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O espírito neoliberal entre o diabo e o dinheiro: evangélicos, governamentalidades e lutas no Rio de Janeiro
O espírito neoliberal entre o diabo e o dinheiro: evangélicos, governamentalidades e lutas no Rio de Janeiro
O espírito neoliberal entre o diabo e o dinheiro: evangélicos, governamentalidades e lutas no Rio de Janeiro
E-book574 páginas7 horas

O espírito neoliberal entre o diabo e o dinheiro: evangélicos, governamentalidades e lutas no Rio de Janeiro

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Sobre este e-book

A partir de 2018, no Brasil, com a entrada em cena da extrema direita no quadro político nacional, lançou-se luz sobre um dos fenômenos sociais brasileiros mais importantes das últimas décadas: a fenomenal expansão dos evangélicos. Desde então, com a articulação de Jair Bolsonaro a políticos e pastores evangélicos e a crescente mobilização, em modo conservador e moral, de valores tais como Deus, religião, pátria e família, o fenômeno evangélico brasileiro se tornou sinônimo de conservadorismo e até de fascismo.

A luz lançada sobre os evangélicos brasileiros pela presença da extrema direita no centro do cenário político nacional, no entanto, parece mais obscurecer o fenômeno evangélico do que de fato iluminá-lo. Associar o fenômeno evangélico exclusivamente à política partidária não nos permite revelar a dimensão profunda deste fenômeno que é a sua penetração fenomenal nas camadas sociais populares brasileiras, sobretudo urbanas. A partir de um caminho teórico-metodológico que articula reflexões sobre religião e neoliberalismo, bem como de uma etnografia conduzida na cidade do Rio de Janeiro, este livro procura mostrar como as igrejas evangélicas construíram uma teologia muito particular que articula guerras espirituais, responsabilização individual, meritocracia, empreendedorismo e prosperidade, que, em sintonia com a transição da sociedade brasileira para o neoliberalismo, absorveu muito bem as exigências dos segmentos populares da sociedade brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de fev. de 2024
ISBN9786527014225
O espírito neoliberal entre o diabo e o dinheiro: evangélicos, governamentalidades e lutas no Rio de Janeiro

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    O espírito neoliberal entre o diabo e o dinheiro - Iafet Leonardi Bricalli

    CAPÍTULO 1

    METODOLOGIA DA PESQUISA

    1.1 EM DIREÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA

    Verso una sociologia riflessiva (cuja tradução seria o nome dado ao título deste subcapítulo) é o título de um livro organizado por Melucci (1998), que inclui uma série de artigos que procuram problematizar a posição do pesquisador em relação ao seu objeto de pesquisa na sociologia, ou seja, o tema da reflexividade na pesquisa sociológica. A tentativa de dar legitimidade científica à sociologia, em um contexto de forte tradição positivista, fez da objetividade do método científico uma questão para aquele que é considerado um dos fundadores da disciplina, o francês Émile Durkheim. Em As regras do método sociolológico (2019 [1895]), texto que assume o caráter de marco no discurso moderno sobre o método das ciências sociais (CERRONI, 2019, p. 8, tradução nossa), Durkheim parte de um princípio fundamental que para ele é a realidade objetiva dos fatos sociais (DURKHEIM, 2019 [1895], p. 41, tradução nossa). Os fatos sociais, para Durkheim, são modos de fazer ou de pensar reconhecíveis pela particularidade que os rende suscetíveis de exercitar sobre as consciências individuais uma influência coercitiva (DURKHEIM, 2019 [1895], p. 37, tradução nossa) e constituem-se como o conjunto das regras que determinam efetivamente a conduta (DURKHEIM, 2019 [1895], p. 67, tradução nossa). No entanto, na abordagem durkheimiana me interessa particularmente o aspecto de exterioridade dos fatos sociais em relação aos indivíduos. A implicação metodológica de tal proposição é que os fatos sociais devem ser estudados pelos pesquisadores como coisas. Segundo Durkheim,

    Uma coisa se reconhece principalmente pelo sinal de que não pode ser modificada através de um simples decreto da vontade [...] Muito longe de ser um produto da nossa vontade, os fatos sociais a determinam a partir de fora. Esses consistem em uma espécie de modelos nos quais somos restringidos a inserir nossas ações [...] A sociologia deve passar do estágio subjetivo, que até agora não deixou, à uma fase objetiva (DURKHEIM, 2019 [1895], p. 68-69, tradução nossa).

    Se levarmos em consideração a proposta de Durkheim, conclui-se que a realidade social investigada por um pesquisador existe independentemente dele. Dito de outro modo, o sujeito-pesquisador e o objeto de pesquisa são duas entidades separadas e independentes, e, se assim for, o esforço do pesquisador passa por uma atitude separação completa da realidade estudada (FILIPPI, 2019).

    A objetividade das ciências sociais era também uma questão para Weber (2019 [1922]), embora de um modo muito mais ambíguo em relação à proposta de Durkheim. O método weberiano é baseado em processos de causação social, ou seja processos através dos quais os sujeitos ou atores sociais, em virtude de características definíveis como sociais, produzem sobre eles mesmos e sobre outros sujeitos efeitos que têm relevância social (PALUMBO; STAGI, 2013, p. 1, tradução nossa). No entanto, como o número e o tipo das causas, que determinaram qualquer ocorrência individual, é de fato sempre infinito, e não existe qualquer característica inerente às coisas mesmas que a permita de isolar uma parte para se levar em consideração (WEBER, 2019 [1922], p. 44, tradução nossa), a determinação das relações causais weberianas possui um forte componente subjetivo na medida em que depende da consciência do pesquisador e de sua concepção pessoal de mundo. Uma pesquisa social, portanto, é sempre uma escolha entre tantas outras e é fortemente determinada pelos juízos de valor que o pesquisador carrega consigo (WEBER, 2019 [1922]). Para Weber,

    Cada conhecimento da realidade cultural é sempre [...] um conhecimento de pontos de vista particulares. Quando nós exigimos do histórico e do estudioso de ciências sociais, como pressuposto elementar, que ele saiba dintinguir aquilo que é importante daquilo que não o é, e que ele disponha dos pontos de vista indispensáveis para esta distinção, isto quer simplesmente dizer que ele deve aprender a relatar processos da realidade – conscientemente e inconscientemente – a valores culturais universais, e portanto realçar as conexões que para nós são significativas. Embora seja sempre recorrente a opinião de que esses pontos de vista podem ser tirados da própria matéria, isso deriva da ingênua ilusão do especialista que não reflete que primeiro isolou de uma infinidade absoluta, em virtude de idéias de valor com as quais se aproximou involuntariamente de sua matéria, um elemento mínimo, aquele que só a ele interessa tratar (WEBER, 2019 [1922], p. 48-49, tradução nossa).

    No entanto, uma vez reconhecido que a subjetividade do pesquisador está envolvida na determinação das causações sociais, Weber (2019 [1922]) procura afirmar a necessidade de uma objetividade científica nas ciências sociais, afastando o processo de conhecimento de qualquer juízo de valor. Portanto, se a explicação causal inicial é necessariamente influenciada pelo ponto de vista do pesquisador, uma vez feita a escolha da relação causal a ser considerada, o pesquisador deve prezar pela objetividade científica, afastando-se empiricamente e emotivamente do seu objeto de pesquisa.

    Mesmo que Weber (2019 [1922]) tenha problematizado o papel da subjetividade do pesquisador nas pesquisas em ciências sociais, a sua tentativa de legitimar o conhecimento científico das ciências sociais a partir de um esforço de objetivação, o coloca ao lado de Durkheim na prateleira de cientistas sociais cujo método era ainda fortemente influenciado pela ciência positivista do século XIX. Este tipo de abordagem é ainda muito influente nas pesquisas atuais em sociologia, mas uma ruptura espistemológica ocorreu, segundo Filippi (2019), a partir de duas críticas metodológicas fundamentais: os estudos críticos feministas e os estudos críticos de matriz pós-colonial. Foram estas duas abordagens teóricas e metodológicas que passaram a questionar o posicionamento neutro e separado do cientista social em relação ao seu objeto de estudo e a pretensa objetividade da realidade social. Ambas tinham em comum tanto o fato de se interrogarem sobre as assimetrias de poder que se instauravam entre o pesquisador que adentrava em um mundo social e o objeto da pesquisa, que muitas vezes se confundia com sujeitos sociais, e o papel subjetivo do pesquisador na escolha do seu objeto de estudo (FILIPPI, 2019).

    No que se refere à crítica feminista, a partir dos anos 1970 uma série de estudiosas e pesquisadoras, prevalentemente anglo-saxãs, iniciaram um debate que veio, com o passar dos anos, a ser conhecido como metodologia feminista (TERRAGNI 1998 apud FILIPPI, 2019). Mesmo que os temas e as críticas que vieram a ser desenvolvidas pela crítica feminista girassem em torno do modo tradicional que até então, em geral, se produzia conhecimento nas ciências sociais, elas estavam também profundamente marcadas pelas lutas políticas das mulheres que estavam se desenvolvendo naqueles anos (FILIPPI, 2019). Conexão, portanto, entre práticas de pesquisa e práticas políticas.

    A metodologia feminista colocava em questão a pretensa objetividade e neutralidade científica ressaltando que o paradigma positivista tinha sido estruturado em torno de uma visão masculina do mundo e da natureza, naturalizando um tipo de visão que em nome da objetividade excluía as mulheres e suas atitudes dos lugares a partir dos quais falava a ciência positivista e causal (HARDING, 1993 apud FILIPPI, 2019). Colocava ainda no centro da discussão o conceito de experiência, na medida em que a experiência não se relacionava somente aos indivíduos objeto das pesquisas e às relações sociais por eles estruturadas, mas também embebia a pesquisadora social (HARDING, 1987 apud FILIPPI, 2019). Esta, invadindo a vida e os espaços da pesquisa com o seu corpo e a sua alma, determinará sempre, em algum grau, o conhecimento produzido a partir da realidade investigada.. Aqui entra o papel fundamental desempenhado pela dimensão emotiva do pesquisador, elemento essencial e determinante nos processos de pesquisa e na capacidade da pesquisadora em compreender os significatos das dinâmicas sociais da realidade investigada (GOODAL, 1998 apud FILIPPI, 2019). A consequência dessa invasão do campo de pesquisa pelo pesquisador é a crítica ao papel de separação entre sujeito-pesquisador e objeto de pequisa que era cara à tradição positivista. Essa separação não é criticada somente porque é impraticável, mas também porque constitui-se como um limite aos processos de construção de novos saberes e conhecimentos (FILIPPI, 2019).

    Assim, de acordo com a metodologia feminista, se o olhar do pesquisador ou da pesquisadora direcionado ao mundo é carregado de uma forte subjetividade que deriva do próprio sistema de valor trazido por ele ou ela (HARAWAY 2018 apud FILIPPI, 2019; DAL LAGO e DE BIASI, 2002), a única possibilidade de objetividade para o conhecimento científico é que o pesquisador ou pesquisadora se situe em relação ao objeto de estudo e explicite que tipo de relação se estrutura entre ambos (FIILIPPI, 2019), conforme era também parte das preocupações sobre o método da sociologia em Bourdieu (2015). Neste caso, é inevitável que o conhecimento produzido seja sempre parcial e imperfeito, uma vez que fruto de um olhar particular sobre a realidade social.

    Já os estudos críticos de matriz pós-colonial emergiram a partir das lutas anti-coloniais e antiimperialistas que se sucederam no perído pós-guerra. Neste caso, a crítica fundamental estava relacionada ao modelo eurocêntrico de dominação militar e cultural, uma vez que a colonização da maior parte da África e de alguns países asiáticos abrangia não apenas o uso de práticas militares, mas utilizava-se também de estratégias de domínios que buscavam naturalizar os saberes e conhecimentos parciais, representando-os como objetivos (FILIPPI, 2019). A dominação era, portanto, também cultural (RAHOLA, 2002). Os estudos pós-coloniais tiveram origem no contexto britânico, como consequência do fim do colonialismo europeu que acabou resultando em um intenso processo de migração das ex-colônias africanas e asiáticas em direção à Europa, com destaque para a Grã-Bretanha (BASSI e SIROTTI 2010 apud FILIPPI, 2019). Tais estudos, cujo contexto de surgimento, portanto, é o processo de libertação pelo qual passaram determinadas populações de alguns países que haviam sido colônias de países europeus, podem ser sub-divididos, por sua vez, em dois tipos de abordagens (DI PIAZZA, 2004 apud FILIPPI, 2019).

    A primeira abordagem está ligada aos escritos de Edward Said, particularmente sua obra principal, Orientalismo (1990 [1978]). Para Said, um palestino naturalizado norte-americano, o Oriente é uma criação Ocidental (SAID, 1990 [1978]). Isso quer dizer que o Orientalismo não é apenas uma projeto de pesquisa para se conhecer um objeto de forma mais rigorosa, mas um discurso que cria o próprio objeto durante o seu desenvolvimento (SAID, 1978 apud HARDT e NEGRI, 2021 [2000]). As duas principais características do orientalismo, essa criação do discurso europeu, são a homogeneização do Oriente e a sua essencialização (SAID, 1978 apud HARDT e NEGRI, 2021 [2000]), que, no final das contas, resultaram na construção de uma imagem inferiorizada do Oriente em relação ao Ocidente, este tido, consequentemente, como superior.

    A segunda abordagem tem como referência a filosofia desconstrucionista de Jaques Derrida e o seu texto representativo é Critica della ragione postcoloniale (2004 [1999]) de Gayatri Chakravorty Spivak. A filósofa indiana procura relacionar as dimensões de raça e gênero e como estes fatores, biologicamente e socialmente construídos, influenciam na formação e determinam uma espécie de auto-inferiorização dos colonizados. Embora, com isso, Spivak (2004 [1999]) busque conjugar a crítica pós-colonial à crítica feminista, a autora é profundamente crítica à uma certa hegemonia do feminismo ocidental, tido como universal, que acaba sendo um mecanismo objetivante que termina por impedir o surgimento de novos feminismos a partir de subjetividades próprias das mulheres colonizadas que vêem-se caladas pelas vozes ocidentais (FILIPPI, 2019). Neste caso, o feminismo ocidental torna-se alvo de crítica na medida em que acaba reproduzindo os mesmo vícios de uma ciência supostamente universal, a qual era dirigida suas críticas principais. Sabota-se, assim, a possibilidade de conhecer a fundo o objeto de investigação cinetífica (FILIPPI, 2019).

    As críticas feministas e pós-coloniais à pretensiosa busca pela objetividade científica nas ciências sociais que, no final das contas, representava a tentativa de dar a elas uma legitimidade científica baseada nas ciências naturais em um contexto de positivismo, são a base para o surgimento do debate em torno da reflexividade na pesquisa sociológica. Se a tradição sociológica positivista parte do pressuposto de que uma realidade objetiva é pré-existente e deve ser revelada pelo trabalho do pesquisador, pensar a sociologia em termos reflexivos significa considerá-la uma ciência interpretativa, uma vez que a realidade é sempre uma construção social que dependerá de determinada concepção de mundo do pesquisador.

    Embora o conceito de reflexividade seja objeto de múltiplas interpretações e análises e por isso venha definido na tradição sociológica de maneiras muito diferentes, é possível traçar algumas características gerais. As problemáticas referentes à reflexividade em um trabalho de pesquisa são referentes, em última análise, ao problema da relação entre um objeto e um sujeito de pesquisa que possuem uma mesma natureza, ou seja, uma natureza social. O cerne do discurso da reflexividade é, portanto, o papel desempenhado pelo pesquisador na pesquisa e a relação que estabelece, durante a pesquisa, com os atores sociais sob investigação (BACIGALUPO, 2007). Trata-se, sempre, de uma relação de poder, uma vez que o pesquisador é o sujeito que inicia um processo de objetivação sobre o mundo social que termina por instituir uma relação assimétrica entre o sujeito-pesquisador e o objeto de pesquisa - que na pesquisa sociológica se confunde com outros sujeitos (RAHOLA, 2002; SEMI, 2010) – que no final das contas, acaba sendo definido, analisado e categorizado.

    O tema da reflexividade atravessa todo o trabalho do sociólogo e inclui, por exemplo, a escolha teórica-metodológica de referência, as metodologias e técnicas do trabalho de campo e a forma de publicação dos resultados. Na medida em que o pesquisador é ele mesmo um sujeito social condicionado pelas estruturas do mundo social que o circunda, o único modo de trazer algum grau de objetividade à pesquisa científica é a explicitação do modo o mais transparente possível, por parte do pesquisador, das escolhas adotadas para a pesquisa e das condições sociais às quais está submetido (BOURDIEU e WACQUANT, 1995; DAL LAGO e DE BIASE, 2002). Isso inclui, por exemplo, a biografia do pesquisador e o seu pertencimento de classe, gênero, etnia e geração. Isto, obviamente, não eliminará por completo os efeitos de distorção sobre o objeto de pesquisa, mas permitirá um exercício de constante de autoreflexão na medida em que estas características biográficas influenciam o modo de fazer pesquisa, de acesso ao campo e de relação com os sujeitos sociais pesquisados. A reflexividade é uma espécie de autoanálise do sociólogo, na medida em que inclui a reflexão sobre as condições de possibilidade da própria disciplina e impõe a ele mesmo o mesmo exame crítico ao qual coloca sobre o objeto de investigação (BOURDIEU e WACQUANT, 1995).

    Neste trabalho, assumo os pressupostos fundamentais de uma pesquisa reflexiva discutidos acima. A minha subjetividade de pesquisador submetido a um contexto cultural específico, a minha biografia e a minha concepção de mundo influenciaram diretamente as escolhas teórico-metodológicas da pesquisa e, portanto, os resultados obtidos. E isso, ao contrário do que gostaria Weber (2019 [1922]) para que a objetividade científica de uma pesquisa em ciências sociais fosse garantida, não se restringiu apenas ao momento da escolha dos elementos que vieram a compor as relações causais da investigação. Mesmo após essas escolha, entro de corpo, alma e espírito no contexto social escolhido para a investigação. Não exito em explicitar as minhas sensações e impressões durante o trabalho de campo, como ficará claro durante o texto. Os resultados obtidos são, portanto, tributários dessa postura adotada que visa romper, na medida do possível, as fronteiras da dicotomia sujeito-objeto.

    No entanto, isso absolutamente não quer dizer negar a existência de qualquer objetividade científica e, portanto, da possibilidade de que a existe uma realidade a ser representada no contexto estudado. Como alertam muitos autores, o risco de adotar uma perspectiva reflexiva na sociologia é cair em uma armadilha de puro subjetivismo, negar a existência de qualquer realidade objetiva e assumir o aspecto unicamente interpretativo da realidade (BACIGALUPO, 2007; HAMMERSLEY e ATKINSON, 2019; RAHOLA, 2002). A reflexividade está muito distante de uma postura que exclui a possibilidade de objetivação na sociologia. Ela procura tão somente problematizar essa objetivação. O caminho, portanto, está em encontrar um meio do caminho entre uma pura objetividade que separa por completo o sujeito-pesquisador de seu objeto de pesquisa e uma autoreflexividade total. Segundo Bourdieu, o que constitui um obstáculo para o conhecimento científico é tanto o excesso de proximidade quanto o excesso de distância (BOURDIEU, 2013 [1984], p. 37, tradução nossa) em relação ao objeto de pesquisa. A meu ver, o entendimento da sentença de Bourdieu passa principalmente pela compreensão dos dois usos da palavra excesso e é por isso que nesta pesquisa assumo uma posição que procura evitar os dois excessos, ou seja, nem tão próximo dos evangélicos brasileiros nem tão distante deles.

    É verdade que eu não me encontro em uma posição equidistante entre proximidade e distância em relação aos evangélicos brasileiros. A minha proximidade em relação a eles está no fato de eu ser brasileiro, de conhecer relativamente bem a realidade social normalmente precária na qual estão inseridos e o fato de que o ambiente cristão no qual nasci e me formei seguramente está inscrito na minha subjetividade. Por sua vez, sou um brasileiro de classe média que carrego um capital cultural muito distante daqueles possuídos pelas pessoas com as quais me relacionei durante a pesquisa, bem como o ambiente em que nasci, embora fosse cristão, não era evangélico e sim católico e eu o abandonei relativamente cedo. Considero, portanto, que estou em um certo meio do caminho entre proximidade e distância em relação aos evangélicos brasileiros, mas a minha biografia talvez me coloque mais distante dos evangélicos brasileiros do que próximo a eles. Portanto, ainda que eu me encaixe no conselho bourdesiano de evitar excessos, é preciso dizer que não é preciso ser César para comprendê-lo: independentemente da distância que se está em relação ao objeto de pesquisa, todo o conhecimento produzido será sempre parcial e questionável (HAMMERSLEY e ATKINSON, 2019).

    1.2 ABORDAR OS EVANGÉLICOS BRASILEIROS A PARTIR DO NEOLIBERALISMO: UMA ESCOLHA METODOLÓGICA

    Como dito na introdução deste trabalho, a decisão de se estudar os evangélicos brasileiros a partir de uma perspectiva que leve em conta as transformações da sociedade brasileira com a chegada do neoliberalismo deve-se a uma circunstância contingencial. Foi durante uma reunião com o meu orientador, enquanto debatíamos, a partir de Foucault, a diferença entre o sujeito disciplinar produzido pelo capitalismo industrial e o sujeito livre que emerge com o neoliberalismo, que ele cogitou a possibilidade que o meu projeto se direcionasse no sentido de se pensar a relação entre igrejas evangélicas e subjetivação neoliberal. A proposta, claro, surgiu em razão da proximidade que eu tinha com o cristianismo brasileiro e de uma bagagem de conhecimento que eu já carregava comigo desde a minha graduação, quando comecei a entrar em contato com a obra de Foucault. A proposta, portanto, partia de uma preocupação metodológica no sentido de que eu estivesse relativamente próximo ao objeto da pesquisa, mas indiretamente surgia em razão da possibilidade de compreensão da realidade a partir de um autor com o qual eu cultivava uma relação já há muitos anos.

    No entanto, a abordagem do fenômeno evangélico brasileiro a partir de uma perspectiva foucaultiana do neoliberalismo pode iluminar muitos aspectos desse fenômeno que de outra maneira, acredito, permaneceriam invisíveis. É verdade que o avanço evangélico na sociedade brasileira coincide com as políticas e ideologias neoliberais que começam a invadir a sociedade brasileira a partir dos anos 1980 e se consolidam efetivamente a partir dos anos 1990, com governo Collor. O crescimento evangélico responde, portanto, ao aprofundamento do desmantelamento da sociedade brasileira que têm início com o processo de modernização mas que se aprofunda com o neoliberalismo. Uma perspectiva marxista de neoliberalismo, seja de autores estrangeiros – Harvey (2008 ([2005]), por exemplo – seja de autores brasileiros - Saad Filho e Morais (2020), por exemplo -, revelariam a associação entre evangélicos e neoliberalismo. No entanto, o movimento evangélico brasileiro que surgiu no final dos anos 1970, que ficou conhecido como neopentecostalismo e influenciou profundamente o todo o campo religioso brasileiro se desenvolveu teologicamente a partir de noções caras ao neoliberalismo entendido enquanto a racionalidade do capitalismo contemporâneo, como empreendedorismo, competitividade, concorrência, meritocracia, sucesso, autodesenvolvimento pessoal e conservadorismo. O fenômeno evangélico, assim, não se resumiria a um sintoma da virada neoliberal da sociedade brasileira, mas seria também uma manifestação de um tipo de governamentalidade capaz de conduzir a conduta dos sujeitos sociais a partir de uma mistura aparentemente paradoxal entre os princípios de liberdade e de conservadorismo da racionalidade neoliberal.

    É verdade que, dependendo do uso que se faz dele, o termo neoliberalismo pode soar muito abstrato. Ele não capta, por exemplo, a mudança da natureza do processo de acumulação que passa da produção material à produção imaterial do conhecimento (RULLANI, 2009) a partir das transformações do capitalismo que iniciam-se nos anos 1970 conforme sugere a locução capitalismo cognitivo (COCCO, SILVA e GALVÃO, 2003; FUMAGALLI, 2007; MOULIER BOUTANG, 2002; VERCELLONE, 2009). De fato, com a passagem do fordismo ao capitalismo cognitivo, as capacidades cognitivas e relacionais dos indivíduos passam a ser de fundamental importância e simbolizam a evolução das formas capitalistas de produção, sobretudo nos países capitalistas centrais. A locução capitalismo cognitivo significa ainda uma mudança de governamentalidade na medida em que a exploração baseada na forma salário é superada em nome de uma exploração de toda a subjetividade, e não apenas aquela relacionada ao trabalho. No capitalismo cognitivo, vida e trabalho são realidades indiferenciadas.

    No entanto, para os propósitos deste trabalho, a análise da mudança do paradigma de governamentalidade com as transformações do capitalismo nos anos 1970, embora tenha uma forte convergência com os teóricos do capitalismo cognitivo, é melhor desenvolvida por uma leitura combinada de Foucault (2008c [2004]; 2008d [2004]), Rose (2011 [1996]), Dardot e Laval (2016 [2009]), Brown (2019) e Dardot et. al. (2021). A partir da análise dos textos dos teóricos neoliberais, os autores citados mostram de forma detalhada a gênese de um tipo de sociedade que estava já sendo preparada desde a crise do liberalismo, mas que somente encontrou coerência teórica nos anos 1970. Uso o termo neoliberalismo de um modo muito concreto, portanto, para indicar um tipo específico de governamentalidade que inclui noções caras para este trabalho, como empreendedorismo, desenvolvimento pessoal, sucesso e conservadorismo.

    1.3 VÁ ÀS RUAS E OLHE AO SEU REDOR: UMA ETNOGRAFIA ENTRE OS EVANGÉLICOS NO RIO DE JANEIRO

    Desde o primeiro momento em que o meu projeto de pesquisa começou a se desenhar em torno da relação entre os evangélicos e o neoliberalismo no Brasil, fazer uma etnografia entre os evangélicos brasileiros tornou-se quase uma obsessão. Se a minha hipótese principal era de que as igrejas evangélicas neopentecostais desempenhavam um importante papel, ao modo delas, para a governamentalidade neoliberal entre os pobres brasileiros, seria fundamental lançar um certo olhar sobre o que se passa em uma dessas igrejas. Toda a vasta literatura produzida sobre os evangélicos brasileiros, embora tenha sido de fundamental importância para a elaboração do meu projeto de pesquisa, não era capaz de revelar de modo satisfatório de que modo as igrejas haviam se apropriado de um discurso convergente com o neoliberalismo e como esse discurso era vivido pelos fiéis. Nenhuma pesquisa de tipo quantitativo podia também revelar esses discursos nem compreender de que modo os evangélicos brasileiros se relacionavam com eles. Seria preciso ir às ruas e olhar ao redor conforme sugestão dos sociólogos da Escola de Chicago da primeira metade do século XX. Em outras palavras, seria preciso iniciar uma etnografia entre os evangélicos brasileiros.

    A etnografia constitui-se como uma das abordagens metodológicas dentro das ciências sociais cuja origem remonta à antropologia do século XIX e início do século XX, quando antropólogos ocidentais utilizavam métodos de observação para descrição de comunidades e culturas, normalmente localizadas fora do ocidente, e geralmente tratadas como primitivas ou exóticas (HAMMERSLEY e ATKINSON, 2019). Com o tempo, durante o século XX, a etnografia deixou de ser um método exclusivo de descrição de culturas exóticas por parte da antropologia. Ela tornou-se um método largamente utilizado para o estudo de áreas urbanas e rurais dos países ocidentais, o que pode ser muito bem ilustrado, por exemplo, pela importância que a etnografia passou a ter para os estudos urbanos dos sociólogos da Escola de Chicago. Como o uso da etnografia como método de pesquisa espalhou-se por diversas áreas do conhecimento e por diversos contextos sociais, seria difícil conceituá-la de modo único. No entanto, alguns traços comuns podem ser delineados como forma de aproximação a uma definição do que a etonografia é e do que ela faz. Vejamos o que nos dizem alguns autores:

    A pesquisa etnográfica é caracterizada pelo privilégio da observação e da descrição das práticas sociais em relação à análise semântico-estrutural. Isto não significa, obviamente, desinteressar-se de significados e estruturas da ação ação social, mas problematizá-las a partir das práticas, ou seja, daquilo que os atores fazem e dizem fazer em suas experiências cotidianas [...] A pesquisa etnográfica não pretende ser objetiva ou exaustiva, mas ilustrar de modo original, a partir de pontos de vista inevitavelmente parciais, mundos ou dimensões da vida social. No entanto, procurando relacionar estes pontos de vista a perspectivas culturais universais (como teria dito Weber), ela pode também individualizar tipos de práticas invariáveis ou generalizáveis [...] (DAL LAGO e DE BIASE, 2002, p. xvii, tradução nossa).

    [...] fazer etnografia: desenvolver uma atividade de pesquisa descritiva e qualitativa, que funda o próprio caráter científico, longe de ser óbvio, não sobre a objetividade de dados inequivocáveis [...], mas sobre a presença direta do observador e a relação problemática, dinâmica e processual que esta presença aciona. Em outras palavras, o discurso etnográfico não parece delinear fronteiras precisas de um objeto, mas mais do que isso do estilo e do ponto de vista assumido para analisá-lo (RAHOLA, 2002, p. 27, tradução nossa).

    Em termos de coleta de dados, a etnografia geralmente envolve o pesquisador participando, aberta ou encobertamente, do cotidiano das pessoas por um longo período de tempo, observando o que acontece, ouvindo o que é dito e/ou fazendo perguntas por meio de entrevistas formais e informais, coletando documentos e artefatos - de fato, reunir quaisquer dados disponíveis para lançar luz sobre as questões que estão surgindo como foco de investigação. Como isso indica, de um modo geral, os etnógrafos recorrem a uma série de fontes de dados, embora às vezes possam confiar principalmente em uma - muitas vezes observação participante (HAMMERSLEY e ATKINSON, 2019, p. 3, tradução nossa).

    As definições acima revelam alguns traços de uma pesquisa etnográfica. Em primeiro lugar, ela envolve a presença direta e regular do pesquisador em seu contexto de pesquisa por um período de tempo que normalmente é muito variável de acordo com os prazos e as questões da pesquisa. O clássico Argonautas do Pacífico Ocidental de Malinowski (2018 [1922]), revela com muita clareza como essa presença dá-se como uma espécie de encontro e reproduz uma experiência da qual o autor faz parte (RAHOLA, 2002, p. 30, tradução nossa). É verdade que para Malinovski (2018 [1922]) o trabalho do etnógrafo parecia inscrever-se em uma tradição objetiva que se traduzia na necessidade de colher o ponto de vista dos nativos a partir do exterior, mas para o autor já era evidente como a subjetividade do observador constituía-se como um dado marcante de um trabalho etnográfico. A presença do pesquisador no campo de pesquisa questiona de imediato a noção positivista de separação absoluta entre sujeito-pesquisador e objeto de pesquisa e a neutralidade da pesquisa científica. Na etnografia, talvez mais do que em qualquer outro método de pesquisa utilizado nas ciências sociais, o pesquisador penetra de corpo e alma no seu objeto e os resultados obtidos serão necessariamente influenciados pelas consequências que essa presença provoca.

    Com a etnografia, admite-se de antemão o caráter interpretativo da realidade a ser estudada, a parcialidade e a precariedade dos resultados obtidos. A etnografia é sempre um ponto de vista do pesquisador em relação ao objeto de pesquisa, conforme sugere, por exemplo, Geertz (2019 [1973]). Em outras palavras, a relexividade é uma questão chave para a etnografia. Isto não quer dizer, no entanto, confundir a etnografia com um puro subjetivismo. Antes da entrada no campo, é preciso, ao menos do meu ponto de vista, a preparação de um projeto de pesquisa que revele questões a serem respondidas e, portanto, uma dimensão objetiva da realidade a ser pesquisada. Naturalmente, o projeto de pesquisa não deve nunca ser muito rígido, uma vez que qualquer um que já tenha tido experiência de fazer uma etnografia sabe que a pesquisa de campo costuma tanto questionar as questões formuladas de antemão quanto provocar novas questões.

    Dentre as técnicas utilizadas para a coleta de dados durante uma etnografia, destacam-se a entrevista (conhecer o que as pessoas dizem) e a observação (conhecer o que as pessoas fazem). Além disso, o pesquisador precisa estar atento a todas as fontes de dados que permitam lançar luz sobre as questões da pesquisa, como por exemplo documentos, objetos e publicações produzidos pelos sujeitos que compõem o objeto em investigação. Em outras palavras, é preciso considerar todas as fontes de dados disponíveis e estar atento a cada elemento do mundo social em investigação, uma vez que aspectos fundamentais dele podem emergir em detalhes e situações que à primeira vista pareciam banais Até aqui, tracei alguns aspectos gerais daquilo que se convencionou chamar de etnografia. Eles serão aprofundados a partir de agora, quando começo a apresentar o modo como se desenvolveu a etnografia que conduzi para a elaboração deste trabalho.

    O meu projeto de pesquisa inicial previa uma etnografia de um ano conduzida em uma das unidades da Igreja Universal do Reino de Deus⁸ da cidade do Rio de Janeiro. Fazer uma etnografia durante um ano era, a meu ver, uma decisão adequada tanto para uma pesquisa de campo detalhada quanto para os prazos de um doutorado. De maneira esquemática, eu havia dividido os três anos de curso da seguinte forma: o primeiro ano para as aulas, cursos e leituras; o segundo ano para a pesquisa de campo e para o aprofundamento das leituras; e o terceiro ano para a redação da tese. A escolha por uma igreja específica, a Universal, deu-se em razão de ela ser a principal representante do neopentecostalismo brasileiro, ou seja, o movimento religioso evangélico brasileiro cujos aspectos teológicos e sociológicos permitiam responder às questões da minha pesquisa. Por fim, a escolha da cidade do Rio de Janeiro ocorreu por duas razões principais: primeiro porque, como disse na introdução do trabalho, o movimento evangélico pentecostal e neopentecostal brasileiro é um fenômeno típico das favelas e periferias das grandes cidades brasileiras, e a cidade do Rio de Janeiro, portanto, seria um território arquetípico de observação do fenômeno; segundo porque o neopentecostalismo brasileiro nasceu no Rio de Janeiro, com a fundação da primeira sede da Universal em 1977 e a cidade segue sendo um dos principais territórios de sua

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