sangue eu consigo tirar da minha perna esquerda.

    Eu não disse que os planos tinham que ser sadios.

    Ainda assim, eram sadios o suficiente para me fazer levantar da cama.

    E falando em planos que não são sadios...

    Eu acordava toda quinta-feira oito horas da manhã para ir à terapia. Então toda quarta-feira eu chegava da faculdade às onze e ficava acordado deliberadamente até cinco ou seis da manhã. Lia um livro, tomava um banho, fazia abdominais, assistia seriado e tomava um banho de novo. Eu dormia por uma hora e meia ou duas horas e acordava, vez ou outra uma dor de cabeça ricocheteando nas paredes do meu crânio. Era melhor (pior) dormir por uma hora do que por nenhuma. Deixava meu crânio pesado, parecendo uma vasilha quebradiça cheia de um líquido denso.

    Eu pegava duas latas daquelas grandes de Red Bull e saía de casa daquele jeito. Dirigia daquele jeito, e bem rápido.

    Ainda que o tempo frio coroasse as quinas dos edifícios e os rostos das pessoas com um brilho fraco e esbranquiçado, a luz do sol do alvorecer queimava ígnea no fundo dos meus olhos.

    Eu parava na frente da casa residencial vitoriana onde ficava o consultório do meu psicólogo. Saía do carro e parava

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    na calçada, tão indiferente quanto um poste e tão cinza- escuro etéreo quanto fumaça de diesel.

    Eu entrava com um tilintar de um sino de porta. Nunca havia ninguém, e dava aquela sensação de que eu estava sorrateiramente invadindo uma residência alheia.

    Meus olhos são azuis, mas em um tom tão escuro que parecem apenas negros. Ficam mais claros quando eu choro, mas, nem mesmo ali, eu não permitiria que eles ficassem sequer um matiz mais brandos. Mesmo porque em geral eu estava com tanto sono e tão enjoado que nada nem me encostava. Eu nunca deitava no divã para não ficar confortável demais. Eu sentava na cadeira e desembestava a falar sobre o quanto eu tinha dificuldade de me relacionar com a minha irmã, sobre a ausência do meu pai, sobre meu desencanto com a faculdade, sobre a ausência de amigos na minha vida.

    Era meio que verdade, mas só meio. Psicólogos em geral sabem identificar, então eu fazia questão que parecesse que eu estou escondendo alguma coisa. Com isso eu estava escondendo outra coisa, sobre ainda outra, e eu esperava que se tornasse tão confuso a ponto de ele não conseguir sequer entender o que havia na minha mente a princípio e o que era real entre tantas coisas escondidas escondendo coisas escondidas.

    Eu balançava minha perna e estralava meus dedos. Ansiedade, meu terapeuta anotava.

    Eu queria mijar. Tinha tomado quase um litro de Red Bull . Eu sou um insone, minha mente trabalha no turno da noite. Confessei falsamente a ele na segunda semana. Foi tudo o que eu disse.

    Era um trecho de Pete Wentz, no livro Gray.

    Tudo o que eu queria era que ele me indicasse para um psiquiatra, e que eles me dessem remédios para dormir. Quando você tem insônia, você nunca está realmente acordado, e você nunca está realmente dormindo.

    Eu estou tão exausto e ainda assim parece que eu nunca vou dormir de n ovo.

    Chuck Palahniuk e Maya Banks.

    Mas eu não tinha problemas para dormir.

    Meu problema era que eu acordava.

    14

    Terminava a sessão e eu descia para urinar depois de tanto Red Bull. Lavava meu rosto na pia, olhando profundamente para minha imagem no espelho redondo, e fazia de novo uma descrição mental do que eu via, para saber se aquilo tinha mudado de uma semana para a outra. Eu tinha a pele com um pálido amarelado, olheiras tumulares e a incipiência de uma barba começando a pontilhar no meu rosto.

    Toda vez que eu ia lá eu averiguava se o valor que eu atribuía à imagem mudara ao menos um pouquinho, mas em geral era como se eu avistasse um verme comendo carne.

    Via um rapaz magro, mas não magro demais. Alto, mas não alto demais. Bonito, mas não bonito demais. Cabelos escuros, mas não escuros demais. Estudante, mas não estudante demais. Homem, mas não homem demais. Vivo, mas não vivo demais. Apenas meus olhos que são azuis demais, e, de tanto, sequer são azuis.

    Indicaram-me os melhores psicólogos da cidade, e e u anotei o número e o endereço para não correr nunca o risco de entrar nos consultórios deles.

    Eu colecionava aqueles bem medianos, de razoáveis a ruins. Aqueles bem baratos, aqueles com alguma reclamação nas costas, com algumas desistências frustradas, com má fama nos corredores da minha faculdade.

    Psicólogos, mas não psicólogos demais.

    Não quero lidar com minhas poucas e raras angústias, porque elas são aquilo que dança no salão de festas amplo e sempre vazio que é meu peito indiferente. Quero que elas s e abracem em trajes de gala com cheiro de naftalina, que rodopiem ao som da música como se tivessem tomado cianureto e o prédio estivesse em chamas. Quero que a música clássica se eleve quando seus lábios estão ficando roxos e os pulmões são preenchidos por dióxido de carbono. Quero que seus joelhos falhem no vibrar de uma dó menor e seus dedos retesem em suas mãos juntas e frias no último momento da orquestra, antes de as labaredas carbonizarem o sistema de som.

    Importar-se é um elemento da humanidade. Você nunca pode apenas aceitar que existe uma criatura disforme dentro de você, sob o risco de se descaracterizar como ser humano. E

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    culminar por mergulhar na indiferença até isso sobrepujar seu instinto de sobrevivência.

    Eu ministrava a minha reclamação de insônia em cautelosas doses homeopáticas.

    Não durmo, nem espero dormir. Nem na morte espero dormir., eu um dia apelei para Álvaro de Campos .

    Eu conhecia esse sentimento, a solidão das duas horas da manhã que eu praticamente inventei. Sarah Dessen, This Lullaby, duas sessões depois.

    Se você for inteligente o suficiente – não muito inteligente, só o suficiente – consegue se drogar com prescrição médica no Brasil. E eu estava sendo irônico, sabe. Poderia ser ainda mais fácil, mas eu só queria provar um pont o. Estava querendo provar que inteligente o suficiente sequer significava ser propriamente inteligente.

    E isso começou naquela quarta-feira de outubro.

    As pessoas chamam isso de primeiro dia do resto da sua vida. Aquele dia que desencadeou uma série infinita de coisas que lapidariam sua existência para sempre.

    O argumento do seu filme. O começo do seu livro. Arthur disse isso para mim, alguns meses depois do primeiro dia da minha vida .

    Ele disse eu vou ser aquele personagem que chega para mudar sua vida e fazer dela uma história digna de ser escrita. E você vai escrevê- la.

    Eu revirei os olhos e pensei quanto tempo levaria para simplesmente o período de expiação dos meus pecados acabar. Nunca pareci tão próximo de cometer suicídio do que quando eu fui condenado a esfregar os corredores da Clínica de Santa Teresa. Minha mãe quis que eu aprendesse o valor da vida, mas eu só me abraçava com mais gosto à morte.

    Naquele dia Arthur disse Você vai contar isso para as pessoas e elas não vão acreditar. Ou isso vai ser tão íntimo e tão doentio que você não vai ter coragem de falar para ninguém, nem mesmo para um diário, nem mesmo para sua memória.

    Você vai partir meu coração? eu perguntei, com todo o escárnio que podia caber em uma voz, enquanto lavava a louça. Em milhares de pedaços. Ele sussurrou ao lado do meu ouvido, um hálito de maçã e cigarro de maconha.

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    No meio de outubro já era para estar quente, mas eu agradecia porque não estava. Tinha chovido muito durante o dia todo.

    Durante a aula, eu sentava todos os dias do lado da janela e em geral ficava com a cabeça apoiada na cortina, sentindo seu cheiro de plástico a cada inspiração.

    Eu tinha uma colega que adorava citar Nietzsche no meio da aula. Fabíola, uma loira tão sem sabor que eu sentia um gosto de pepino cada vez que ela abria a boca, como se ela tivesse uma aura bege em torno de sua repulsiva necessidade de autoafirmação. Toda vez que ela erguia a mão, eu queria dar um tapa no braço dela e falar para ela deixar de ser besta. No meio de suas quotações, eu desenhei no iPad um Nietzsche com um óculos escuros e uma camiseta escrito "I’m Nietzsche, bietzsche!", que eu vi na internet um dia desses.

    Sabe o que as pessoas querem enfiar no meio da psicologia? Patologização de problemas. Padronização de comportamentos. Pseudização. Fazer piadas sobre teorias freudianas e começão de mãe. Isso quando os alunos não vão para a faculdade de psicologia para entender a si mesmos, e não ao outro. É tão comum que chega a ser ridículo. Muitos realmente acham que querem ajudar as pessoas a resolver seus problemas, mas é muito mais para se sentirem bem consigo mesmos e agir condescendentemente como seu pai não teve a capacidade quando você era criança e coisa do tipo.

    A professora estava falando e eu estava com a mão fechada em punho apoiando na minha bochecha, a boca meio frouxa. Estava escrito gozo fálico no quadro, com um círculo de giz azul em torno. Toda hora ela puxava alguma flecha para aquelas duas palavras.

    Eu estava pensando na atuação de Jack Nicholson como Curin ga.

    Gozar como sentido do excesso. Pulsão de morte. Pecado. A feminilização do mundo. Palavras que eu pesquei entre o mergulhar profundo e afogado em meus devaneios opacos.

    Durante as aulas de psicologia, em termos gerais, falando como uma pessoa que não presta atenção na aula, você fala sobre sexo muito frequentemente. Ainda assim, ninguém

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    conseguia me explicar por que eu não sentia atração sexual nenhuma por ninguém nesse mundo.

    Estima-se que 5% dos jovens brasileiros entre 18 e 24 anos não vejam graça no sexo.

    Pesquisa velha do Datafolha. Confie o quanto quiser. Você é que decide o que vai achar a respeito.

    Eu me interessava pelo sexo tanto quanto me interesso por um documentário do Discovery Channel; de uma forma muito técnica. Uma coisa é a resposta fisiológica de prazer, outra é associar isso a uma pessoa, coisa que eu simplesmente não faço.

    Todas as vezes que eu trouxe o assunto à tona, eu me arrependi, e é um padrão que se seguia por tudo o que eu pensava. Eu sempre me arrependia de abrir a boca, porque ou desprezava ou não me importava com o que iria ouvir.

    Eu sempre negava com tanta veemência ter vivido uma experiência traumática que todo mundo acreditava que eu estava bloqueando algo ou em processo de negação. Não era. Eu negava com força porque já estava irritado de tentar explicar que eu nunca fui estuprado ou molestado.

    A minha experiência que chega mais próxima do binômio sexo-abuso foi quando eu tinha seis anos, no quintal da minha tia. Meus dois primos gêmeos, na época com uns doze, me empurraram na grama, abaixaram minha calça e tiraram- na junto com minha cueca.

    Só isso. Nem encostaram em mim. Saíram correndo, jogaram minha calça e minha cueca em um galho do abacateiro ao lado da entrada do pátio e fugiram. Fui chorando para dentro de casa chamar minha tia, botei outra cueca e ela me fez uma mamadeira. Assisti desenho na sala enquanto eles levavam bronca e apanhavam de cinta.

    Todos achavam que me traumatizei profundamente demais com isso, e sempre me achavam traumatizável. Acham que desenvolvi distúrbio de hipoatividade sexual.

    Distúrbio de cu é rola.

    Como eu disse, durante as aulas de psicologia, você fala sobre sexo a todo o momento em que não está falando sobre morte ou sobre seus pais. Pode ser sobre morte dos seus pais, sexo com seus pais, morte do sexo, morte do sexo dos seus pais, seus pais na morte do sexo, esse tipo de coisa. Estatística,

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    análise comportamental, anatomia neurológica e matérias com nomes frasais mais longos do que nomes de música nos primeiros álbuns do Panic! at the Disco .

    Quando conseguimos vencer o gozo, – que é o excesso - conseguimos libertar o nosso eu., a professora baliu lá na frente do seu quadro verde.

    E se você for excessivamente sem excessos, como eu? Cheguei à conclusão de que eu só não odiava tudo aquilo porque odiar demanda uma paixão forte demais, que eu era incapaz de sentir.

    Eu precisava que me despertassem o interesse por algo, por qualquer coisa, mas eu achava que não existia nada combustível em meu interior para algo ou alguém comburente atear fogo e me consumir.

    Eu estava errado.

    II

    Eu saí da aula como se não tivesse entrado, o déjà- vu semanal. Ao menos aquele era o dia em que eu era obrigado a inventar algo para fazer, pois era uma das minhas quartas- feiras insones. Eu já sabia que ia ter que dar um jeito de ficar acordado.

    Parece bem imbecil. Eu sei que é, nunca quis ficar contando isso para o mundo. Se para mim fazia sentido, não precisava fazer para mais ninguém.

    Eu podia simplesmente dormir. Eu não tinha insônia, não trabalhava nem nada, eu podia, sei lá, chegar em casa e dormir o dia todo.

    Mas é meio óbvio que eu não queria exatamente dormir. Assim como eu decidia que não queria comer mesmo quando sentia fome, ou passava o dia inteiro enfiando Nescau Ball com o valor nutricional de um isopor flavorizado garganta abaixo. Assim como eu dirigia bem acima do limite de velocidade dentro da cidade. Assim como toda vez que eu tinha qualquer coisa alcoólica em mãos eu bebia até passar mal. Assim como com cada dor de cabeça eu tomava uns dez

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    analgésicos. Assim como eu acendia um cigarro mesmo com todas as merdas dos avisos no verso.

    Nunca fui um fumante. Passava semanas sem nem lembrar de nicotina. Em geral comprava para colecionar as fotos feias que vem nos maços. O projeto que eu me propus para o dia 20 de julho daquele ano tinha sido organizar um álbum com minha coleção de avisos do Ministério da Saúde, e acabei gostando. Minha favorita é a do rato e da barata mortos lado a lado. Acho poético.

    Eu nem mesmo admitia, mas eu sabia que esperava um acidente passivo, resultado de um comportamento lentamente e cada vez mais gravemente autodestrutivo me levasse àquilo que eu ainda tinha medo de executar de uma vez por todas. Meu receio era só acordar no hospital depois de uma lavagem estomacal e ter que encarar o olhar de frustração e decepção dela e da minha irmã, estampado com o clássico Onde foi que eu errei? .

    Vocês nunca erraram.

    Vocês não podem se culpar porque o sol decidiu se pôr. Vou contar um spoiler do enredo: Isso não aconteceu. Quer dizer, a parte da overdose não aconteceu. Passei perto, mas não consegui. Mesmo que eu realmente quisesse pouco a pouco ir substituindo meus planos diários por um plano maior e final. Ainda assim, a parte do olhar de desalento delas na minha direção de fato aco nteceu.

    Eu ainda não

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