Feminismo nas Crônicas da Revista a Violeta (1916-1937)
De Laís Costa
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Feminismo nas Crônicas da Revista a Violeta (1916-1937) - Laís Costa
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
Às cuiabanas e à Zinhas (Maria de Fátima), minha mãe.
AGRADECIMENTOS
Em sua autobiografia, a feminista francesa Madeleine Pelletier afirma que [...] o ideal é uma ilusão, mas sem esta ilusão a vida não vale a pena
. Este livro também surgiu como um ideal
e agora, felizmente, transformou-se em algo real
. Tive o apoio de pessoas que compreenderam o ideal
deste trabalho e acompanharam a sua feitura
, dentre elas, agradeço a professora Marluce Scaloppe, por indicar um dos caminhos que eu poderia seguir; Yasmin Nadaf, por ter emprestado as Violetas
do seu acervo, sem as quais este trabalho não teria êxito; a professora Janaína Capobianco pela generosidade e amizade de mais de uma década, e a professora Ana Maria Marques, minha orientadora, pela paciência, leitura sempre atenta e por acompanhar e me guiar neste voo fora
da asa.
PREFÁCIO
Em 2010, há pouco mais de um ano em Cuiabá e na Universidade Federal de Mato Grosso, inscrevi um projeto de pesquisa intitulado Feminismo d’A Violeta: mulheres e narrativas feministas (Cuiabá: 1916-1946). Foi minha primeira investigação formal sobre história de Mato Grosso. Queria saber mais da história das mulheres e das primeiras manifestações públicas de feminismo no estado. Eu, vinda de Santa Catarina, sabia muito pouco, quase nada sobre Mato Grosso. Queria saber sobre o passado, se a primeira onda do feminismo
havia passado por aqui. Fazendo leituras e em conversa com colegas professores, cheguei à revista A Violeta. Visitei o Núcleo de Documentação da universidade para conhecer o acervo microfilmado das revistas e de lá fui para o Arquivo Público, onde o contato físico com as revistas de quase um século me encantou. Aquela sensação de volta ao tempo lendo aquelas revistinhas, formato magazine, fizeram-me ter a certeza de que eu havia encontrado meu objeto de pesquisa. Assim nasceu um projeto, simples, modesto, que resultou em duas orientações de graduação e um artigo final. Mas foi a repercussão que me levou até Laís Dias Souza da Costa, ou ela a mim – ou vice-versa, porque nada na vida é por acaso.
Conheci Laís em um evento de Comunicação (XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Intercom, realizado de 8 a 10 de junho de 2011, na UFMT), no qual fui convidada a participar de uma mesa redonda sobre pesquisas em periódicos. Naquela ocasião, falei mais da minha pesquisa de doutorado que do meu projeto sobre A Violeta. Depois dessa minha comunicação, fui apresentada à Laís pela professora Marluce Scaloppe, que a havia orientado no trabalho de conclusão de curso de Jornalismo. Da conversa já trocamos contato e percebi ali que havia uma intenção séria de desenvolver pesquisa com a revista A Violeta, em nível de mestrado, no Programa de Pós-graduação em História (PPGHis/UFMT). Dentre as formalidades de um primeiro contato, lembro-me de Laís ter dito li seu artigo
. Acho que houve uma empatia entre nós. No ano seguinte, Laís estava a iniciar o mestrado sob minha orientação. E foi o início também de uma amizade.
A dissertação de Laís, defendida em maio de 2014, deu origem a esse livro. Nos dois anos que a pesquisa se desenvolveu, pude aprender muito com ela e posso dizer sem pestanejar que Laís me superou em muito ao investigar a revista. Ela foi encontrar todas as Violetas
existentes nos acervos públicos de Mato Grosso (Arquivo Público do Estado, Núcleo de Documentação e História Regional da UFMT e Instituto Histórico e Geográfico de Mata Grosso); algumas revistas do acervo particular de Yasmin Nadaf; e outras no acervo da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro.
Embora haja um recorte temporal (1916-1937) e documental (crônicas) na pesquisa de Laís, ela conseguiu produzir, sem dúvida, o trabalho mais completo sobre a revista A Violeta, ao desenvolver uma temática. Tornou-se conhecedora pertinaz da fonte escolhida para pesquisa sobre feminismo e da cidadania nas crônicas.
A revista A Violeta foi o segundo periódico feminista de maior tempo em circulação, de 1916 a 1950, no Brasil. Essa já é uma informação impactante, mas nem por isso o periódico é tão conhecido fora de Mato Grosso. Um primeiro trabalho sobre a revista foi a dissertação de mestrado em Letras, de Yasmin Nadaf (USP, 1993), depois também transformado em livro, Sob o signo de uma flor, que faz também uma catalogação das revistas, levanta os temas e faz breve biografia das mulheres que escreveram para a revista. Mesmo dentro do estado, muitos historiadores e historiadoras não conhecem A Violeta, embora alguns tenham utilizado partes dela em suas pesquisas em outras áreas. Cito como exemplo a dissertação de mestrado em Educação, de Nailza Barbosa Gomes (UFMT, 2009) sobre a professora Bernardina Rich, que foi uma das editoras da revista e mulher negra.
O recorte temporal da pesquisa de Laís, até 1937, é para dar conta da efervescência do tema. Digo no singular porque feminismo, movimento pela cidadania das mulheres, é o tema principal. Convencionou-se associar essa primeira onda
às primeiras lutas por uma cidadania igualitária. O feminismo da igualdade foi marcado, sobretudo, pelo movimento sufragista que pipocou no Ocidente entre o final do século XIX e o início do XX. A primeira Constituição republicana brasileira, de 1891, não excluía claramente as mulheres das eleições, pois apenas dizia no Art. 70 – São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei
. Valendo-se dessa abertura
da Constituição, algumas mulheres recorreram à Justiça pedindo a inclusão de seus nomes na lista de eleitores, como a advogada paulistana Adalgiza Bittencourt, em 1927. O juiz, todavia, indeferiu o pedido, tendo como argumento central o fato de que a palavra cidadãos
, empregada no artigo 70 da Constituição Federal, designava os do sexo masculino. A exclusão das mulheres do pleito estava relacionada a uma questão cultural e justificada pela tradição. Acreditava-se que política não era assunto de mulher e, com base nesse pensamento, os legisladores nem se preocuparam em proibir a participação feminina, visto que as mulheres não tinham sua cidadania reconhecida.
Poder votar parece tão elementar, tão óbvio, ou até mesmo arbitrário se considerarmos que é obrigatório para todas as pessoas a partir dos 18 anos hoje. Mas nem sempre foi assim. Aliás, se pensarmos os milhares de anos da história da humanidade nos quais as mulheres não podiam votar, é uma conquista recente. Lembram-se daquele exemplo de Democracia grega que todos estudamos na escola? Mulheres não faziam parte dela. A política pública não era considerada como coisa de mulher
. O debate político emancipatório feminista até finais do o século XIX era, basicamente, sobre mulheres no mercado de trabalho e as lutas pelo voto como uma grande bandeira pela cidadania. O sufragismo entrou no século XX capitaneando a consequente obrigatoriedade de escolarização das mulheres – algo que até então era privilégio de brancas de estratos médios ou altos da sociedade. Por meio da escolaridade se poderia garantir às mulheres o ingresso nos espaços públicos. A escolarização das mulheres era e é, sem dúvida, um elemento importante de equidade e liberdade de gênero.
Ainda hoje, tantas décadas passadas do movimento pelo voto, as mulheres precisam de lei eleitoral para garantir que 30% de candidaturas nos partidos políticos sejam preenchidas por mulheres. O que não garante a eletividade, pois os partidos pouco se mobilizam para investir em campanha para eleger mulheres. Nas eleições municipais de Cuiabá, em 2016, 18.244 candidatos não ganharam nenhum voto, dentre os quais a maioria eram mulheres inscritas para disputar a eleição, ou seja, são poucas as mulheres que se candidatam e ainda bem menos as que se elegem. E quando se elegem, a luta continua para serem ouvidas e reconhecidas com respeito. Não temos dúvida de que o impeachment que retirou da presidência da República a primeira mulher eleita tinha uma motivação sexista e preconceituosa advinda das relações de gênero. As relações de poder estão, como anunciava Joan Scott em 1986, na base das relações de gênero e as diferenças de classe, de raça e de interesses, de modo geral, constroem diferentes feminismos.
A pesquisa de Laís Costa apresenta os consensos e as divergências entre as vertentes do feminismo, em A Violeta, especialmente difundidas no Brasil pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. A questão da verdade
produzida pela revista e as especificidades do fazer jornalístico
também são apresentadas, bem como são debatidas as influências do jornalismo sobre a literatura e desta sobre o primeiro, e ainda a aproximação do jornalismo com a história nas primeiras décadas do século XX.
A filial mato-grossense da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino foi inaugurada em Cuiabá, em julho de 1934. Na ocasião, veio do Rio de Janeiro para presidir a solenidade, a engenheira Nidia Moura, representando Bertha Lutz, presidente nacional da referida Federação. Chegar até Cuiabá naquela época, tendo como ponto de partida o Rio de Janeiro, demandava cerca de um mês no mínimo, se a viagem fosse efetuada em um navio a vapor, três ou quatro se a rota fosse terrestre. Havia uma distância física entre a capital e o estado de Mato Grosso, mas nem por isso os debates feministas da época foram negligenciados. A revista A Violeta, canal de publicação desses discursos, é uma prova de que houve, por parte de um grupo de mulheres, ainda que de uma elite majoritariamente branca e de alto poder aquisitivo, um movimento de identificação e aproximação com as lutas desse feminismo igualitarista, além dos debates que estavam na pauta política sobre modernização, nacionalismo e progresso. Elas não se furtavam. As redatoras mantinham estreita correspondência com essas mulheres da Federação e outras intelectuais, especialmente da literatura, a exemplo de Julia Lopes de Almeida, romancista carioca que inspirou o nome do grêmio ao qual as fundadoras da revista se filiavam. Então, mesmo no interior do Brasil, em uma época em que as distâncias se tornavam maiores devido às condições de transporte e comunicação, havia uma contemporaneidade nos engajamentos temáticos da época, as mulheres que viviam em Mato Grosso, especialmente em Cuiabá, não ficavam a reboque ou atrasadas.
Feminismo nas crônicas da revista A Violeta (1916-1937), além de instigante e indicador trabalho investigativo com periódicos, cumpre importante papel entre as historiadoras feministas: de trazer mulheres para o cenário da historiografia e dar protagonismo a elas através da valorização de suas falas.
Ana Maria Marques
Cuiabá, janeiro de 2018.
Sumário
INTRODUÇÃO
A imprensa feminina (e feminista) como ideário moderno
Os grêmios literários e o Júlia Lopes
A redefinição da alma
mato-grossense
1.1 As outras
sertanejas
1.2 A educação formal em Cuiabá
1.3 O Júlia Lopes
Factos
e cousas
circunstanciada
2.1 Pinçando acontecimentos
2.2 Embalando a informação
2.3 Bernardina e as duas Marias
2.4 As cousas
miúdas e graúdas
Para além dos factos
e cousas
3.1 Tecendo o cotidiano
3.2 Sobre a revista e o grêmio
3.3 Modelos
e representações
de mulheres
3.4 Questões trabalhistas e autonomia
3.5 Normalistas e instrução pública
3.6 Feminismo, civismo e questões políticas
3.7 Discutindo feminismo e transgredindo o sexo
Considerações finais
Referências
Referências Documentais
INTRODUÇÃO
Durante 34 anos, o dia 25 de dezembro de 1916 tornou-se uma data significativa para algumas mulheres mato-grossenses¹ por conta de outro nascimento: o do Grêmio Literário Júlia Lopes de Almeida
e de sua revista A Violeta. A cerimônia de instalação do Grêmio e a apresentação da segunda edição da revista foi realizada na noite de 24 de dezembro, no salão nobre do Palácio da Instrução, localizado no centro da cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso. Nasciam, assim, embalados por uma orquestra e durante as celebrações da natividade, o Grêmio e sua pequena revista
², envoltos por um clima em que [...] a alegria era geral, e, sem modestia confessamo-nos sinceramente contentes com a nossa estréa, tanto mais que encontramos apoio de todos, aos quaes nos dirigimos
³ (A VIOLETA, n. 3, p. 1), como descreveram as redatoras da revista posteriormente.
O lançamento d’A Violeta marcou a inserção feminina na imprensa mato-grossense e inaugurou a construção de outras representações pelas próprias mulheres que refutaram algumas características, entre elas, de serem sonhadoras
, ao idealizarem a organização da revista e da agremiação literária que estariam mais próximas de uma utopia, ou de um sonho, na visão dos que duvidavam da sua efetivação. Na primeira edição da revista, as redatoras relembram algumas críticas:
Que quer? A mulher não é e não ha de ser sempre sonhadora? O homem vive a dizer que passamos o tempo a construir castellos ficticios do que mesmo a viver... Na verdade era um sonho... De todos os lados começou a surgir-nos obstaculos, que antes permaneciam como que incubados, visto que não incluiamos nas nossas phantasias
(A VIOLETA, n. 1, p. 7).
Desde a sua criação, além dos sonhos
e das phantasias
, a revista tinha uma função clara:
A ‘A Violeta’ será o orgam do ‘Gremio Literario Julia Lopes’, organisação esta que tem por fim unico e exclusivo, o cultivo das letras femininas e patricias, abrindo as suas columnas a todas que comnosco quizerem collaborar, para o engrandecimento moral da nossa extremecida terra (A VIOLETA, n. 1, p. 1).
Esse engrandecimento
foi tema de vários artigos, crônicas e cartas publicadas na revista durante o tempo em que circulou, e estava atrelado não só à moral
e, sim, a uma reflexão mais ampla sobre as relações sociais, a hierarquização dos indivíduos na sociedade e, principalmente, sobre a questão feminina
quando a identidade e o papel
das mulheres brasileiras foram redefinidos, nas primeiras décadas do regime republicano.
Sobre esse debate, a historiadora Margareth Rago (1995) afirma que
[...] a questão feminina
no início do século, privilegiando a maneira pela qual as próprias feministas interferiram na construção da identidade feminina moderna, capaz de participar de uma esfera pública que também se definia, com o crescimento econômico e a modernização das cidades, com a industrialização e a imigração européia, e fundamentalmente com a fundação da República e da noção de cidadania (RAGO, 1995, p. 18).
A Violeta dedicou-se à mulher mato-grossense, às cuiabanas, falou quase todo o tempo a essa mulher e sobre ela
(NADAF, 1993, p. 19). Mas não se limitou a divulgar somente os acontecimentos locais. A revista reverberava os pensamentos e reflexões que faziam parte do cotidiano, e ainda revelou:
[...] o dúbio pensamento ideológico conservador e de progresso. Suas correspondências e o intercâmbio cultural, regional, nacional e com o estrangeiro, impresso em suas páginas e nos periódicos de outras localidades, testemunham-nos o alcance de suas palavras. [...] A revista do Grêmio Literário Júlia Lopes
contraria, assim, a modéstia
e a singeleza
do seu nome de batismo, tendo alçado vôos altos e conservado o seu perfume de flor que resiste à efemeridade do tempo (NADAF, 1993, p. 20).
A Violeta tornou-se o segundo periódico literário feminino com maior tempo em atividade ininterrupta no Brasil⁴ e o principal veículo de divulgação das causas femininas e feministas das mato-grossenses durante o século XX. Além disso, configurou-se como um dos periódicos mais profícuos e relevantes produzidos em Mato Grosso, até a sua extinção, em 1950, aproximadamente, após 34 anos em circulação.
Dediquei-me a compreender, neste trabalho, as estratégias e os desvios utilizados pelas redatoras da revista A Violeta, ao elegerem um periódico com características literárias como instrumento de fala
para a realização desse projeto inédito⁵ que ficou relegado aos bastidores da história da imprensa de Mato Grosso por muitos anos. Os periódicos ligados aos grêmios inauguraram um fazer jornalístico
⁶ com características relacionadas ao contexto das primeiras décadas do século XX, da chamada imprensa indígena
e estabeleceram novas formas de atuação, já que financiavam as edições impressas com a renda obtida em festas literárias, além das publicidades, assinaturas e vendas avulsas dos periódicos. Assim, os desvios, ao contrário do que possam parecer, são alternativas escolhidas pelos sertanejos
e sertanejas
[...] e proporcionam, na mata adjacente, trilha mais firme por ser menos pisada
(TAUNAY, 1991, p. 4).
Também optei caminhar por um desvio, desde 2006, quando conheci A Violeta durante uma audiência pública em comemoração ao Dia das Mulheres, na Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso (AL-MT). Presenciei a leitura de uma crônica da revista e descobri, ao final, que o texto pertencia a um periódico feminino mato-grossense. A partir disso, A Violeta tornou-se minha fonte de pesquisa e inspiração, desde as primeiras atividades durante a graduação em Jornalismo, iniciada em 2007, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A revista contribuiu, ainda, para a construção da minha identidade como jornalista, ao desvendar, em meio aos hiperlinks, leads e pirâmides invertidas, outras possibilidades, buscando uma autoria emancipativa, indo além de algumas técnicas do fazer jornalístico
.
Ao procurar informações sobre A Violeta, encontrei o livro Sob o signo de uma flor (1993)⁷, resultado da dissertação de mestrado de Yasmin