Fronteiras em movimento
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Fronteiras em movimento - Fábio Régio Bento
Fábio Régio Bento (org.)
Anna Carletti, Ana Monteiro Costa, Daniela Vanila Nakalski Benetti, Flávio Augusto Lira Nascimento, Geder Parzianello, Gleicy Denise Vasques Moreira Santos, Guilherme FW Radomsky, Kamilla Raquel Rizzi, Nícia Pereira de Araujo, Rafael Balardin, Ricardo Lopes Kotz, Renatho Costa, Rodrigo Alexandre Benetti e Victor Hugo Veppo Burgardt
Fronteiras em Movimento
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Coordenação Editorial: Kátia Ayache
Revisão: Elisa Santoro
Capa: Matheus de Alexandro
Diagramação: André Fonseca
Edição em Versão Impressa: 2012
Edição em Versão Digital: 2013
.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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Profa. Dra. Benedita Cássia Sant'Anna
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Prof. Dr. Fábio Régio Bento
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Profa. Dra. Thelma Lessa
Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt
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Sumário
Introdução
Capítulo I - Fronteiras, significado e valor - A partir do estudo da experiência das cidades-gêmeas de Rivera e Santana do Livramento.
Fábio Régio Bento
1. Fronteiras – Significado e valor
1.1. Um mundo sem fronteiras
?
1.2. Fronteira filtro
2. Características da experiência da integração de fato entre as cidades-gêmeas de Rivera e Santana do Livramento
2.1. Uma fronteira peculiar – Rivera e Santana do Livramento
2.2. Integração com diferenciação
2.3. Níveis qualitativos de integração
Referências
Capítulo II - Era uma vez na fronteira: o mito da zona fora da lei
?
Renatho Costa
1. Bem-vindo à fronteira
2. O que devo fazer, Xerife?
3. Um convidado incômodo
4. Vamos ao duelo
Referências
Capítulo III - Cidadania fronteiriça: das concepções modernas à cidadania constituída na fronteira entre Brasil e Uruguai
Daniela Vanila Nakalski Benetti e Nícia Pereira de Araujo
1. Introdução
2. Concepções da cidadania moderna
3. As diferentes cidadanias no Mercosul
4. Peculiaridades da cidadania na fronteira entre Brasil e Uruguai
5. Considerações finais
Referências
Capítulo IV - Políticas públicas de saúde na fronteira Brasil-Uruguai
Gleicy Denise Vasques e Rodrigo Alexandre Benetti
1. Introdução
2. O contexto histórico das políticas públicas em matéria de saúde na América do Sul
3. A geografia político-econômica do território de fronteira entre o Brasil e o Uruguai
4. A problemática das políticas públicas em matéria de saúde no território de fronteira
4.1 O Sistema Integrado de Saúde das fronteiras (SIS–Fronteiras) e um diagnóstico no âmbito da fronteira Brasil–Uruguai
5. A prestação de serviços de saúde no âmbito do acordo para permissão de residência, estudo e trabalho a nacionais fronteiriços, brasileiros e uruguaios
6. Considerações finais
Referências
Capítulo V - Identidade e integração na fronteira: um estudo sobre a comunidade árabe-palestina dos municípios de Santana do Livramento e Rivera
Fábio Régio Bento
1. Introdução
2. Breve análise histórica da imigração árabe no Brasil
3. Fatores de integração das comunidades árabes
4. A comunidade árabe em Santana do Livramento e Rivera: considerações sobre integração e identidade
5. Considerações finais
Referências
Capítulo VI - Jornais de fronteira e suas retóricas bilíngues no Rio Grande do Sul: mídia impressa a serviço do leitor
Geder Parzianello
1. Introdução
2. A Pesquisa
3. Os jornais de fronteira
4. Novos desdobramentos teóricos
Referências
Capítulo VII - A nação nas fronteiras longínquas: o sentimento nacional dos pampas ao lavrado
Victor Hugo Veppo Burgardt
1. Introdução
2. Nação: um conceito complexo
3. Imagens e símbolos: as falas da nação
4. Considerações finais
Referências
Capítulo VIII - Território de fronteira, desenvolvimento e ambiente: o projeto URB-AL Pampa
Ana Monteiro Costa e Guilherme FW Radomsky
1. Introdução
2. Desenvolvimento sustentável: a questão ambiental entre o global e o territorial
3. A fronteira e a questão territorial
4. O projeto URB-AL Pampa
5. Considerações finais
Referências
Capítulo IX - Limites e fronteiras na África: identidades, histórias e política internacional
Kamilla Raquel Rizzi
1. Introdução
2. Fronteiras em perspectiva
3. Das fronteiras da África pré-colonial aos limites impostos pelo Imperialismo
4. Estado-Nação na África: identidade e instabilidade em questão (1950-1980)
5. Considerações finais: uma nova África no século XXI?
Referências
Capítulo X - Fronteiras do heartland clássico e percepções de segurança: governança interestatal cooperativa na Ásia Central
Flávio Augusto Lira Nascimento
1. Introdução
2. Fronteiras geopolíticas: da formação europeia à cooptação centro-asiática
3. Conquista e legitimidade na formação da governança local no século XX
4. Organizações regionais de defesa e comunhão de interesses: a proteção transfronteiriça contra elementos internos e externos
5. Considerações finais
Referências
Capítulo XI - Fronteiras entre as religiões – Relações internacionais e religiões, e o caso específico do Movimento dos Focolares como movimento de fronteiras.
Fábio Régio Bento e Anna Carletti
1. Fronteiras entre as religiões
1.1. Localismo e internacionalismo
1.2. Religiões e Relações Internacionais
2. Um movimento de fronteiras – os Focolares como sujeito internacional
2.1. Introdução
2.2. Reciprocidade agápica como paradigma do MF
2.3. Estatística geral do MF
2.4. Cidadelas do amor mundi
2.5. Reconhecimentos públicos
2.6. Hipóteses sobre os motivos da difusão do MF
Referências
Introdução
Fronteiras em Movimento é a primeira publicação coletiva do grupo de pesquisa (CNPq) Integração e Conflitos em Regiões de Fronteira, formado há pouco mais de um ano por professores doutores, doutorandos e mestres da Universidade Federal do Pampa, que lecionam, sobretudo, no curso de Relações Internacionais, situado no campus de Santana do Livramento, fronteira urbana, binacional do Brasil com o Uruguai, ponto de observação e cognição privilegiado para o estudo comparado de questões fronteiriças.
No livro Fronteiras em Movimento, o leitor encontrará capítulos sobre fronteiras locais, nacionais e internacionais, com abordagens diferentes sobre o fato social fronteiras, próximas e distantes, físicas e culturais, analisadas do ponto de vista histórico, político, econômico, sociológico e jurídico.
No capítulo primeiro, Fábio Régio Bento, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade San Tommaso, de Roma, identifica algumas possibilidades de conceituação da experiência de fronteira pela análise da bibliografia sobre o tema e, sobretudo, pelo estudo da experiência da integração de fato entre as cidades-gêmeas binacionais de Rivera e Santana do Livramento.
Em Era uma vez na fronteira: o mito da zona ‘fora da lei’?
, o pesquisador Renatho Costa, graduado em Relações Internacionais pela FASM-SP, mestre e doutorando em História Social pela FFLCH-USP, percorre o significado da palavra fronteira pela análise da influência conceitual que herdamos também do cinema estadunidense.
No capítulo terceiro, as pesquisadoras Daniela Vanila Nakalski Benetti, pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e Nícia Pereira de Araujo, economista pela Universidade Federal de Uberlândia, mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná, analisam a concepção típica de cidadania que emerge no âmbito da fronteira entre Brasil e Uruguai, como desfecho da análise das concepções modernas de cidadania e da concepção de cidadania no âmbito da experiência do Mercosul.
A análise histórico-jurídica das políticas públicas de saúde na fronteira Brasil–Uruguai foi objeto de investigação dos pesquisadores Gleicy Denise Vasques Moreira Santos, graduada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco, em Economia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, mestre em Agronegócios pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e Rodrigo Alexandre Benetti, graduado em Direito pela UNIJUÍ, mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria.
No quinto capítulo, a pesquisadora italiana radicada no Brasil, Anna Carletti, pós-doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em História pela mesma universidade, professora colaboradora junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS, e o acadêmico de Relações Internacionais da Unipampa, Ricardo Lopes Kotz, estudam a comunidade árabe-palestina dos municípios de Santana do Livramento e Rivera, do ponto de vista de sua identidade e integração nesta fronteira. Tal artigo foi elaborado no âmbito das atividades do programa de extensão e pesquisa do campus de Santana do Livramento da Unipampa intitulado Semana da Cultura Árabe, cuja primeira edição ocorreu em outubro de 2010.
No capítulo sexto, contamos com a colaboração de um professor de outro campus de nossa universidade, na cidade de São Borja. Nele, Geder Parzianello, mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em Comunicação Social pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, analisa jornais de fronteira e suas retóricas bilíngues no Rio Grande do Sul.
A nação nas fronteiras longínquas: o sentimento nacional dos pampas ao lavrado
, capítulo sétimo, foi o objeto de investigação do historiador Victor Hugo Veppo Burgardt, doutor em História pela Universidade de Brasília, pesquisador que lançou recentemente com a Editora Paco o livro Embates políticos na fronteira setentrional do Brasil (2011).
No capítulo oitavo, Ana Monteiro Costa, doutora em Economia do Desenvolvimento pela UFRGS, e Guilherme Radomsky, doutor em Antropologia Social pela UFRGS analisam as relações entre território de fronteira, desenvolvimento e ambiente, com referência específica ao projeto URB-AL Pampa.
Limites e fronteiras na África: identidades, história e política internacional
foi o tema analisado pelos pesquisadores Kamilla Rizzi, doutoranda em Ciência Política pela UFRGS, mestre em Relações Internacionais e licenciada em História pela mesma universidade, pesquisadora associada do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT), da UFRGS, e Rafael Balardin, mestre em Relações Internacionais pela UFRGS, licenciado e bacharel em História pela mesma universidade.
Fronteiras do heartland clássico e percepções de segurança: governança interestatal cooperativa na Ásia Central é o tema do décimo capítulo, do pesquisador Flávio Augusto Lira Nascimento, doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (PUC-SP/Unesp/Unicamp), membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes).
No capítulo final deste livro, os pesquisadores Anna Carletti e Fábio Régio Bento analisam o tema das fronteiras entre as religiões, a partir da experiência específica do movimento dos Focolares, interpretado pelos autores como um movimento internacional de fronteiras culturais.
Santana do Livramento, 31 de agosto de 2011.
Capítulo I
Fronteiras, significado e valor - A partir do estudo da experiência das cidades-gêmeas de Rivera e Santana do Livramento.
Fábio Régio Bento¹
Iniciaremos esta obra revolvendo o nosso universo conceitual e axiológico sobre o fato fronteira, a partir do estudo da experiência peculiar da fronteira física, conurbada, binacional entre as cidades-gêmeas de Santana do Livramento e Rivera. Quando pensamos em fronteiras, provavelmente recordamos experiências de conflitos. Neste capítulo, estudaremos uma experiência diferente de fronteira física, caracterizada pela integração como exercício de diferenciação.
1. Fronteiras – Significado e valor
As palavras não são neutras, mas carregadas de valor. E não me refiro somente aos adjetivos, mas, também, a alguns substantivos. Há substantivos que se tornam adjetivos. Burguês, por exemplo, não é somente o profissional do burgo, o comerciante, mas, segundo determinados juízos de valor, o explorador da classe operária, ou o esnobe. Preguiça, outro exemplo, pode ser o bicho, ou o vício, pecado capital. Aliás, há mudanças de valor na palavra preguiça. Hoje, ao recomendar a seus pacientes que trabalhem menos, um cardiologista recomenda como remédio (valor) certa dose de preguiça curativa. As palavras mudam de significado e valor ao longo dos anos (tempo), e em determinados lugares (espaço). A partir de certas interpretações axiológicas sobre o pensamento de Maquiavel, sobrenome de Nicolau, pensador italiano, passa-se a usar maquiavelismo como sinônimo de malvadez. Depois, ao ser estudado pelo que foi, um pensador do mal
, e não pelo que não foi, um professor do mal
(MARQUES, 2006, p. 41), passa-se a usar a expressão pensamento maquiaveliano, para diferenciar Maquiavel de maquiavélico. O mesmo ocorre com a palavra fronteira.
Para o exilado político, passar a fronteira significa libertação. Para o contrabandista, fronteira significa aflição. A palavra fronteira não é uma palavra neutra. Ela suscita sentimentos e valores diferentes. Mas ela é, também, uma palavra descritiva, designa o lugar do início ou do fim: início de um Estado, ou fim de outro Estado. Numa linha visível ou imaginária de fronteira, um Estado termina e outro começa. Fronteira é o fim do mundo para quem deixa o seu Estado de pertença; ou o início do mundo, para quem volta ao seu Estado de pertença.
Fronteira é fato social, no sentido empregado por Durkheim em As Regras do Método Sociológico (1895). Fronteira é uma coisa criada (feita) pelos seres humanos. Coisa social, exterior, que se impõe (coercitiva) a dada coletividade. Mesmo sendo reais, nem sempre as fronteiras são visíveis. Além de fronteiras físicas, sedentárias, como as fronteiras geográficas entre os Estados, fronteira stricto sensu, podemos pensar, também, em fronteiras lato sensu, fronteiras nômades, espaços de encontro entre sujeitos diferentes no miolo dos Estados, e não somente nas suas bordas físicas. Fronteiras culturais, também reais. Quando dois grupos culturais diferentes se encontram no miolo do Estado, tal encontro há um quê de encontro de fronteira (cultural), mesmo não ocorrendo nas bordas físicas do Estado.
Fronteiras físicas e culturais são fronteiras em movimento, podem ser modificadas, possuem um prazo maior ou menor de validade.
As fronteiras físicas são orientadas pela lei, e controladas pela polícia de fronteira (para pessoas) e funcionários da aduana (para as mercadorias transportadas pelas pessoas). Mas há situações peculiares, como a fronteira conurbada binacional entre as cidades-gêmeas de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguai), onde existe polícia e aduana, mas onde o controle das relações de fronteira é, sobretudo, controle social, exercitado pela população integrada dos dois países, das duas cidades-gêmeas que formam, geograficamente, uma única cidade, mesmo se administrativamente distintas.
Fronteiras físicas ou culturais. Fronteiras em movimento, espaços de encontro entre sujeitos diferentes nas bordas ou no miolo dos Estados. Quando dois jovens muçulmanos estudam numa mesma escola com dois jovens católicos, mais dois jovens agnósticos, há encontros entre eles que são encontros de fronteira, cultural. Tal escola pode estar na Argentina, no Brasil, na França, nos EUA. A experiência de tais jovens, mesmo se sua escola está no miolo do Estado, é uma experiência de fronteira, cultural, protegida pela legislação do país.
Fronteiras (físicas e culturais) não são obras da natureza, são criações humanas. Ter fronteiras talvez seja algo natural, mas a feição específica de cada fronteira é sempre uma questão de cultura, criação humana, particular, mutável. Assim, também as fronteiras físicas se movimentam, mudam de lugar ou de feição.
No mundo animal, as fronteiras territoriais são demarcadas por urinadas e rugidos. No mundo humano, as fronteiras territoriais são demarcadas por legislações que, quando descumpridas, geram, por sua vez, coisas semelhantes a rugidos. Há fronteiras no mundo dos animais e dos humanos. Isso, repetindo, talvez seja da natureza das coisas
. Porém, as feições específicas das fronteiras humanas são criações humanas, culturais e mutáveis. As fronteiras são modificadas com o encolhimento ou alargamento das linhas tradicionais, anteriores às novas linhas. Fronteiras físicas teriam prazo de validade? Algumas linhas-limites parecem ter adquirido estabilidade. Outras, apenas criadas, por meio de conflitos armados e/ou soluções negociadas, parecem estar ainda em fase de teste. As linhas-limites são mutáveis, podem durar décadas, anos, meses ou séculos. Além disso, nas linhas-limites, o relacionamento entre as pessoas que chegam, saem ou ali vivem são, também, relacionamentos mutáveis, experiências de conflito e/ou integração que podem ser conservadas, reformadas ou abolidas.
1.1. Um mundo sem fronteiras
?
Há quem diga, com encanto que, do alto de um avião a 10 km do solo, o planeta Terra seria um planeta sem fronteiras. Visto da Lua, ainda menos fronteiras. Qual visão-valor de fronteira está contida em afirmações de tal tipo? Talvez a de fronteira como defeito moral da humanidade. Assim como a propriedade privada, as fronteiras também são objeto da condenação de posições políticas utopistas. E assim como a propriedade privada, o problema não é a fronteira em si, mas a forma como ela funciona, expressão do tipo de relações que há entre os vizinhos fronteiriços.
Não faltam afirmações românticas, poéticas e utopistas condenando o fato-fronteira. O adorável mundo novo, segundo tais utopistas, seria um mundo sem fronteiras, como se isso fosse possível, e como se um mundo sem fronteiras devesse ser necessariamente melhor que o nosso mundo com fronteiras. Fronteira defeito ou fronteira virtude? Fronteira sim ou não?
No final de 2010, Régis Debray, pensador francês conhecido aqui na América do Sul, publicou um livro (manifesto) elogiando as fronteiras e criticando o que ele chamou de "sans-frontiérisme". Em Éloge Des Frontières, Debray contesta a avaliação dos que afirmam que fronteiras seriam defeitos políticos da humanidade (DEBRAY, 2010). De fato, há vários movimentos e atividades intitulados sem fronteiras
na sociedade civil. Médicos sem fronteiras; jornalistas sem fronteiras; programas televisivos e revistas sem fronteiras. Teriam tais movimentos e atividades um enfoque negativo em relação às fronteiras? Seriam eles grupos românticos que, dos aviões a 10 km do solo sonhariam com a abolição das fronteiras, por considerá-las instrumentos de escravidão dos povos? Ou será que tais movimentos simplesmente tentam ir além das fronteiras, propondo a superação de localismos, ou de chauvinismos, mas não a abolição das fronteiras? Sem fronteirismo de esquerda e de direita. Haveria na ideologia da globalização uma espécie de tendência a se sacrificar as fronteiras como condição para a construção do novo mundo
da globalização? Barreiras-defeito a serem derrubadas. Médicos e jornalistas sem fronteiras podem ser profissionais que tentam ir além de suas terras de pertença, profissionais da solidariedade internacional. Mas o sem fronteirismo
pode, também, esconder uma espécie de neocolonialismo da boa vontade, criador de novas formas de dependência cultural.
A quem interessaria a abolição dos limites de fronteira? Quem gostaria de viver num mundo sem aduanas e polícia de fronteira? Contrabandistas em primeiro lugar. Traficantes. Bandidos não gostam de fronteiras. A quem interessaria um mundo sem barreiras de controle econômico? A quem interessaria o novo mundo da globalização econômica sem barreiras, sem limites? A especulação financeira não gosta de tais barreiras. Fronteiras são instrumentos institucionais de segurança pública. Se for excessivo, o controle de fronteiras pode sufocar a circulação de pessoas e mercadorias, mas a ausência de controle eficaz de fronteiras deixa povos desprotegidos, deixa o território de fronteiras aberto à criminalidade organizada.
O mundo ficaria realmente melhor sem fronteiras? Ou ficaria melhor com fronteiras e aduanas mais bem-organizadas? Traçar linhas demarcadoras de diferenças entre sujeitos coletivos é típico da nossa forma de viver em sociedade. As fronteiras são expressão disso. Como traçar linhas? Quem tem o poder de traçar linhas? Qual o prazo de validade das linhas traçadas? Como proteger, nas linhas, os espaços dentro das linhas? De quem proteger o espaço dentro das linhas traçadas? Quais seriam as ameaças internas e externas? São questões que sugerem a melhor organização das fronteiras e não sua abolição, nem sua desvalorização.
Fronteira, para uns, como mal necessário; para outros, mal a ser abolido; para outros, ainda, bem social a ser protegido e, também, reformulado, quando necessário. E quem tem o poder de traçar fronteiras?
As fronteiras africanas, por exemplo, não foram traçadas por africanos, mas por colonizadores. Alguns conflitos étnicos que se travam no continente africano não são contra as fronteiras, mas contra seu traçado exógeno, a favor de sua reorganização endógena. Conflitos contra as linhas traçadas por sujeitos exógenos e a favor de novas linhas que vão sendo traçadas por sujeitos coletivos endógenos, pela força das armas, ou pela força da diplomacia.
Linhas tradicionais são contestadas e substituídas por outras. O que significa demonstração de apreço pela lógica das linhas-limites, apreço pela diversidade preservada, protegida por linhas-limites. Valorização das linhas-limites porque elas protegem as diferenças entre os sujeitos coletivos.
Quando as linhas administrativas (efetivas) entre Estados, endógenas ou exógenas, não correspondem às linhas afetivas entre as nações, são criadas novas linhas, para novos Estados, adequando linhas administrativas e linhas de pertença afetiva, de forma pacífica (luta diplomática), ou pela luta armada, reorganizando novos ou antigos interesses coletivos.
Mudam-se linhas tradicionais pela luta diplomática ou pela luta armada, mas viver entre linhas-limites parece caracterizar o nosso estilo coletivo de vida. Pode-se passar de um lado ao outro das linhas-limites. Pode ser mais ou menos fácil sair e/ou voltar para o território da linha-limite de pertença, mas viver dentro de linhas, mesmo se com feições diferentes, é característico dos animais sociais.
1.2. Fronteira filtro
Fronteiras são constitutivas da vida social. Fronteiras entre tradição e modernidade; fronteiras entre grupos sociais de interesse variado. Fronteiras não significam necessariamente divisão, mas distinção. A última experiência humana será, certamente, uma experiência de fronteira, entre a vida e a morte.
No Rio Grande do Sul, no âmbito da poesia regional, fronteira indica genuinidade. O gaúcho mais gaúcho seria de ubicação fronteiriça. Fronteira idealizada, amada e não temida.
A fronteira entre as cidades-gêmeas de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguai) foi rota de fuga para a liberdade de cidadãos que fizeram oposição à ditadura militar instaurada na década de 1960, no Brasil. Para eles, tal fronteira foi o lugar da conquista da liberdade perdida no miolo do