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Coexistência como identidade: A neutralidade do Líbano
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Coexistência como identidade: A neutralidade do Líbano
E-book414 páginas5 horas

Coexistência como identidade: A neutralidade do Líbano

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Sobre este e-book

Coexistência como identidade: a neutralidade do Líbano

O livro é organizado pelos professores Miguel Mahfoud e André Miatello, contendo 16 artigos de especialistas do Líbano, Brasil, Estados Unidos, Egito, Itália e Argentina. Seu objetivo é contribuir com o atual debate internacional sobre a identidade do Líbano como coexistência multicultural e multireligiosa e seu decorrente estado de neutralidade reconhecido pela comunidade local e internacional como fatores determinantes para um enfrentamento da crise econômica e política em curso, favorecendo o protagonismo do País dos Cedros na constante e tensa construção da paz regional e mundial.

Os autores são oriundos de diversos grupos religiosos constitutivos da complexa sociedade libanesa (cristãos, muçulmanos, drusos etc) e advindos de diversos campos do saber: História, Direito, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia, Diplomacia, Educação. Os artigos do livro abordam pontos-chave da identidade e protagonismo sócio-político libanês nas relações internacionais, inclusive a importância do reconhecimento da neutralidade pela comunidade internacional como fator de desenvolvimento interno e de paz internacional.



Autores e suas nacionalidades:



. Argentina: Sergio Daniel Jalil

. Brasil: Rubens Ricupero (entrevistado por Miguel Mahfoud), Danny . Zahreddine, Youssef Alvarenga Cherem, Igor Pinho dos Santos, Guilherme Di Lorenzo Pires, André Miatello

. Egito: Mateus Domingues da Silva

. Egito/Itália: Wael Farouq

. Estados Unidos: Hussein Kalout

. Líbano: Bechara Raï, Elie Elias, Marie Fayad, Lina Abou Naoum,

Louis Wehbé

. Itália: Michele Zanzucchi
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de jan. de 2024
ISBN9786550793593
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    Coexistência como identidade - Miguel Mahfoud

    Parte I:

    Neutralidade do Líbano em debate

    Capítulo I

    Memorando

    Líbano e neutralidade ativa

    Béchara Boutros Card. Raï

    Patriarcado de Antioquia e

    de todo o Oriente

    Líbano

    Em sermão proferido em 5 de julho de 2020, emiti um apelo às Nações Unidas para reafirmar a independência do Líbano, implementar todas as resoluções relevantes da ONU e reconhecer a neutralidade do país. A neutralidade do Líbano é de fato a garantia de unidade do país e de seu papel histórico, especialmente neste período caracterizado por transformações geopolíticas e constitucionais. A força e estabilidade do Líbano serão salvaguardadas pela sua neutralidade. É um Líbano neutro que seria capaz de contribuir para a estabilidade e prosperidade da região, defender os direitos dos povos árabes e forjar relações justas e equitativas entre o Oriente Médio e a Europa, devido à posição privilegiada do país na costa do Mediterrâneo.

    Nosso apelo pela neutralidade foi recebido com ampla aprovação de diversos grupos confessionais, partidos políticos e por intelectuais do país que têm expressado opiniões fundamentadas em vários meios de comunicação e publicações na mídia; no entanto, alguns apresentaram reservas e questionaram o conceito de neutralidade. Essa é a razão pela qual julguei necessária a publicação deste Memorando sobre o Líbano e neutralidade ativa. Abordo o assunto em cinco pontos: a justificativa da proposta; o conceito de neutralidade; sua importância como plataforma necessária para a independência e estabilidade do Líbano; os interesses do Líbano e sua economia de neutralidade; e uma conclusão.

    1. Justificativa da proposta

    A neutralidade do Líbano, como forma constitucional de governo, pode não ter sido considerada pelos fundadores do Estado do Grande Líbano. No entanto, certamente deu provas de ser a força motriz por trás das relações exteriores e política de defesa adotadas por esta pequena e emergente nação para fazer valer seu direito à autodeterminação e para preservar sua independência, unidade e identidade. Durante a elaboração da Constituição libanesa, Henri De Jouvenel, alto-comissário francês, pediu que seu governo lhe enviasse uma cópia da Constituição suíça, acreditando que poderia ser usada como um modelo para a Constituição da sociedade libanesa.

    Este quadro político-constitucional foi confirmado em 1943 quando o governo, que garantiu a independência, declarou que o Líbano estava comprometido com a Neutralidade entre Oriente e Ocidente. Este conceito de neutralidade foi consagrado em 1945, quando foi redigida a Carta da Liga dos Países Árabes estipulando que as decisões da Liga não seriam vinculantes, mesmo aquelas tomadas por unanimidade. O trabalho preparatório, bem como as muitas intervenções que precedem o texto final da Carta da Liga, insistia no fato de que "o Líbano é um Estado de apoio, não de confronto". O objetivo era fazer do Líbano um catalisador da solidariedade entre as nações árabes, não causa de divisões e conflitos interárabes. Deve-se notar que o Líbano sempre se posicionou contra a deserção em relação à solidariedade árabe por uma questão de estratégias que serviriam aos regimes estrangeiros às custas de interesses comuns árabes.

    A ideia de neutralidade tem sido tema recorrente nos pronunciamentos dos Presidentes da República e nas declarações governamentais (Gabinete do Ministro), bem como nos documentos advindos das conferências de diálogo, incluindo a Declaração de Baabda, de 11 de junho de 2012, aprovada por unanimidade, que incluiu a expressão para garantir a neutralidade (distanciamento) do Líbano. Esta declaração foi comunicada às Nações Unidas e foi distribuída como documento oficial do Conselho de Segurança e do Conselho Geral da Assembleia (cf. ambos os documentos: A / 66/849 e S / 2012/477). Da mesma forma, o Comunicado do Conselho de Segurança, datado de 19/03/2015, exortou todos os partidos libaneses a cumprir a letra e o espírito daquela Declaração.

    Devido a essa política de sabedoria e prudência, o Líbano conseguiu preservar a unidade de seu território, apesar dos inúmeros planos e apelos à unidade árabe e das várias guerras árabe-israelenses. Na verdade, todos os países vizinhos de Israel (Síria, Jordânia e Egito) perderam parte de seu território, exceto o Estado do Líbano. Além disso, o relativo distanciamento do Líbano quanto a conflitos regionais – entre 1943 e 1975 – gerou prosperidade, riqueza, crescimento, aumento da renda individual, bem como declínio do desemprego, rendendo ao Líbano o título de Suíça do Oriente.

    Este período foi interrompido em 1958, quando o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser tentou incluir o Líbano no projeto de curta duração da Unidade Sírio-Egípcia. Os libaneses, no entanto, superaram rapidamente esta crise, reconciliaram-se e continuaram no caminho da construção da nação. O equilíbrio de poder no Líbano foi abalado com a ascenção da Organização de Libertação da Palestina como uma potência militar em sua luta armada contra Israel. Este fator desestabilizador dividiu os libaneses em dois campos: os que apoiaram e os que se opuseram à OLP. Essa situação levou à eclosão da Guerra Civil em 1975.

    Pressionado por divisões internas e interferência externa, o governo libanês fez concessões cruciais e assinou o Acordo do Cairo em 1969, comprometendo sua soberania. O Acordo do Cairo autorizou grupos palestinos a realizar operações militares contra Israel a partir do território libanês, especialmente na região Sul do país.

    Esses eventos fizeram com que o governo libanês e vários grupos ideológicos e políticos fossem atraídos por conflitos regionais, alinhados em termos políticos, religiosos, ideológicos e militares. Como consequência, Israel ocupou o Líbano (1978-2000); organizações palestinas controlaram a maioria do território meridional, chegando até o centro de Beirute (1969-2005); o exército sírio entrou no Líbano (1976-2005); e continuando a mesma tendência de interferência externa e dominação, o Hezbollah foi estabelecido e moldado religiosa, ideológica e militarmente para ser o instrumento de difusão das ideias de revolução da República Islâmica do Irã (1981-...).

    Todos esses eventos ocorreram devido ao desvio do país de sua política de neutralidade, tacitamente reconhecido, mas sem base no texto constitucional. Assim, o Estado foi gradativamente perdendo sua autoridade central; o país, sua soberania territorial; a nação, seu papel político; o pacto nacional, seu equilíbrio; a sociedade, sua identidade cultural específica. Este desequilíbrio produziu também conflitos internos secundários, mas tão violentos quanto os conflitos principais. E eis que o Líbano hoje oscila entre unidade e divisão.

    A experiência de cem anos de vida do Estado do Grande Líbano (1920-2020) mostrou que é difícil ser o país-mensagem sem adotar a política de neutralidade. Os alinhamentos com os conflitos do Oriente Médio e seus povos afetaram o princípio da parceria entre cristãos e muçulmanos, em seus aspectos espirituais, nacionais e humanos. O Líbano, assim, entrou em um estado de desintegração, e as várias tentativas de soluções e acordos falharam. É por isso que nada salvaria sua unidade, sua independência e sua estabilidade, exceto a neutralidade, sabendo que esses diversos e profundamente arraigados conflitos ameaçam não apenas o Estado, mas a própria existência da nação.

    A declaração da neutralidade do Líbano é um ato fundador, como a declaração do Estado do Grande Líbano em 1920, e a declaração de independência em 1943. A criação do Grande Líbano como um Estado independente impediu o libanês de ser absorvido por várias tentativas de unificação árabe-islâmica e deu-lhe um sistema democrático de governo que lhe permitiu coexistir pacificamente. A independência do Líbano legitimou sua existência como nação soberana com uma autoridade central para proteger seus cidadãos de ameaças externas. A neutralidade política, que ainda não foi alcançada, impede a divisão do Líbano, o protege de guerras e mantém sua especificidade. Neutralidade é, portanto, o pacto de estabilidade, após os dois pactos de existência e soberania.

    2. O conceito de neutralidade ativa

    O Líbano, com sua neutralidade ativa, desfruta de três dimensões interconectadas, complementares e indivisíveis.

    A primeira dimensão é a recusa definitiva do Líbano em aderir a coalizões, eixos, conflitos políticos e guerras regionais e internacionais; bem como a abstenção de qualquer Estado, da região ou de outro lugar, de interferir em seus assuntos, ou de dominá-lo (invadindo-o, ocupando-o ou usando seu território para fins militares), de acordo com a segunda Convenção de Haia (18 de outubro de 1907), bem como a outras convenções regionais e internacionais que se seguiram.

    É prerrogativa do Líbano permanecer um membro ativo da Liga Árabe e das Nações Unidas. A filiação do Líbano a ambas as organizações contribui não apenas para a perspectiva de solidariedade entre as nações, mas também fortalece o compromisso internacional para a paz e o progresso humano.

    A segunda dimensão diz respeito à solidariedade do Líbano com as causas de direitos humanos e liberdade, especialmente às árabes que obtiveram apoio unânime dos países-membros da Liga Árabe e das Nações Unidas. Portanto, o Líbano continuará a defender os direitos legítimos do povo palestino e a trabalhar por uma solução justa e equitativa para os refugiados palestinos, especialmente aqueles que vivem em seu território. O Líbano neutro poderia, portanto, desempenhar seu papel e assumir sua missão em contexto árabe – aquela que a Exortação Apostólica do São Papa João Paulo II, intitulada Uma Nova Esperança para o Líbano, apresenta em detalhes (cf. parágrafos 92-93) – inclusive tomar iniciativas para a reconciliação e a reaproximação entre vários países árabes e potências regionais, e resolver conflitos. O pluralismo religioso e cultural, que qualifica a verdadeira natureza da sociedade libanesa, torna o Líbano uma terra de encontro e diálogo entre religiões, culturas e civilizações de acordo com a decisão das Nações Unidas, de setembro de 2019, de estabelecer no Líbano a Academia para Encontros e Diálogos Humanos. Dada a ideal localização do Líbano, às margens do Mar Mediterrâneo, ele também é uma ponte ligando as culturas, economias e civilizações do Oriente e do Ocidente.

    A terceira dimensão consiste no fortalecimento do Estado libanês por meio de suas várias instituições: militares, judiciais, legislativas e executivas. Um Estado libanês forte promoverá a unidade, a paz e a justiça para todos os seus cidadãos e garantirá oportunidades de criatividade, empreendedorismo e prosperidade social e econômica. Além disso, um Estado forte dotado dessas qualidades certamente será capaz de salvaguardar a paz interna e defender a nação de ameaças externas. O Líbano forte e neutro também precisa de resoluções rápidas e justas para as questões de demarcação da fronteira com Israel, segundo o Acordo de Armistício (1949), bem como a aceitação da fronteira do Líbano, conforme reconhecida internacionalmente, pelo Estado da Síria.

    3. Neutralidade como fonte de independência

    e estabilidade para o Líbano

    A neutralidade garante a saída do Líbano de conflitos regionais e de conflitos e guerras internacionais. Além disso, a neutralidade fornecerá ao Líbano os meios políticos e militares necessários para evitar a recorrência de lutas e turbulências (1958, 1969, 1973, 1975) que abalaram a nação desde a declaração do Estado do Grande Líbano. Retomando as causas históricas dos conflitos, podemos identificar quatro categorias principais:

    A. Conflitos internos entre grupos religiosos e comunidades confessionais que têm diferentes lealdades justificadas com base em tendências nacionalistas e ideológicas que visam mudar o regime de governo do país, ou servir a interesses de outros países.

    B. Conflitos geopolíticos em países vizinhos que repercutem no Líbano.

    C. A falta de clareza política na relação da Síria com o Líbano a respeito de seu território, sua autoridade ou fronteiras internacionais, o que muitas vezes causou conflitos entre os dois países.

    D. As implicações no Líbano de políticas militares, econômicas, sociais e de fronteira da criação do Estado de Israel e a chegada de milhares de refugiados palestinos deslocados para residir em seu território.

    É fato histórico que esses conflitos e suas causas receberam soluções superficiais e temporárias, até o momento em que a Constituição foi alterada após o Acordo de Taef de 1989, com a transferência do poder executivo da Presidência da República ao Conselho de Ministros, e a adoção da paridade no parlamento. Todos esses acordos políticos e constitucionais conseguiram impedir a guerra, mas não o conflito, que aumentava após cada acordo; uma situação que gerou as sementes de conflitos futuros. O Líbano tornou-se assim um país onde grupos religiosos e comunitários lutam por mais poder. Essa tomada de poder por esses vários grupos religiosos e políticos fez com que se tornasse necessário interferir nos assuntos internos do Líbano, para a própria sobrevivência desses grupos. Como consequência, o Líbano se tornou um campo de guerras por procuração.

    Se essas causas não forem adequadamente tratadas, os conflitos e as guerras continuarão e, consequentemente, pode-se chegar a um desses três cenários: qualquer comunidade confessional dominará as outras pela força através da guerra armada, exercendo hegemonia sobre o Estado e ameaçando os vizinhos e o equilíbrio regional; o Líbano continuará a ser um Estado falido, exposto como sem peso ou estabilidade; ou outros poderão decidir o destino do Líbano redefinindo sua integridade territorial e soberania nacional no contexto das mudanças radicais que continuam a moldar o presente e o futuro de toda a região. Por isso, nosso apelo à Neutralidade é para evitar algum ou todos esses cenários e para fortalecer e consolidar a soberania e a estabilidade.

    4. Os benefícios da neutralidade para o Líbano

    e sua economia

    a) O Líbano se beneficiará do status de neutralidade em dois pontos principais:

    1. A neutralidade salvaguarda a unidade do Líbano, em termos de sua integridade territorial e a preservação de sua população, e reaviva a parceria islâmico-cristã em muitos casos enfraquecida. A neutralidade libanesa garante que suas dezoito comunidades confessionais possam recuperar sua segurança e estabilidade, bem como a confiança mútua apartada de conflitos. Apenas com base nesta plataforma política de neutralidade e convivência pacífica entre vários grupos sociais e religiosos o Líbano será capaz de contribuir positivamente para a estabilidade da região e a paz no mundo.

    2. A neutralidade torna todos os componentes da sociedade libanesa mais flexíveis e positivos, porque exclui alinhamentos e abordagens tendenciosos na aplicação de prerrogativas e autoridade entre os responsáveis de quaisquer das afiliações políticas ou religiosas.

    b) Muitos setores da economia se beneficiarão da neutralidade do Líbano:

    A neutralidade fortalecerá a economia devido à estabilidade, segurança e engenhosidade do povo libanês, que tende a prosperar em tempos de paz e oportunidades. Citamos aqui sete setores específicos do Líbano que podem fortalecer sua economia:

    1. A longa história do Líbano como um centro bancário e financeiro no Oriente Médio e seus especialistas de renome internacional certamente colocam o Líbano em vantagem sobre outros países da região. Simplesmente porque a estabilidade e a segurança geram confiança.

    2. O setor de saúde , o alto padrão dos hospitais e de sua tecnologia: o Líbano está mais perto dos países do Oriente Médio do que a Europa e os Estados Unidos, a língua oficial do Líbano é o árabe, libaneses instruídos são fluentes em várias línguas ocidentais e os negócios de hospitalidade no Líbano tornam o país adequado para tornar-se um grande centro médico não apenas para o Oriente Médio, mas também para o mundo.

    3. O Líbano é um destino turístico para o Oriente Médio e para o mundo. Quando a estabilidade e a segurança estão no lugar, como a história o demonstra, o Líbano pode recuperar seu status de grande destino para turistas de todo o mundo. Hotéis e resorts de primeira classe, restaurantes e hotelaria tornam o Líbano um atraente destino turístico.

    4. Ao longo de sua história, o Líbano tem sido um centro educacional importante para todo o Oriente Médio devido aos seus altos padrões de aprendizagem, pesquisa e publicações, o que levou muitas famílias árabes a preferir o Líbano à Europa ou Estados Unidos. Através disso, o Líbano contribui para a promoção do espírito de concórdia e paz.

    5. A estabilidade e segurança do Líbano atraem expatriados para voltarem a investir em vários projetos. Eles contribuirão para a criação de empregos, crescimento e para a qualidade de vida que o Líbano vivenciou entre os anos cinquenta e início dos anos setenta do século passado.

    6. O Líbano se beneficia da neutralidade graças à sua adesão ao Mundo árabe , sua localização às margens do Mediterrâneo , seu papel histórico e na civilização.

    7. Devido à sua história única, características culturais e políticas, o Líbano se tornará o eixo da União do Mediterrâneo , o local onde os interesses de todas as partes se cruzam. A União Europeia e a União do Mediterrâneo são dois projetos vitais para Líbano. A ideia da União do Mediterrâneo está no cerne de uma visão de futuro; e esta União tem capacidade de criar um novo sistema de valores, bem como uma nova política, economia, cultura e marinha nessa região estratégica do mundo. Isso tornaria a Europa mais ligada ao mundo árabe e mais atenta a seus interesses e, portanto, menos ágil na defesa de Israel.

    5. O que nós precisamos

    De acordo com o que foi delineado neste Memorando, apelamos a ambas as comunidades árabes e internacionais para que compreendam as razões históricas – em termos de segurança, política, economia e cultura – que levam a maioria dos libaneses a adotar a Neutralidade Ativa; e para que a Organização das Nações Unidas se decida pelo status de neutralidade do Líbano em tempo hábil. Consideramos a neutralidade em três dimensões:

    Primeiro, o Líbano buscou a neutralidade desde sua fundação até o Acordo do Cairo, assinado em 1969, permitindo que refugiados palestinos adquirissem armas pesadas e lutassem contra Israel desde o território libanês, o que foi seguido pelo surgimento de grupos libaneses armados e grupos não libaneses fora do controle do Estado.

    Em segundo lugar, o Líbano, graças a seu sistema político democrático e liberal de governança, e seu específico pluralismo religioso e cultural, organizado dentro do quadro da Constituição e do Pacto Nacional, e graças à sua localização às margens do Mediterrâneo, entre o Leste e a Europa, desempenha o papel de promoção da paz e estabilidade na região. Devido à sua política de mediação, reaproximação e reconciliação entre os países árabes, e seu leal compromisso com os direitos humanos, continua a fornecer um fórum indispensável para o diálogo entre religiões, culturas e civilizações.

    Em terceiro lugar, o Líbano, baseado no pluralismo e no equilíbrio entre seus diversos grupos religiosos e culturais, precisa, para sobreviver, que a Organização das Nações Unidas e os países envolvidos encontrem uma solução para meio milhão de palestinos refugiados e quase um milhão e meio de deslocados sírios presentes em seu território.

    Dimane, 7 de agosto de 2020.

    Béchara Boutros Card. RAÏ

    Patriarca de Antioquia e de todo o Oriente

    Capítulo 2

    Líbano fiel a si próprio: realista neutralidade pela paz

    Rubens Ricupero

    Universidade de São Paulo

    entrevistado por

    Miguel Mahfoud

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Brasil

    Ocupando-se com a formulação da Cátedra José Bonifácio da Universidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que responde às solicitações de comentários sobre os desafios sociopolíticos e econômicos da nova ordem mundial, Prof. Rubens Ricupero faz questão de encontrar um meio de participar do debate sobre a neutralidade do Líbano.

    Sua incomum experiência torna-o um interlocutor particularmente significativo para o debate em questão: Subsecretário-Geral da Organização das Nações Unidas e Secretário-Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento por nove anos; exitosa carreira de diplomata brasileiro junto aos principais parceiros internacionais do Brasil; significativamente hábil Ministro de Estado da Fazenda e do Meio Ambiente. Professor da área de Relações Internacionais no Brasil e no exterior, ele aponta com interesse vivo pontos-chave para uma atuação – da sociedade civil e da classe política – que seja realista, clara e paciente em favor do Líbano em seus desafios contemporâneos.

    Prof. Rubens Ricupero concede-nos entrevista à distância, desde sua residência em São Paulo, em junho de 2022.

    * * *

    O Líbano vem travando intenso debate sobre a sua condição de neutralidade ativa que tenderia a favorecer um pacto de estabilidade e daria condições de o país se reestruturar economicamente e chegar a exercer seu papel de protagonista no contexto regional e internacional, a partir da experiência histórica de coexistência religiosa que seria mesmo fator de identidade. O Patriarca Maronita Cardeal Raï, um dos significativos protagonistas daquele debate, chega a reivindicar apoio da comunidade internacional, inclusive que a Organização das Nações Unidas decida pelo reconhecimento do status de neutralidade.

    O senhor tem vasta experiência diplomática e é profundo conhecedor das dinâmicas culturais, econômicas e de relações internacionais, tendo inclusive conhecimento direto da realidade sociopolítica do Líbano: O senhor poderia nos descrever sua experiência com aquela comunidade multicultural, com aquele desafio da coexistência como identidade do país? Que experiência o senhor teve desse desafio de construir uma sociedade tão múltipla?

    Antes de mais nada, eu agradeço o convite muito honroso para falar sobre essa proposta. De fato, como o senhor teve ocasião de lembrar, eu passei muitos anos fora do Itamaraty, trabalhando na Organização da Nações Unidas. Aliás, os nove últimos anos da minha vida ativa estiveram a serviço da ONU. De 1995 a 2004, fui Secretário-Geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), que tem sede em Genebra, e nessa qualidade acumulei também a função de Subsecretário-Geral da Organização das Nações Unidas. Durante esse período estive várias vezes tanto no Líbano como em outros países do Oriente Médio.

    No caso do Líbano, visitei o país a convite oficial do governo: meu anfitrião foi o então Ministro do Comércio e da Indústria, pois a entidade que eu dirigia se ocupava primordialmente do comércio. Nas ocasiões em que visitei o Líbano, estive não só em Beirute, mas também no resto do país: fui ao Vale do Becaa, fui ao Sul, estive bem perto da região que é até hoje muito conturbada.

    E em certa ocasião, estive perto de Qana al Jalil, a cidade onde – segundo alguns atribuem – aconteceu o primeiro milagre de Jesus, o milagre da transformação da água em vinho. Nós estávamos no Sul do Líbano e de repente ouvimos um barulho muito grande. Minha mulher inclusive comentou: Que curioso, parece uma trovoada e, no entanto, não há nuvens no céu. E a pessoa que nos guiava disse: Isso é artilharia, são os canhões israelenses que estão aqui muito perto. Perto havia também um centro comunitário, destruído um pouco antes por uma bomba, em um dos bombardeios com muitas vítimas.

    Eu pude conhecer de perto a realidade do país nas diversas zonas. E nas ocasiões em que eu estive no Líbano, sobretudo numa das ocasiões principais, fui recebido por todas as autoridades: presidente do país, presidente da Câmara, diversos presidentes de poderes representando distintas comunidades. Eu pude me entreter tanto com cristãos maronitas, quanto cristãos de outras confissões, com representantes também muçulmanos xiitas e sunitas, com a comunidade drusa e outras. Tive uma experiência bastante interessante dessa realidade que o senhor descrevia.

    O Líbano, embora seja um território pequeno, oferece uma espécie de pequena miniatura do mundo, um microcosmo de diversidade, porque ele abriga uma diversidade gigantesca de culturas, de povos, de diversas confissões religiosas. Nesse sentido, é curioso: se comparado com o Líbano, o Brasil é um país de extensão muito maior, continental, mas nem de longe tem uma diversidade tão grande. O Líbano concentra numa pequena base territorial essas comunidades que normalmente vivem em bastante harmonia e paz entre elas. O que de vez em quando vem perturbar essa harmonia são, quase sempre, as interferências de fora, os conflitos na região que acabam tendo uma repercussão porque recrutam lealdade entre as diversas comunidades e acabam jogando uns contra outros.

    É nesse sentido que eu apreciei muito as manifestações do Patriarca Maronita Béchara Boutros Cardeal Raï porque, em várias ocasiões e não uma vez só, na presença das mais altas autoridades, ele tem repetido essa proposta, aliás, bem elaborada. O que ele propõe é que o Líbano seja fiel a si próprio: que o Líbano nunca esqueça que foi criado como uma espécie de oásis de paz e coexistência, um ponto de encontro de culturas, um lugar para o diálogo das civilizações; que essa vocação do Líbano constitua a essência da definição da identidade nacional. Como ele diz muito bem, o Líbano não foi criado para ser inimigo dos povos vizinhos e irmãos, ele foi criado para ser uma ponte, e – como já disse certa vez o Papa João Paulo II – o Líbano encarnaria uma mensagem de paz, o Líbano seria em si mesmo uma mensagem de paz e, de fato, em alguns momentos ele foi isso. O que o Cardeal deseja é um esforço para que o Líbano seja fiel a esse propósito fundador do país, definindo três qualidades:

    Primeira, a ideia de que o Líbano é um país definitivo, isto é, não é uma transição para alguma outra coisa, é um país definitivo que implica a ideia de que o pacto de viver juntos com as diversas comunidades deve ser também definitivo, um pacto de uma vez para sempre.

    A segunda, que me parece muito adequada, é que a vocação de uma parte do Líbano para o cristianismo também deve ser respeitada e valorizada como algo de definitivo: o Líbano é – e o foi até na sua fundação – um abrigo para essa diversidade de confissões religiosas. Nesse sentido, o Líbano pode até se dizer pioneiro, tendo sido precursor em uma época em que havia muita intolerância em relação às diversidades e confissões religiosas.

    E, finalmente, o terceiro ponto: para que isso seja possível, é preciso que todos os libaneses tenham uma só lealdade, uma lealdade acima de tudo ao próprio Líbano, e não lealdades divididas em relação a países estrangeiros que se digladiam na região e que, portanto, levam a conflitos.

    Essa ideia, devo dizer, é de uma limpidez, de uma clareza, bom senso, e sabedoria que se impõem pela própria força desse pensamento. É impossível ouvir ou ler essas propostas sem se dar conta de

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