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Trote e totalitarismo: Um novo relato sobre a banalidade do mal
Trote e totalitarismo: Um novo relato sobre a banalidade do mal
Trote e totalitarismo: Um novo relato sobre a banalidade do mal
E-book692 páginas9 horas

Trote e totalitarismo: Um novo relato sobre a banalidade do mal

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Sobre este e-book

"Este livro traz uma ampla perspectiva sobre as violências sofridas por estudantes na Faculdade de Medicina da USP, articulando relatos da experiência individual de Scalisa na universidade, depoimentos cruciais coletados ao longo da CPI dos Trotes e uma extensa análise sobre o caráter dessas práticas e sua relação com a teoria arendtiana da banalidade do mal e do totalitarismo.

Scalisa aborda em seu texto os episódios mais emblemáticos dos trotes, como o assassinato do estudante Edson Tsung em 1999, os casos de abuso sexual ocorridos ao longo dos anos 2010, e a violência intrínseca a organizações como a Atlética e o chamado 'Show Medicina'.

Além disso, um dos pontos talvez mais impressionantes de todo esse movimento é a retomada da tradição de violência, trotes e torturas presentes na Faculdade de Medicina da USP desde sua fundação, envolta pelo movimento eugenista paulistano e evidente na forma como a instituição, professores e ex-alunos acobertavam os mais diversos casos de violência relatados dentro dos trotes, festas e outros eventos universitários.

A leitura do livro de Scalisa é fundamental para entendermos a forma como essa cultura de violência extrema se faz ao longo de décadas nas faculdades de medicina do Estado de São Paulo, para que possamos combatê-las e encará-las com a devida gravidade que o tema demanda." (Adriano Diogo)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de abr. de 2024
ISBN9786559662487
Trote e totalitarismo: Um novo relato sobre a banalidade do mal

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    Pré-visualização do livro

    Trote e totalitarismo - Felipe Scalisa Oliveira

    Trote e totalitarismoTrote e totalitarismo

    conselho editorial

    Andréa Sirihal Werkema

    Ana Paula Torres Megiani

    Eunice Ostrensky

    Haroldo Ceravolo Sereza

    Joana Monteleone

    Maria Luiza Ferreira de Oliveira

    Ruy Braga

    Trote e totalitarismo

    Copyright © 2023 Felipe Scalisa Oliveira

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Edição: Haroldo Ceravolo Sereza e Joana Monteleone

    Assistente acadêmica: Tamara Santos

    Projeto gráfico, diagramação e capa: Larissa Nascimento

    Revisão: Alexandra Colontini

    Capa: Montagem de Paloma Franca Amorim

    Produção do livro digital: Booknando

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    O47t

    Oliveira, Felipe Scalisa

    Trote & totalitarismo [recurso eletrônico] : um novo relato sobre a banalidade do mal / Felipe Scalisa Oliveira. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2024.

    432 p., recurso digital ; 3269 MB

    Formato: ebook

    Modo de acesso: world wide web

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-65-5966-248-7 (recurso eletrônico)

    1. Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina - Trote - Relato. 2. Trote - Jovens e violência. 3. Estudantes universitários - Brasil - Conduta. I. Título.

    CDD: 378.195

    CDU: 37.064.3

    24-88804

    Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643

    alameda casa editorial

    Rua Treze de Maio, 353 – Bela Vista

    cep 01327-000 – São Paulo – SP

    Tel. (11) 3012-2403

    www.alamedaeditorial.com.br

    Sumário

    PRÓLOGOS

    I - Apresentação do livro

    II - Trote: muito além da banalidade

    III - Entre drama e dromos – uma leitura de Trote e Totalitarismo: um novo relato sobre a banalidade do mal

    INTRODUÇÃO

    I - As Veias Abertas da Faculdade de Medicina: a Experiência Totalitária

    II - Compreendendo as Experiências: o Método Arendtiano

    III - Os Problemas do Conceito de Totalitarismo e sua Inevitabilidade

    TERROR

    I - O Trote

    1) A Essência do Trote

    2) As Fases do Trote

    II - O Desamparo

    1) A Formação dos Movimentos Totalitários

    2) O Vestibular

    3) A Integração

    FICÇÃO

    I - Ficção: Contornos do Conceito

    1) O que é Ficção?

    2) A Verdade Factual

    3) A Vontade de Mentira

    4) A Negação

    5) O Vestibular Justo

    II - Os Delírios do Movimento

    1) O Espírito da Faculdade e o Supremacismo

    2) Megalomania e Orgulho

    III - Paranóia

    1) Paranóia e Totalitarismo

    2) A Vítima como Inimigo Comum

    MOVIMENTO

    I - A Cinética do Movimento

    1) Os Movimentos Buraco Negro

    2) Da Diferença entre Fascismo e Totalitarismo: o Pertencimento Acima de Tudo

    3) A Estrutura Universitária e a Formação dos Movimentos Tribais

    II - As Atléticas

    III - A Tradição

    1) Os Movimentos Tribais nas Universidades e o Fanatismo pela Tradição

    2) A Tradição Universitária e o Imperativo Categórico Totalitário

    3) A Vontade do Movimento e a Tradição

    4) O Princípio do Líder e a Perda da Autoridade

    IV - Vontade e Movimento

    1) O Sacrifício da Vontade e o "let yourself go"

    2) A Onda em Nietzsche e a Unificação da Vontade.

    3) O Amor em Santo Agostinho: Amo: volo ut sis

    4) Ódio Totalitário: Odi: nolo ut sis

    5) Um Novo Relato sobre a Banalidade do Mal

    Conclusão

    Referências bibliográficas

    Agradecimentos

    I

    Apresentação do livro

    ¹

    Adriano Diogo ²

    Eu estava finalizando meus trabalhos legislativos na Assembleia – já tinha passado a eleição – e estava concluindo meu trabalho na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo ‘Rubens Paiva’. Candidatei-me a deputado federal e não fui eleito - era o fim do ano de 2014.

    O meu amigo Ricardo Kobayashi trabalhava comigo na Comissão da Verdade e me falou: Adriano, você tem mais três meses de trabalho. Faz uma audiência, vamos instalar na Comissão de Direitos Humanos um processo para saber o que está acontecendo na Faculdade de Medicina da USP, a questão dos trotes, da violência, o Show-Medicina, principalmente na Atlética.

    O Koba, Ricardo Kobayashi, era muito amigo do pessoal da Medicina. Foi aí que abordou um fato lamentável, o assassinato do calouro Edson Tsung Chi Hsueh, que faleceu durante um trote dentro da piscina na Faculdade de Medicina da USP. Eu era vereador na época e os pais dele, desesperados, chegaram a ir à Câmara Municipal de São Paulo em busca de respostas. Eu tinha um amigo vereador, o Willian Woo, de origem oriental. Ele me trouxe esse caso, me apresentou os familiares do Edson.

    Meu amigo Dr. Paulo Elias, que era professor da faculdade, acompanhou todo esse caso da turma do quarto ano. Ele me contava que ia conversar com a turma - os estudantes da Faculdade de Medicina-, os estudantes punham os pés em cima das cadeiras e das mesas, e ele tentando abrir um diálogo. Eu retruquei que, diante das circunstâncias, poderia fazer uma audiência pública, mas não esperava quórum. O Koba pretendia trazer os alunos da Faculdade de Medicina, me apresentar o Felipe Scalisa, um jovem estudante da instituição à época, para relatar coisas ultrajantes que aconteciam no Show Medicina.

    O Koba falou: Vamos marcar para a segunda-feira da semana que vem a audiência sobre a faculdade e os trotes. Isso era uma quinta-feira. Eu estava planejando descer para a praia, era um final de semana prolongado, de repente, me liga uma equipe do Fantástico: Olha, aqui é da produção do Fantástico. Queremos fazer uma matéria sobre a audiência que fará a respeito dos trotes na Faculdade de Medicina.

    Pensei: Nossa, audiência sobre os trotes? Mas quem pediu essa matéria? Eu nunca divulguei nada. Eles responderam: Não, foi a Faculdade de Medicina, disseram que o senhor vai fazer uma audiência acusando. Tá bom, pode vir aqui em casa gravar, respondi. Pensei que fossem aquelas matérias rapidinhas. Veio uma equipe inteira, produtores, cinegrafistas. Aí percebi um clima hostil, mas eu estava tranquilo, nem havia começado os trabalhos ainda.

    Eu tinha um assistente brilhante, Danilo Leite, que fez um convite, uma espécie de meme com o símbolo da Faculdade de Medicina, a cobra em torno do cálice, símbolo histórico da faculdade, e desmembrou o símbolo da cobra em outra posição, diferente da clássica. Veio a equipe, gravou, dei minha versão de que estavam me solicitando que fizesse uma investigação sobre a violência nos trotes, sem ter muita noção. Depois que a equipe saiu, liguei para o diretor da Faculdade.

    Falei: Professor, eu fui procurado pela equipe do Fantástico para saber o que vai ser a audiência que irei fazer e gostaria de convidá-lo para vir fazer essa audiência comigo. E o homem cortês e educado que eu conhecia, um médico, de repente se transformou e começou a falar com agressividade: Não vai haver audiência nenhuma, eu não irei. O senhor nem deputado é mais. Por que vai querer mexer com a nossa Faculdade, qual é o seu intuito e o do seu partido? E eu: Tá bom, professor. Eu gostaria que o senhor estivesse comigo, eu não sei direito nem o que vão perguntar. Mas, já que se manifestou dessa forma….

    No final de semana o programa foi ao ar. Eu não assisti, tinha ido viajar. Quando cheguei para trabalhar na segunda-feira na Assembleia, aquele burburinho, todo mundo me procurando para saber se havia visto a reportagem. Não vi, foi positiva? Que positiva! Eles te desmoralizaram, desmoralizaram a Assembleia, foi a resposta. Consultei os deputados mais experientes que me aconselharam a realizar a audiência mesmo assim e prometeram me dar toda a cobertura.

    Decidi manter, fizemos uma faixa estilizando a quebra dos princípios a partir do símbolo da cobra e do cálice. Reservamos um auditório novinho, majestoso, o Auditório Paulo Kobayashi. Vieram os estudantes, os professores, foram nove horas de depoimentos impressionantes.

    Na audiência veio até o renomado professor Saldiva. Entrei com o requerimento para instalar a Comissão Parlamentar de Inquérito. Achava que jamais seria possível, pois tinha uma cronologia, havia uma fila e o limite de instalação de cinco comissões simultâneas. Mas, diante da repercussão do caso e da violência das respostas da Faculdade de Medicina, no domingo seguinte à audiência pública, foi publicado um artigo de página inteira na Folha de São Paulo, assinado por um grande médico brasileiro ligado à USP, da confiança do senhor Frias, proprietário da Folha, dizendo que na Faculdade de Medicina não acontecia nenhuma violência, que a ordem estava mantida e ninguém era desrespeitado.

    Os deputados me chamaram e disseram que não havia como recuar. E assim, instalou-se a Comissão Parlamentar de Inquérito, aprovada por unanimidade. O deputado Campos Machado, um dos mais experientes, me aconselhou: Adriano, isso é coisa de grosso calibre, você não pode recuar. Vou te apoiar. Procurei o deputado Barros Munhoz, que me disse a mesma coisa. Tive o apoio de todas as correntes de opinião. A CPI foi aprovada por unanimidade, constituída com cinco parlamentares.

    Qual não foi a minha boa surpresa quando o professor Dráuzio Varella fez um vídeo, que colocou à disposição na internet, sobre a questão do estupro e da violência dentro da faculdade? Assim começou a CPI e eu conheci Felipe Scalisa e um mundo de gente maravilhosa, com quem aprendi coisas impressionantes. Primeiro começamos com a Faculdade de Medicina da USP porque tinha muito material. Um número imenso de advogados aparecia para impedir os depoimentos. Quase sofri voz de prisão. Mas os meninos da Faculdade de Medicina, alguns professores e médicos me deram sustentação. Começamos a fazer todas as audiências diariamente. Mesmo diante da dificuldade de quórum para instalar a CPI, meus colegas nunca deixaram que a sessão fosse suspensa.

    A Faculdade de Medicina foi dissecada, o Show Medicina devastado, os textos, as experiências, as músicas, a Atlética. Realizamos audiências sobre a trágica morte do estudante Edson Suê; da invasão do serviço de verificação de óbitos e profanação dos cadáveres; sobre os encontros das Atléticas; as exigências do uso compulsório de bebidas alcoólicas por parte de calouros, etc. Tudo correu num nível de organização impressionante, não deixamos a peteca cair nenhum dia. Diariamente havia audiência e os advogados começaram a ser contratados para que as pessoas convidadas a depor não viessem; e eu sofrendo ameaças. Todo o departamento de polícia que funcionava dentro da Assembleia me dava cobertura diária para eu realizar as audiências e não sofrer alterações. Os irmãos delegados, Cristian Sant Ana Lanfredi e Cristiano Sant Ana Lanfredi me deram toda a condição de trabalho. Descobri um mundo que eu não conhecia; da droga; da bebida; da coerção; do estupro; das ameaças; e até a história de um militar que levava as meninas para a Casa do Estudante da Faculdade de Medicina para seduzi-las.

    O livro Trote e Totalitarismo: Um novo relato sobre a banalidade do mal, escrito por Felipe Scalisa Oliveira traz uma ampla perspectiva sobre as violências sofridas por estudantes na Faculdade de Medicina da USP, articulando relatos da experiência individual de Felipe na universidade, depoimentos cruciais coletados ao longo da CPI dos Trotes Violentos e uma extensa análise sobre o caráter dos trotes e sua relação com a teoria arendtiana da banalidade do mal. Scalisa aborda em seu texto os episódios mais emblemáticos dos trotes, como o assassinato do estudante Edson Tsung em 1999, os casos de abuso sexual ocorridos ao longo dos anos 2010, e a violência intrínseca a organizações como a Atlética e o chamado Show Medicina. Além disso, um dos pontos talvez mais impressionantes de todo esse movimento, é a retomada da tradição de violência, trotes e torturas presentes na Faculdade de Medicina da USP desde sua fundação, evidenciados pela forma como o departamento, professores, e ex-alunos acobertavam os mais diversos casos de violência relatados pelos alunos dentro dos trotes, festas, e outros eventos universitários, estes que muitas vezes ocorriam dentro do campus com a presença de estudantes formados. A impunidade no caso do assassinato de Edson demonstra, como Scalisa traz, o enraizamento da cultura de violência dos trotes dentro da medicina da USP, na medida em que os responsáveis pelo crime, mesmo admitindo a culpa pelo caso, seguem exercendo, com notoreidade, a profissão dentro da área médica.

    A cultura dos trotes na universidade se relaciona diretamente com a manutenção dos mais diversos preconceitos enraizados na sociedade brasileira, estabelecendo uma cultura de humilhação dentro da universidade que intimida calouros a afirmarem sua humanidade e existência. São diversos os relatos que demonstram a perseguição e manutenção de preconceitos contra mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros, asiáticos, dentre as mais diversas minorias. Reforçando estas violências de forma psicológica e física, a rotina destes estudantes dentro da faculdade se tornava ainda mais penosa do que para os outros calouros, que, independente de sua situação, já sofriam com a tortura dos trotes e da subserviência exigida pelos veteranos.

    O autor mostra também no texto um processo de luta que se faz em paralelo às violências sofridas pelos alunos e alunas na universidade: a formação dos coletivos feministas e LGBTQIA+, responsáveis em grande parte por trazer a tona o cotidiano de humilhações para membros do poder público que resultaram na deflagração da CPI. As letras das músicas cantadas pelas baterias das universidades e os hinos demonstram o nível de preconceito e violência contra essas minorias perpetuados pela universidade, extremamente misóginos, homofóbicos e racistas, fazendo alusões a outras faculdades de uma forma muito pejorativa.

    A violação de Direitos Humanos dentro da universidade era nítida, como demonstram os diversos depoimentos e outras fontes utilizadas ao longo da CPI e também no livro de Scalisa. Remetendo a torturas sofridas na Ditadura Militar e a lógica de violência estabelecida no nazi-fascismo, o livro nos traz uma importante reflexão: a importância de analisarmos o trote como um fenômeno específico, que se diferencia das torturas políticas, na medida em que sua finalidade não está na obtenção de informações, por exemplo, mas sim na simbologia do rito de iniciação e criação de um movimento de pertencimento abstrato.

    Um dos elementos mais obscuros da cultura dos trotes está na identificação daqueles que sofrem a tortura com seus torturadores: uma espécie de Sindrome de Estocolmo. Grande parte dos veteranos que praticam os trotes mais violentos possíveis passaram por este processo ao ingressarem na universidade, ponto muitas vezes utilizado como forma de justificar a prática do mesmo posteriormente. Depois de humilhar o estudante das mais diversas formas, com processos que vão desde xingamentos, tapas, entre outros, os veteranos abraçam os calouros e dão por fim o processo do trote. Neste momento, em que, humilhado e sem humanidade, o calouro vê uma mão estendida para si, abraça (em grande parte dos casos) o seu agressor e se dispõe a perpetuar a rotina de violência com os próximos ingressantes. É aí que reside a perpetuação dos trotes nas faculdades.

    O livro de Felipe aborda não só a Faculdade de Medicina da USP, mas outras importantes universidades do estado de São Paulo, como a UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), FAMERP (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto), PUCCAMP (Pontifícia Universidade Católica de Campinas), entre outras, que reproduzem, todas, o mesmo nível de violência para com os calouros. São relatadas perseguições, e inúmeros casos de alunos que desistiram do sonho de cursar medicina por não aguentar a violência dos ritos de iniciação. Apesar da mudança que se apresenta na sociedade civil e na política, mais atenta às violações de Direitos Humanos e as chamadas pautas identitárias, os trotes violentos continuam a ser registrados nas universidades. O fortalecimento da nova direita militarizada, hostil às minorias e aos Direitos Humanos evidencia como este tipo de mentalidade ainda se mantém na sociedade brasileira e muitas vezes se encontra velado dentro dos espaços universitários. Grande parte dos alunos envolvidos nos trotes violentos, tais quais os assassinos de Edson, continuam impunes e exercendo a profissão. Além disso, a mãe do estudante assassinado nunca recebeu uma visita ou reparação por parte da Universidade de São Paulo.

    Outro caso importante retomado no livro e ao longo da CPI de 2014, que foge do escopo das faculdades de medicina, diz respeito à ESALQ (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz) - USP em Piracicaba. Scalisa faz referência ao livro A Anatomia do Trote³, de Antônio Ribeiro de Almeida Júnior. O caso da Escola de Agricultura é utilizado como fonte para uma análise específica sobre o caráter do trote no Estado de São Paulo, suas dimensões de violência que muitas vezes ocorrem, neste caso e também nas Faculdades de Medicina, dentro das repúblicas e outros ambientes fora da universidade. As violências praticadas na ESALQ em muito se aproximam da realidade dos trotes na Medicina, às vezes até com maior intensidade e demonstram como a cultura trotista se alastra para outras áreas além da medicina, se tornando quase uma prática generalizada nas universidades.

    Felipe Scalisa também retoma ao longo do livro um importante debate que reside nas bases da Faculdade de Medicina da USP: as teorias eugenistas. A FMUSP, criada no início do século XX, teve como fundador e patrono o médico Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, presidente da primeira Sociedade de Eugenia do Brasil. As raízes eugenistas da Faculdade se manifestam até hoje na lógica dos trotes e na ridicularização de estudantes negros, asiáticos ou de origem indígena. Scalisa aprofunda em detalhes a história do movimento eugenista na FMUSP, história esta que, como dito pelo próprio autor, sofre uma tentativa de apagamento por parte dos membros da universidade.

    Uma das tristes conclusões que podemos fazer a respeito dos trotes violentos nas faculdades de medicina Brasil afora é a desumanização dos ingressantes e, consequentemente, dos próprios pacientes atendidos por aqueles formados nestes ambientes. São inúmeros os casos relatados, até os dias de hoje, de violência obstétrica, humilhações, racismo, e as mais diversas violências realizadas por médicos no ambiente da saúde pública e privada por parte de profissionais com prestígio e renome. Até que ponto a desumanização desses corpos no dia a dia profissional dos hospitais e clínicas não está relacionada com a desumanização sofrida e praticada pelos estudantes ao longo da formação dos futuros médicos brasileiros? A forma como os casos foram e são acobertados por parte das universidades, associado a tradição eugenista presente na medicina brasileira, enfatiza a noção de que tratar os pacientes, colegas e calouros de forma desrespeitosa é aceitável.

    Tudo isso nos leva novamente à urgência de debatermos a cultura de trotes e suas raízes nas Faculdades de Medicina e na Universidade de São Paulo, especialmente em um momento em que, depois de tantos anos de luta, várias destas passaram a incorporar a política de cotas. Qual é a situação dos alunos cotistas nas universidades diante da tradição de preconceitos, humilhações e incentivo a teorias eugenistas que se fazem historicamente nestes espaços? A leitura do livro de Felipe Scalisa é fundamental para entendermos a forma como essa cultura de violência extrema se faz ao longo de décadas nas faculdades de medicina do Estado de São Paulo, para que possamos combatê-las e encará-las com a devida gravidade que o tema demanda.

    Ex-Deputado Estadual de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (2003 a 2015). Presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo ‘Rubens Paiva’ que realizou, dentre outras investigações, a CPI dos Trotes.

    Agradeço a colaboração efetiva da pesquisadora em História Clara Monteiro Schuartz, que auxiliou na pesquisa e escrita do presente texto.

    ALMEIDA JR., Antonio R. A. A Anatomia do Trote, Editora Hucitec, São Paulo, 2010.

    II

    Trote: muito além da banalidade

    Antonio Ribeiro de Almeida Jr.¹

    O trote universitário ocorre, literalmente, diante dos olhos dos principais pesquisadores do país e tem grande importância para a formação dos universitários. Ele é parte de um currículo oculto. Dadas essas condições, ele deveria ser muito estudado, mas o fato é que continua sendo um tema negligenciado. Personalidades acadêmicas de relevo falam dele como se tivessem profundo conhecimento e legítima autoridade sobre o assunto. Formulam apressadamente hipóteses sem se preocupar em testá-las por meio de estudos empíricos. A dura realidade é que poucas pesquisas buscaram descrever o contexto social e cultural desse fenômeno que resulta, com impressionante regularidade, em humilhações, exclusões, feridos e mortos. O trote produz espetáculos de preconceito e barbárie no interior dos campi, como se fosse simples celebração. Mesmo assim, a pesquisa permanece escassa. Os motivos dessa negligência acadêmica, certamente nada casuais ou louváveis, merecem uma atenção especial pois podem revelar aspectos da cultura universitária que ainda estão na obscuridade.

    Durante muito tempo, o trote pareceu ser brincadeira, comemoração. As violências apareciam como casos excepcionais, obras de alguns poucos desajustados e criminosos, e não como resultados, perfeitamente previsíveis e evitáveis, de práticas persistentes e de abusos sistemáticos. Felizmente, esse tempo está chegando ao fim.

    Nos últimos anos, houve algum avanço nos estudos e nas publicações sobre esses temas. Grande parte do que veio a público ainda tenta encontrar alguma forma de conciliação com o universo do trote e, por isso, carece de maior significado científico. Muitos trabalhos ainda propõem os trotes culturais, ecológicos, solidários, como solução para os problemas, permanecendo imersos na cultura trotista. Mas, ao mesmo tempo, foram realizadas algumas investigações relevantes que ampliaram o entendimento desse assunto e que apontam para a necessidade de abolir essas atividades.

    Entre esses trabalhos, destacamos os de Antônio Zuin, Silmara Conchão, Marco Akerman e Rosiane Silva. Mais antigas, as obras de Glauco Mattoso e de Paulo Denisar Vasconcelos Fraga também foram decisivas para o esclarecimento daquilo que se passa durante os trotes. Em minha avaliação, este conjunto de autores é responsável pelo que há de melhor na literatura nacional a respeito do tema. Penso poder associar a esses trabalhos os livros e artigos que escrevi individualmente ou em parceria com o Professor Oriowaldo Queda.

    Pelo fácil acesso, devemos considerar cuidadosamente as importantes investigações que têm sido realizadas em Portugal por autores como Elísio Estanque, Aníbal Farias, João Teixeira Lopes, José Pedro Silva e João Sebastião. Na literatura em inglês, encontramos um conjunto um pouco mais numeroso de obras do que em português. Como ocorre com as produções em nossa língua, são expressivas as deficiências desse material em inglês e temos ainda que considerar, entre outras coisas, as diferenças dos sistemas universitários, das práticas e do significado do trote para cada sociedade. Hank Nuwer, Donna Winslow, Lionel Tiger, Stephen Sweet, Elizabeth Allan, Susan Iverson, são alguns dos autores norte-americanos de maior envergadura.

    Há uma vastidão de temas a explorar. Os pesquisadores brasileiros poderiam, por exemplo, conhecer melhor as leis para combater o trote implementadas por outros países. Poderíamos aprender muito com as legislações estrangeiras sobre o tema. Existem leis bastante antigas como a francesa, que data de 1903, e várias propostas recentes, como tem ocorrido nos EUA.

    No final de 2015, enquanto esse modesto aprofundamento nas pesquisas estava em curso, foi instaurada a CPI da ALESP para investigar violações dos Direitos Humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo. Presidida pelo Deputado Adriano Diogo, durante quatro meses, ela coletou um conjunto abrangente de testemunhos de estudantes, professores e dirigentes de muitas faculdades e universidades paulistas. Ela revelou para o grande público um quadro assustador de abusos, comportamentos aberrantes, torturas e conivência institucional. Apesar de seu reduzido número, as pesquisas foram suficientes para que a CPI pudesse encontrar seu caminho e a hegemonia do discurso trotista foi finalmente colocada em xeque. Se considerarmos seriamente aquilo que a CPI reuniu e os resultados das melhores investigações científicas disponíveis, o trote deveria ser pura e simplesmente erradicado. Não há nada que justifique sua continuidade. Depois das conclusões apresentadas por essa CPI, a luta contra o trote ganhou força. A universidade não tem mais como tergiversar, tornou-se robusta a exigência de uma ruptura pública, inequívoca e definitiva em relação ao trote e aos grupos que o praticam. Por isso, a CPI foi um momento de transfiguração, seus resultados e questionamentos serão lembrados a cada novo incidente, a cada novo escândalo, e a universidade será levada a reconhecer que precisa mudar, tornando-se mais democrática e humana.

    Este livro Trote & Totalitarismo: um novo relato sobre a Banalidade do Mal de Felipe Scalisa Oliveira inova na investigação do comportamento dos grupos trotistas. Utilizando com habilidade singular as teorias de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, ele conseguiu revelar com exatidão muitas dinâmicas e motivações desses grupos, que compunham uma das mais importantes lacunas no conhecimento sobre o assunto. É próximo o parentesco entre o trote e as práticas dos nazi-fascistas. Por isso, as ideias de Arendt puderam ser aplicadas com tanto sucesso nesta pesquisa.

    O livro mostra, por exemplo, que as Atléticas têm um papel central nos movimentos trotistas, às custas de suas atividades propriamente esportivas. Antes de tudo, os treinos intensos são para demonstrar adesão ao grupo e não para aprimorar as habilidades corporais e mentais dos estudantes. Características desses movimentos, as competições esportivas são momentos de construção e de expressão máxima de identidades fundadas no ódio e na degradação das escolas adversárias. Homogêneas identidades coletivas construídas contra os outros e não com os outros. As competições são uma exaltação do grupo e da escola por meio de bebedeiras, hostilidades e agressões, barbarismos colocados em prática por universitários que deveriam representar o futuro da razão, do conhecimento e da capacidade para pensar. O motivo de tudo é o movimento, o trote e não o esporte. O grupo funda-se em crenças e atitudes irracionais, mas bastante eficientes para promover sua problemática coesão. Scalisa aponta com perspicácia que o movimento é capaz de gerar um ambiente que impossibilita o livre-pensar. A sociabilidade que faria florescer o pensamento é sufocada. Essa condição é exatamente o contrário daquilo que deveria ser estimulado pela universidade.

    A investigação resgatou a história da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da USP, que serviu de inspiração para muitas outras. Scalisa descreve as origens eugenistas dessa organização, suas relações com um sentimento supremacista que se instala desde o início de suas atividades. Uma pretensa superioridade que supostamente daria direitos para agir fora e além da ordem jurídica, da racionalidade e da civilidade.

    Outra inovação importante é a construção do relato a partir da perspectiva das vítimas que não se submeteram ao movimento trotista, que não se tornaram cúmplices. São as vítimas que sentiram integralmente o horror que a exposição ao trote efetivamente causa. Seus testemunhos, sua organização, sua resistência, aparecem com viva dramaticidade no texto. Por este prisma, tornou-se possível mostrar ainda o mundo paralelo em que vivem os membros do movimento, que constantemente precisam inverter os fatos para poder permanecer na ficção em que se encontram aprisionados e que desesperadamente cultivam. A participação marcante de Scalisa na CPI e sua análise dos testemunhos nela contidos abriram caminho para esta fecunda escolha metodológica.

    Acompanhando e fazendo avançar as investigações de Hannah Arendt, o autor traz, para nosso debate atual a respeito do trote, um diálogo entre Santo Agostinho e Nietzsche. Essa intersecção permite vislumbrar a relação do ódio com os movimentos totalitários e com a suspensão da vontade dos indivíduos. A primazia do ódio está na origem da perda da liberdade e é instrumentalizada pelos movimentos totalitários. Banalizado, o mal emerge como resultado de uma alienação, uma ruptura, entre o ato e aquele que age. Percebemos então, com toda a força dos procedimentos filosóficos, que o trote está longe de ser mera brincadeira, apresentando-se como um inimigo ardiloso para quem o desafia ou com ele pensa brincar. Um adversário perigoso para as gestões universitárias que acreditam controlar os movimentos trotistas e, frequentemente, subestimam seus riscos. O movimento trotista pode parecer um aliado político valioso para dirigentes conservadores, mas se constitui sempre como um poder paralelo que pode, eventualmente, capturar a própria instituição.

    É uma grande satisfação ver um pesquisador fazer uma contribuição tão valiosa para o entendimento desse difícil tema, evitado pelos principais cientistas sociais do país, com tal desenvoltura e lucidez. Isso dentro de rigorosos padrões metodológicos e mostrando uma erudição surpreendente para alguém tão jovem. Esta obra, certamente, estimulará debates, novas pesquisas, auxiliando quem deseja conhecer cientificamente o trote universitário. Para os governantes, políticos, dirigentes da universidade, professores, funcionários e estudantes que desejarem lutar contra o trote, há muito o que refletir e aprender com este excelente trabalho.

    Penso que o trote causou sofrimentos e importantes perdas para Felipe Scalisa Oliveira que, em diversos momentos, foi hostilizado por membros do movimento trotista da Faculdade de Medicina da USP. Mas, em lugar de meramente sucumbir, revestido de coragem, perseverança e distinta capacidade intelectual, o autor deste livro ousou transformar estas experiências em uma brilhante análise desses movimentos que afligem e desonram a universidade brasileira.

    Antonio Ribeiro de Almeida Jr. – Professor Titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ/USP.

    III

    Entre drama e dromos – uma leitura de Trote e Totalitarismo: um novo relato sobre a banalidade do mal

    Ari Marcelo Solon¹

    Na seção dedicada à religião da Fenomenologia do Espírito, o grande esforço de Hegel para compreender o desenrolar das raízes teológico-políticas do período, o filósofo registra a teologia política nas estátuas gregas. A experiência política dos gregos, seguindo a interpretação de Hannah Arendt, foi marcada pela ação política. Tratou-se de uma existência dramática. Entretanto, como a imagem do espírito da estátua não deixa de sugerir, uma existência também estática.

    Qual é a relação, então, entre drama e dromos? δρόμος [dromos] era a palavra através da qual os gregos se referiam a toda uma categoria de movimento, trazendo à linguagem o significado de caminho, curso, corrida, e mesmo pista de corrida. Como se pode observar na arquitetura do anfiteatro ateniense, aberto para o mar, e posicionado de modo que o fim do dia coincidisse com o fim da tragédia, tratava-se de arquitetônica voltada ao repouso, a potência de todas as coisas. Os atores apareciam como estátuas espalhadas no espaço, suas ações monumentais sendo elas próprias monumentos. Pode-se pensar aqui também na escultura de palavras de Homero, em que aquilo que emerge entre humanos no campo de batalha toma a forma estática dos deuses olímpicos. Em uma posição diametralmente oposta se encontra, por exemplo, o circus maximus romano. Seu mar de acentos submete os espectadores a uma condição passiva de modo a tornar possível a produção do movimento diante de seus olhares.

    Quando Felipe Scalisa Oliveira arrisca discutir a cinética do totalitarismo, bem como ações para resisti-lo, ações essas que hoje se confundem com sua experiência de vida, o texto mostra o acerto de Arendt ao enfatizar que todo ator é também sofredor e invariavelmente se envolve na turva relação entre drama e dromos.

    O texto de Felipe Scalisa Oliveira carrega consigo a ambivalência de uma tradição, na medida em que contesta e desafia outras tradições. Seu texto se constrói no melhor estilo do ensaio, modo escolhido por alguns dos pensadores que mais marcaram nossa Universidade. Assim o faz para rememorar eventos que Scalisa, tal qual Arendt diante dos eventos que cristalizaram os elementos do totalitarismo, preferiria ver desaparecidos no mar.

    Ao pensar na esteira de Hannah Arendt, Scalisa acaba, tal qual Arendt ela própria, por trazer o melhor da tradição dos comentários, voltada ao conteúdo real, ou se quiser, à verdade dos textos de Hannah Arendt. Em um paralelo com as leituras que a autora oferece de tantos outros, como Platão ou Hobbes, Scalisa lê Arendt sem corrimões - uma metáfora que condensa em si o conflito latente entre drama e dromos -, de modo que, eventualmente, um comentador dedicado de Hannah Arendt possa estranhar algumas afirmações, enquanto aqueles mais habituados a ter a autora como uma companhia de pensamento, ao chegar ao final do texto concordarão que seus argumentos não apenas estão em sintonia com a autora, mas avançam o pensar sobre os fenômenos que Arendt dedicou sua vida a compreender e do fenômeno que Arendt ela própria é.

    A escrita, Arendt ressalta em A Condição Humana, implica necessariamente a interrupção do pensamento. A escrita tem um quê de morte e de automático. O ensaio carrega consigo, enquanto forma, uma similitude com a existência do pensamento. O ensaio não se presta a consolidar, firmar, ou sistematizar aquilo que se pensa em termos de entendimento. O ensaio, tal qual o pensamento, busca desarranjar e desmantelar o que está posto. O ensaio desenrola esquemas ossificados, abre novas trilhas de pensamento, e coloca problemas que, de outro modo, se preferiria ignorar. Não é coincidência que o ensaio, junto com a carta, tenha sido um medium de ação crucial para um outro tipo de ator a qual Arendt se dedicou, isto é, o revolucionário, o homme de lettres. Scalisa evoca essa figura do começo ao final de seu livro. Ele o faz inclusive para imaginar um passado e futuro da universidade em paralelo, à parte da autoridade de sua tradição. Tal qual a herança contra a violência de testamentos os quais, ao fundo, descobrimos ser falsificados, Scalisa escreve ao modo daqueles que agiram vindicando para si um legado que não lhes foi transmitido. E com isso quero indicar aqui os pais fundadores, como Frederick Douglas, W. E. B. Du Bois, e Martin Luther King Jr., bem como o nosso próprio Luís Gama. Autores e atores quem souberam renovar, no sentido que empresta à palavra Bonnie Honig, de refazer a gramática da ação que traduziam diante de eventos diversos, visando outras ações. O livro de Scalisa termina como um convite para que novas ações se sigam, trazendo com sua natalidade uma reinvenção da universidade.

    Livre-docente, doutor e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP), instituição da qual é atualmente professor associado.

    I

    As Veias Abertas da Faculdade de Medicina: a Experiência Totalitária

    ¹

    A) O Fantasma

    A história de onde tirarei minhas principais hipóteses não começa com minhas experiências pessoais na semana de recepção da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ela começa com outra história, aquela que marca a entrada dos calouros na famigerada Casa de Arnaldo, quer saibam eles ou não. Trata-se da morte do calouro Edison Tsung Chi Hsueh em 22 de fevereiro de 1999. Com 22 anos, Edison perdeu a vida no primeiro dia da semana do Trote.² Com ela, foi-se também o sonho de viver a Faculdade de Medicina. Em nome da Gloriosa, como a faculdade é comumente chamada pelos alunos, morreu ou foi morto, como quis crer a promotora Eliana Passarelli junto ao delegado que investigou a morte, Marcelo Damas.

    Embora rodeado por mais de duzentos pares de olhos e ouvidos, ninguém viu ou ouviu seu sofrimento ou pedido de socorro. O corpo foi encontrado no dia 23 de fevereiro no fundo da piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz³, submerso sob uma camada de tinta guache e lama que turvava a água, onde seu par de óculos pesados foi encontrado dias depois. O laudo médico legal presumiu que a morte do rapaz tenha ocorrido entre 14 e 16 horas do dia anterior, no exato momento do chamado Batismo. Tratava-se de um ritual em que os veteranos da Casa de Arnaldo atiravam os calouros amarrados com barbantes no interior da piscina semi-olímpica com cinco metros de profundidade. Segundo seus familiares, Edison não sabia nadar, a necropsia também indicou que ele não havia ingerido bebidas alcoólicas, apesar dos relatos de outros calouros sobre a pressão por parte dos veteranos para ingestão compulsória de aguardente. Ainda assim, seu pulmão estava cheio d’água. Foi jogado na piscina e morreu por asfixia mecânica por afogamento.

    A Faculdade de Medicina decretou luto oficial e as atividades planejadas para a semana de recepção organizadas pela Comissão de Trote foram suspensas. Havia muita dúvida sobre o que ocorreu. Aparentemente, as atividades trotistas não eram de conhecimento geral da faculdade e uma comissão sindicante foi criada para investigação. A professora Maria do Patrocínio Warth colheu relatos anônimos dos alunos em forma de cartas e, nestes relatos, alguns alunos descreveram a atmosfera do trote:

    (…) ‘Acho que foi como no Carnaval, quando pessoas bebem e às vezes as festas acabam em tragédia’, ‘a última vez que vi o Edison foi no momento em que todos estavam à beira da piscina (…)’. Veteranos obrigaram uma caloura, que não sabia nadar, a entrar na piscina. A caloura avisou que não sabia nadar. Mas mesmo assim teve de entrar na piscina, coagida. Ela foi retirada depois por outros veteranos’; ‘alguns veteranos bateram nas mãos dos calouros que descansavam na borda da piscina com chinelos e com baquetas de bateria, obrigando-os a se dirigirem para o meio’; ‘(…) em certos momentos, (os calouros) se apoiavam na borda da piscina. Alguns veteranos pisavam nas mãos dos calouros, intimidando-os a permanecer na água (…)’; ‘(…) havia mais de cem pessoas na água (…)’, ‘o que deveria ter sido feito, e não ocorreu, era um aviso sobre a profundidade da piscina (que não dava pé)’; ‘talvez tenha faltado um salva-vidas numa piscina tão profunda; ‘havia muitos alunos alcoolizados, uma piscina funda e ninguém responsável para vigiar’; ‘a junção de pessoas alcoolizadas, com aquela piscina do lado, foi uma abertura para acidentes.

    No decorrer da investigação feita pela polícia foram entrevistadas 171 pessoas entre veteranos, calouros e professores. Após os relatos, os quais foram associados às cartas da comissão sindicante confiscadas pela polícia, quatro alunos veteranos despontaram como lideranças do trote, com poder de mando superior ao da comissão oficial. Segundo os relatos, eram aqueles que supostamente determinavam o ritmo da violência. Luís Eduardo Passarelli Tirico, Guilherme Novita Garcia, Frederico Carlos Jaña Neto e Ari de Azevedo Marques, os quatro foram indiciados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por homicídio doloso. A peça primeira da Ação Penal narrou:

    Apurou-se que, na data e local do fato, os agentes, que eram veteranos do curso de Medicina da Universidade de São Paulo, reunidos para o mesmo desiderato, estavam recepcionando os calouros, dentre os quais a vítima, em prática denominada ‘trote’. Consistia o ‘trote’ em ritual de atos praticados por veteranos nos calouros. Assim, após a aula inaugural ministrada no teatro da Faculdade, os calouros foram despojados de seus pertences mais perecíveis, guardados em sacos plásticos previamente etiquetados com seus nomes. Em seguida, somente com vestimenta básica e atados com barbantes pelos pulsos, em grupos, foram submetidos a atos vexatórios, com arremesso de ovos, água e farinha, tendo, ainda, seus corpos pintados e levados para a Avenida Doutor Arnaldo, tudo pelos veteranos. Rumaram, então, para a sede da aludida Associação Atlética onde, prosseguindo-se no ritual, foram levados para o bosque ali existente e lavados com água e sabão em pó pelos veteranos. Ato contínuo, foram encaminhados e acomodados na arquibancada da piscina, para a realização do ‘batismo’, o ápice do ritual. Nesse momento – e vem a individualização das condutas (…) –, os agentes Luís Eduardo Passarelli Tirico, Guilherme Novita Garcia e Frederico Carlos Jaña Neto ajustados que estavam na continuidade do ‘trote’, aguardaram o comando de Ari de Azevedo Marques Neto, também com eles conluiado, expressando o grito de guerra para, então, compelir os calouros, em número aproximado de cem, a ingressarem na água, mesmo contra as suas vontades. Uma vez dentro da piscina, os calouros foram impedidos de sair, porquanto tinham suas mãos e cabeças pisoteadas, além de receberem golpes com ‘baquetas’ de instrumentos musicais, tudo de forma a impedir que emergissem. Foram, ainda, submetidos a abuso dentro da água, em prática conhecida por ‘caldo’, assumindo, pois, os agentes, indiscutivelmente, o risco de causar o resultado morte. A vítima, caloura, submetida ao ritual de ‘trote’, foi compelida pelos agentes a ingressar na piscina, sofrendo, no interior desta, morte por asfixia mecânica por afogamento.

    O caso, chocante, de um calouro morto na faculdade mais prestigiada, tradicional e concorrida do país saiu na imprensa no mesmo dia em que o corpo foi encontrado. Especularam publicamente a causa da morte e publicaram as informações sobre a festa e o trote, além das informações iniciais trazidas pela polícia e o laudo da necropsia. Nele constava apenas leves escoriações no corpo da vítima. Nas costas de Edison, frisaram-se os escritos Santa Casa, em alusão à Santa Casa de Misericórdia, onde o estudante cursara dois semestres antes de ser aprovado na FMUSP. Edison, um rapaz tímido e esforçado, havia desistido da antiga faculdade por não querer onerar financeiramente seus pais, imigrantes pobres de Taiwan.⁶ Conforme a filosofia dos pais, podia faltar comida, mas não podia faltar estudo. Era, portanto, um sonho corresponder a tais expectativas unindo estudos com menos gastos com a universidade pública. Quando realizou o sonho, não pode vivê-lo.

    A história de Edison também foi objeto de sensibilização da imprensa, que com certa legitimidade trouxe a opinião popular a respeito da inconsequência dos estudantes considerados elite intelectual da juventude.⁷ A essa opinião da imprensa, os alunos reagiram de forma corporativa e hostil. No jornal interno dos estudantes da Faculdade de Medicina, O’Bisturi, em maio/junho de 1999, o calouro Cássio Trevizani escreveu:

    "Inicialmente, não senti os efeitos do sensacionalismo, porque ainda estava sob o choque da perda de um colega. Mais tarde, senti o quanto é fácil perder a verdade, quando comentários mal-entendidos pela imprensa geraram notícias absurdas.

    Percebi, neste ponto, a diferença entre o jornalismo sério e o sensacionalista. Todos foram vistos como suspeitos ou cúmplices omissores (inclusive eu). A manipulação da mídia afetou minha vida, a faculdade, e o pior: a apuração dos fatos.

    O massacre da imprensa tornou-se evidente com a esteriotipagem dos alunos FMUSP como uma elite alienada e inconsequente".

    O veterano George Coura, segundo-anista do curso de Medicina, por sua vez, lamentou:

    "A imagem passada pela imprensa foi extremamente negativa, de forma que, para o público, todos os participantes são culpados. Na vida acadêmica, como um todo, não houve mudanças significativas. No entanto, na vida pessoal, muitos conhecidos perguntam sobre o caso e acham que eu ou alguém da faculdade sabe o que ocorreu e que num segundo tudo vai se esclarecer. O caso deve ser bem apurado para que inocentes não paguem pela culpa de outros, isso, se houver culpados.

    O trote deste ano foi igual ao anterior e acredito que, mesmo indiretamente, não foi culpado pela morte do calouro. Se tivesse que passar pelo rito novamente, o faria sem o menor problema".

    Como se pode ver, os alunos reagiram sobretudo pela exposição da relação entre a morte do calouro e o trote. Negavam que alguém tivesse responsabilidades por essa morte, pois isso implicaria que todos os presentes ou a própria instituição seriam também responsáveis. Basicamente, o problema para uma parte expressiva dos alunos passou a ser a própria imprensa. Sentiam que a imagem pessoal de cada um, a imagem da instituição e o próprio trote, do qual não abriam mão, estavam ameaçados. As ponderações da esfera civil sobre a responsabilidade coletiva foram imediatamente interpretadas como sensacionalismo. A morte de Edison, para a maioria do corpo estudantil, não tinha relação de causa e efeito com os eventos que a precederam.

    Isso evidentemente não elimina o relato da minoria sempre existente, que não concorda com a massa, mas poucas vezes na história tem a oportunidade de se organizar e dizer o que pensa. Em outra carta coletada, um calouro escreveu:

    Fui colocado no centro de uma roda, informou, começaram a dar tapas na minha cabeça. Não contentes, mexeram nas minhas coisas, chegando a abrir a minha carteira. Perdi a alegria que estava dentro de mim por ter passado no vestibular. Estou ansioso por justiça pelo que aconteceu com o colega Edison.

    Apesar do pequeno ruído daqueles que não concordaram com o trote e achavam que, sim, havia relação entre ele e a morte de Edison, para a imprensa e para o Ministério Público a conclusão foi o chamado pacto de silêncio a respeito do incidente.⁹ Primeiro, partindo da congregação da FMUSP, que na época proibiu todos senão o diretor da faculdade, professor Irineu Tadeu Velasco, de se manifestar publicamente. Depois, pelos próprios alunos, os quais se organizaram, intencionalmente ou não, para reproduzir às autoridades oficiais a retórica do acidente, negando saber sobre qualquer informação que pudesse contribuir para reconstruir o cenário do crime. Quando intimados para depor à polícia, afirmavam em uníssono, sempre acompanhados pelo advogado Guilherme Batochio, contratado pela Atlética e pelo Centro Acadêmico para defendê-los, que nada viram e nada sabiam. Segundo o Ministério Público, defenderam a si mesmos e a seus pares em um explícito espírito de corpo dizendo que o trote não foi violento e que ninguém os obrigou a nadar ou a beber. Agiram para desresponsabilizar a comunidade coletivamente, assim como para manter as mesmas práticas trotistas sob sigilo nos anos seguintes a despeito da proibição do trote a partir daquele ano.¹⁰ A versão dada pelos estudantes na delegacia, porém, começou a ser desmontada quando a mãe de um calouro ligou três dias depois do corpo ser encontrado para o ouvidor da polícia, Benedito Domingos Mariano, e contou que seu filho e os colegas foram obrigados pelos veteranos a ingerir bebidas alcoólicas, muitos inclusive chegaram a passar mal e ainda foram ameaçados se contassem algo à polícia. O Ministério Público teve acesso a prontuários de atendimento no pronto-socorro do Hospital das Clínicas onde vários estudantes foram atendidos após a festa. Por fim, as cartas redigidas pelos calouros sobre o trote, coletados pela comissão sindicante e obtidos depois pela polícia, também desmontam a versão coletiva dada à polícia.¹¹

    Também corroborando essa hipótese do pacto, a promotora Eliana Passarelli chegou a estranhar as circunstâncias em que o corpo foi encontrado. O corpo pode ter sido retirado da piscina no dia anterior e recolocado na água antes do horário em que foi encontrado, alegou. Três fitas de vídeos em que Edison era filmado não foram encontradas na busca e apreensão realizada pela polícia. Além disso, pelo menos duas pessoas nadaram no clube depois do provável horário da morte, mas não viram o corpo. Um casal de nadadores, nadou por uma hora no fim daquela tarde e negou ter visto qualquer coisa. O rapaz chegou a perder o relógio de pulso, voltou para a piscina e mergulhou em busca do objeto, mas não viu nada. Uma aluna nas cartas narra que voltou para a piscina na tentativa de encontrar uma sapatilha perdida. Não achei nada de estranho, informou uma aluna. Outro, que não podia voltar para casa após a festa por morar muito longe, dormiu no clube, mas também não viu nada.¹² No dia seguinte pela manhã, um dos diretores da Atlética chegou a telefonar para a portaria do clube perguntando se estava tudo bem e o porteiro respondeu que até o momento não tinha visto nada estranho. São situações anormais quando se tem um cadáver dentro da Atlética, pontuou a promotora.¹³ Eliana afirma também ter sido ameaçada, inclusive de morte, na época que investigava o caso. Segundo ela, os filhos, à época com 12 e 14 anos, receberam ameaças de sequestro na escola. Ela não sabe apontar, no entanto, os autores das ameaças. Diz que nunca denunciou por considerar improcedente, embora tenha notificado o Ministério Público Estadual (MPE) e o procurador-geral do Estado da época.¹⁴

    Essa hipótese do pacto de silêncio rendeu uma música chamada Pacto 87 que seria cantada nas competições esportivas daquele ano e em anos seguintes em referência à 87ª turma do curso de Medicina, a turma do Edison.¹⁵ Tratava-se de um deboche à promotora e à imprensa que acusavam a turma de um pacto. Nesse contexto de zombaria, o aluno Frederico Carlos Jaña Neto, um dos indiciados, foi filmado em uma mesa de bar alegando Eu matei mesmo o japonês!. O gesto, minimizado por ele alegando ser apenas uma brincadeira de mau gosto, rendeu-lhe quatro dias de prisão temporária. Ele pensa que isso é uma brincadeira? Eu acho que pode ter sido um desabafo¹⁶, respondeu o delegado de polícia Marcelo Damas à época.¹⁷

    A prisão do aluno acarretou uma posição ainda mais explícita por

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