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Um novo tempo: 60 anos do golpe, 45 anos da anistia
Um novo tempo: 60 anos do golpe, 45 anos da anistia
Um novo tempo: 60 anos do golpe, 45 anos da anistia
E-book297 páginas3 horas

Um novo tempo: 60 anos do golpe, 45 anos da anistia

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Sobre este e-book

Publicado como forma de relembrar os 60 anos do golpe militar que deu início à ditadura que durou 21 anos e deixou marcas que ainda persistem entre nós, e dos 45 anos da Lei da Anistia, sancionada após ampla mobilização social, ainda durante a ditadura militar, pelo então presidente João Batista Figueiredo, Um Novo Tempo traz relatos fundamentais para lembrar e relembrar o que aconteceu entre 1964 e 2023, o que a ditadura destruiu e ainda continua tentando. As lembranças dos tempos de luta permanecem e reafirmam a importância da democracia e do Estado de Direito, sobretudo nos dias atuais.

Dividido em três seções (A esperança equilibrista, Choram Marias e Clarisses e Não há de ser inutilmente), a primeira traz uma seleção de textos publicados no livro Sobrevivi para Contar, de 1999, data em que se comemorava os 20 anos da anistia, e que aborda a relevância dos textos ainda hoje e a importância dos relatos de pessoas que tiveram suas vidas transformadas pela ditadura, um testemunho deste momento. A segunda seção reúne textos produzidos por conta dos 50 anos do golpe, em 2014, que nunca foram publicados e agora estão disponíveis para o público. Já no terceiro bloco foram contempladas análises e olhares históricos desses 60 anos do golpe e dos 45 anos da anistia.

Como afirmam os organizadores, "a obra, mais do que uma denúncia, é um instrumento de conscientização para os mais jovens que não viveram este período sombrio de nossa história, onde milhares de cidadãos foram perseguidos, torturados e mortos".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de abr. de 2024
ISBN9786561280112
Um novo tempo: 60 anos do golpe, 45 anos da anistia

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    Pré-visualização do livro

    Um novo tempo - Daniel Souza

    CapaFolhaRosto_AutoresFolhaRosto_TituloFolhaRosto_Logo

    EPÍGRAFE

    DECRETADA

    A ANISTIA

    AMPLA, GERAL

    E IRRESTRITA

    DECRETO Nº 110

    Considerando que o ato de anistia realiza, neste momento, uma aspiração nacional, decreta:

    ART. 1º — Estão anistiados todos os assinantes do AI-5, lei nº 477, lei Falcão e pacote de abril.

    ART. 2º — Estão anistiados os participantes dos cálculos do salário mínimo e o responsável pela falsificação das estatísticas que causou a perda de 34.1% nos reajustes salariais de 1973.

    ART. 3º — Estão anistiados os responsáveis pela Transamazônica, Projeto Jari, financiamento para Luftalla, Ferrovia do Aço, Ponte Rio-Niterói, e Projeto Minerva (argh!).

    ART. 4º — São anistiados todos os que assinaram a cassação de mandatos de representantes eleitos diretamente pelo povo.

    ART. 5º — Anistiados estão também os responsáveis pelo confisco compulsório para viagens ao exterior.

    ART. 6º — Anistiem-se os responsáveis pela proibição de livros, filmes, música, peças teatrais e balés. Anistiados ficam ainda os censores de jornais, rádios e TVs.

    ART. 7º — Anistia para quem concedeu um canal de TV para Senor Abravanel/Silvio Santos, para quem nomeou o atual reitor da Universidade de Brasília e muita anistia para os que nomearam indiretos, como Leon Perez, Cortez Pereira, Marcos Tamoyo...

    ART. 8º — Ficam anistiados os que assinaram os contratos de risco.

    ART. 9º — São anistiados os revogadores dos habeas corpus, os que permitiram prisões sem processos, processos sem raízes e interrogatórios sem carinho.

    ART. 10º — Anistia sim, claro, para os pobres de espírito: Zezim Bonifácil, Deduardo Galil, Dinarte Mariz, Sinval Boaventura, Erasmo Dias, Corção, Amoral Nato, Moura Cavalcanti, Francelino, Dom Sigaud, Eu G.nio Salles e, especialmente, Dom Sherer.

    ART. 11º — Considerem-se anistiados os responsáveis pelas campanhas: Ouro para o bem do Brasil, Ninguém segura este país, Dr. Prevenildo, Sugismundo, Exportar é o que importa, Pechinche, Mexa-se, Ame-o ou deixe-o. Anistia completa para os autores intelectuais da Lei Pelé: O povo não está preparado para votar.

    ART. 12º — Bem-Anistiados os criadores do FGTS, os interventores dos sindicatos, os proibidores da lei de greve e os extintores do PTB.

    ART. 13º — Anistia gradual e lenta para os autores, executores e beneficiários do programa: Vamos-esperar-o-bolo-crescer-para-depois-repartir-tá?.

    ART. 14º — Anistia, eu disse ANISTIA, para os responsáveis pela dívida externa de 36 bilhões de dólares. (Hein? Hein? Hein?).

    PARÁGRAFO ÚNICO — Enfim, compreende esta anistia qualquer outro crime praticado contra o povo até a presente data.

    Revogam-se os revanchismos em contrário.

    Brasil, 28 de fevereiro de 1978,

    156º aniversário da Independência

    e 89º da República.

    Assinado,

    POVO BRASILEIRO

    HENFIL

    D. MARIA

    (seguem-se 110 milhões de assinaturas)

    SUMÁRIO

    [ CAPA ]

    [ FOLHA DE ROSTO ]

    [ EPÍGRAFE ]

    [ APRESENTAÇÃO ]

    1979  |  A ESPERANÇA EQUILIBRISTA

    20 ANOS DA ANISTIA

    A volta do irmão do Henfil

    HERBERT JOSÉ DE SOUZA (BETINHO)

    Comemorar o quê?

    ALCIONE ARAÚJO

    O céu é das elites

    ARTHUR JOSÉ POERNER

    Ditadura, anistia e democracia

    BETE MENDES

    Memórias da resistência

    HELONEIDA STUDART

    Prisão em dose dupla

    FREI BETTO

    Uma longa viagem

    IRLES DE CARVALHO

    Movimento feminino pela anistia e liberdade democrática

    REGINA SODRÉ

    Zuzu

    ROSE MARIE MURARO

    2014  |  CHORAM MARIAS E CLARISSES

    50 ANOS DO GOLPE

    Memórias partidas, intensas e pouco faladas

    CECÍLIA COIMBRA

    O último golpe?

    CHICO ALENCAR

    Ditadura: as mortes contabilizadas e as não contabilizadas

    HILDEGARD ANGEL

    Fragmentos

    JAIME WALLWITZ CARDOSO

    Memórias de um viado vermelho que se apaixonou pelo Brasil

    JAMES N. GREEN

    O Brasil que nós perdemos: 50 anos de um sonho

    JOÃO VICENTE GOULART

    Reparação psicológica: o testemunho como lugar de enunciação ética

    VERA VITAL BRASIL

    2024  |  NÃO HÁ DE SER INUTILMENTE

    60 ANOS DO GOLPE E 45 ANOS DA ANISTIA

    Lembrar para que nunca mais aconteça!

    DULCE PANDOLFI

    Lugares imaginários

    JESSIE JANE VIEIRA DE SOUSA

    A luta contra os impactos da ditadura militar no ativismo brasileiro

    ATHAYDE MOTTA

    De regresso

    MARILIA GUIMARÃES

    Uma professora não heroica

    HELOISA BUARQUE DE HOLANDA

    Os que falaram diante daqueles tribunais

    MIRIAM LEITÃO

    Fragmentos de um mosaico

    ITAMAR SILVA

    O primeiro documento oficial a denunciar tortura na ditadura brasileira

    JUREMA WERNECK

    A ditadura militar e a aposta na falsa democracia racial

    YNAÊ LOPES DOS SANTOS

    A conciliação que nos trouxe até aqui

    LUCAS PEDRETTI

    [ SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES ]

    [ CRÉDITOS ]

    APRESENTAÇÃO

    O BÊBADO E A EQUILIBRISTA, canção de João Bosco e Aldir Blanc, na voz de uma das mais brilhantes cantoras da música popular brasileira, Elis Regina, pedia pela volta do irmão do cartunista Henfil, o sociólogo e ativista político Herbert José de Souza, o Betinho, que por essa época se encontrava exilado no México.

    Movido pela beleza e a emoção que essa música ainda hoje nos causa, ela se tornou o hino da anistia, e antecipava o sonho de um dia reencontrarmos com todos os brasileiros e brasileiras que saíram num rabo de foguete, para não serem presos, mortos ou torturados. Mas para muitas Marias e Clarisses, que choravam a morte ou o desaparecimento de seus filhos e maridos, esse reencontro não seria mais possível. Restaria para elas a certeza de que a justiça seja feita e, principalmente, suas histórias nunca fossem esquecidas.

    Com a Comissão da Anistia, instalada em 2002, podemos dizer que o país viveu um novo tempo, aonde mais de 70 mil pessoas foram anistiadas e reconhecidas como vítimas, várias delas por meio de Caravanas da Anistia percorrendo todo o país. Comissões da Verdade, nacional e estaduais, realizaram uma ampla investigação, não apenas dos crimes, como também dos mandantes e executores.

    Numa democracia em construção como a brasileira, bastaram alguns anos para que um retrocesso civilizatório se abatesse sobre o país, colocando na presidência um militar facínora, defensor do golpe militar e seus crimes. Como todo ditador, seu principal legado foi rasgar a Constituição brasileira, destruindo políticas públicas e mergulhando o país numa espiral descendente de caos em todas as áreas.

    Em vez de tanques e soldados, a arma usada a partir de 2018 foi a desinformação em massa, distribuída através de fake news para milhões de brasileiros, polarizando opiniões, esfriando corações e lobotomizando mentes. E foi assim que no dia 8 de janeiro de 2023, milhares de patriotas tentaram, mais uma vez, um golpe de estado que, por mais ridícula e patética tenha sido em termos práticos, políticos e simbólicos, foram de uma gravidade atroz, pois a eleição de 2022 foi vencida por um fio de 2 milhões de votos. Apenas 2% da população nos salvou da barbárie.

    Neste ano que o golpe civil/militar brasileiro completa 60 anos, é fundamental lembrar e relembrar o que aconteceu entre 1964 e 2023, e o que a ditadura destruiu, e continua tentando. Este livro, Um novo tempo, não é só uma denúncia, mas sobretudo um instrumento de conscientização para os mais jovens que não viveram esse período sombrio da nossa história aonde milhares de cidadãos foram perseguidos, torturados e mortos.

    Dividido em três seções, a primeira é uma seleção de textos publicados no livro, também organizado por nós, em 1999, data em que se comemorava os 20 anos da anistia. A seleção levou em conta a relevância dos textos ainda hoje e a importância dos relatos de pessoas que tiveram suas vidas transformadas pela ditadura, um testemunho deste momento. A segunda seção reúne textos produzidos por conta dos 50 anos do golpe, em 2014, que nunca foram publicados; já no terceiro bloco de textos contemplamos análises e olhares históricos desses 60 anos do golpe e dos 45 anos da anistia.

    Ainda existe muito a ser feito, principalmente se compararmos com países vizinhos, como a Argentina e o Chile, que já condenaram os responsáveis pelos crimes contra a humanidade das suas ditaduras. A nossa pequena contribuição é que Um novo tempo reafirme a importância da democracia e o estado de direito, principalmente para aqueles que já pediram ou ainda hoje pedem a volta da ditadura militar no país.

    DANIEL SOUZA

    GYLMAR CHAVES

    PAULO ABRÃO

    1979

    A ESPERANÇA

    EQUILIBRISTA

    20 ANOS DA ANISTIA

    Caía a tarde feito um viaduto

    E o bêbado trajando luto

    Me lembrou Carlitos.

    A lua, tal qual a dona do bordel,

    Pedia a cada estrela fria

    Um brilho de aluguel.

    E nuvens!

    Lá no mata-borrão do céu,

    Chupavam manchas torturadas

    Que sufoco louco

    Um bêbado com chapéu-coco

    Fazia irreverências mil

    Pra noite do Brasil, meu Brasil.

    Que sonha com a volta do irmão do Henfil

    Com tanta gente que partiu

    Num rabo de foguete.

    Chora a nossa pátria mãe gentil

    Choram Marias e Clarisses

    No solo do Brasil.

    Mas sei que uma dor assim pungente

    Não há de ser inutilmente

    A esperança dança

    na corda bamba de sombrinha

    Em cada passo dessa linha

    Pode se machucar.

    Azar! A esperança equilibrista

    Sabe que o show de todo artista

    Tem que continuar.

    O BÊBADO E A EQUILIBRISTA

    LETRA DE ALDIR BLANC

    A VOLTA DO IRMÃO

    DO HENFIL[1]

    HERBERT JOSÉ DE SOUZA

    (BETINHO)

    A ANISTIA ME SURPREENDEU. Uma enorme surpresa, mas também um equívoco do cientista político que eu era. Certo de que a Anistia viria três anos mais tarde, eu havia organizado minha vida na perspectiva de concluir a tese de doutorado no México, antes de uma possível volta ao Brasil. A Anistia veio me procurar mais cedo do que o previsto. Um alegre equívoco, diga-se de passagem.

    Após seu anúncio, em setembro de 1979, eu estava convencido: deveria voltar. Primeiro, em razão do meu engajamento político. Segundo, porque Henfil, em seu trabalho de cartunista, ligara meu nome à luta pela anistia e pela volta dos exilados. Sua campanha me converteu em símbolo daquela luta, principalmente graças à música interpretada por Elis Regina, O bêbado e a equilibrista, composta por João Bosco e escrita por Aldir Blanc, que falava na volta do irmão do Henfil, a minha volta. Todas as charges e desenhos publicados por meu irmão nos jornais brasileiros estavam acompanhados dessa interrogação: quando meu irmão vai voltar?. Eu me tornei o símbolo do conjunto dos exilados.

    Aquela canção me forçou a voltar. A primeira vez que a ouvi, estava no Canadá. Segundo Maria, minha companheira, foi no México. Pouco importa: lembro-me sobretudo da impressão que senti quando a escutei pelo telefone. Henfil me ligou e pediu para que eu a ouvisse. Alguns segundos de silêncio, a música, depois as palavras, lindas, ficaram gravadas em minha memória. Elas não se referiam diretamente ao exílio: a música fazia numerosas referências simbólicas. De repente, apareceram alguns versos — meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil —, e, então, percebi do que se tratava. Uma emoção muito grande tomou conta de mim.

    Durante a ditadura, a música popular teve um papel político importante. E, no caminho de tantas outras canções, O bêbado e a equilibrista se tornou o hino da resistência. Aquelas poucas palavras me fizeram entrar para a história do Brasil.

    No momento da Anistia não tive mais dúvida: a hora de voltar estava próxima.

    Graças ao exílio, pude expor as poderosas raízes da minha nação e cultura. Senti, profundamente, a dor de ser estrangeiro. Fora da terra natal, não escapava da condição de ser estrangeiro, apesar de todo o amor que meus anfitriões manifestavam por mim. Eu era um estrangeiro no México, no Chile, em Cuba, no Canadá... um sentimento desagradável. A terra natal encerra uma força telúrica e única, que alguns exprimem assim: Quando morrer, quero ser enterrado na terra que me viu nascer, no quintal da casa da minha avó....

    De tempos em tempos, no exílio, uma angústia me sufocava: aquela de jamais rever o Brasil. Nunca, jamais, dizia-me baixinho a saudade.

    NOTA

    1. Extraído de Revolução da minha geração: depoimento a François Bougon. São Paulo: Moderna, 1996.

    COMEMORAR

    O QUÊ?

    ALCIONE ARAÚJO

    RECONHEÇA-SE, DESDE JÁ, na luta pela anistia, um momento histórico de grandeza humana e maturidade política no âmbito dos movimentos progressistas. Por uma causa humanitária, cívica e política, foram superados os históricos obstáculos das nuances ideológicas e do facciosismo. Conservadores legalistas deram as mãos a radicais incendiários. Ainda sob o tacão ameaçador e implacável da ditadura militar, o movimento pela anistia soube se articular em vários níveis, nacionais e internacionais. A ideia se alastrou pela população e contagiou a consciência nacional, que se convenceu da necessidade de aplacar os ânimos, cicatrizar feridas e criar um ambiente favorável à reconciliação. Todo esse empenho além da contribuição pedagógica do trabalho ecumênico e suprapartidário proporcionou, se não uma reconciliação, uma ambiência de tolerância e respeito, onde os antagonismos se esgotavam sem necessidade de recorrer às arbitrariedades anteriores. E todo esse empenho culminou na aprovação, pelo Congresso Nacional, e posterior promulgação pelo Presidente da República, da Lei da Anistia — àquela altura uma demanda de quase toda a nação. É inegável, indiscutível, a importância desse fato. É, pois, justo que se diga que a Anistia foi um marco dos mais importantes. Um dos pilares do processo de reconstrução democrática.

    Agora, vinte anos depois, afirma-se que é necessário comemorar, relembrar e marcar a luta. A intenção da celebração é de que os valores democráticos relacionados à luta pela anistia sejam preservados, que a democracia seja valorizada, e as novas gerações conheçam um pouco da nossa história política.

    A anistia é um ato do poder governante, considerando que, por razões públicas, não devem ser punidos todos aqueles que cometeram determinados tipos de crimes, em geral com propósitos políticos. Anistiados são impuníveis, não são inimputáveis. A anistia suspende a pena, mas não tem como anular os crimes. Os ditos crimes políticos — como é óbvio — não deixaram de existir, nem foram esquecidos. Seus autores não foram absolvidos. Apenas não foram castigados. Aceitar a anistia significa, pois, admitir que se cometeram delitos, assim como reconhecer a legitimidade do poder governante em promulgá-la.

    De sua parte, a ditadura militar, diante do clamor da anistia, anteviu os benefícios que alcançariam suas próprias hostes. Na barbárie instalada, a Constituição não valia nada. Direitos individuais foram suspensos. Mandatos cassados. Carreiras interrompidas ou prejudicadas. Empregos subtraídos. Cidadãos se exauriam na amargura do exílio. Vidas eram consumidas nos porões da tortura, em falsas fugas ou falsos tiroteios. Os responsáveis, que deveriam ser punidos, seriam os maiores beneficiados pela mesma lei. Criminosos integrantes do aparelho de Estado, remunerados com dinheiro público, agindo em instalações do Estado e em nome do próprio Estado para perpetrarem suas atrocidades, seriam igualmente anistiados, e teriam garantidos seus cargos, salários, proteção individual, promoções, privilégios etc.

    O regime militar — o poder de fato, mas não de direito — se considerava em guerra contra o terrorismo. Entendia que seus homens, ao contrário de cometerem crimes, defendiam a pátria. Seus adversários consideravam-se numa luta de libertação nacional, contra a ditadura e pelas reformas sociais indispensáveis ao povo brasileiro. Luta revolucionária, ética revolucionária. A incomensurável desproporção entre os contendores opunha à barbárie dos mais fortes ao desassombro dos mais fracos. Não era uma guerra: era um massacre.

    Promulgada, a anistia foi recebida com festa e percebida como um gesto de reconciliação. Frustrados os sonhos, os ideais abalados, as convicções amoldadas ao novo quadro político nacional e internacional, exaustos de dolorosas autocríticas e extenuantes revisões, os beneficiados curvaram-se à evidência e aceitaram sem discussão. No clima de desespero e revolta pelas enormes perdas individuais, sociais e políticas de desterrados, condenados, torturados, mutilados, perseguidos, cassados, desempregados etc. não havia nada mais sensato: voltar e recomeçar. A grande maioria, do nada.

    Passados vinte anos, com os acontecimentos revisitados e reavaliados, agora como fatos históricos, os ressentimentos cicatrizados, a reflexão ponderada pelo afastamento, instaurada a lucidez indispensável à análise, o que, afinal, se estaria comemorando com vinte anos de anistia? Um momento histórico da união quase unânime dos brasileiros por uma causa? A vitória dessa causa? O surgimento de um dos pilares de reconstrução democrática? A posterior tolerância entre o regime militar e os anistiados?

    Nesse episódio não houve equanimidade. Um lado foi anistiado. O outro protegido e promovido. Vinte anos depois, ainda não há muito a comemorar. O melhor é deixar que a própria conquista da democracia nos conforte e console, vários anistiados estão no poder; deveriam garantir a democracia tornando-a social, e não apenas representativa. E que o tempo cubra de pó esses fatos e personagens. Pelo menos até que a História nos revele o que comemorar.

    O CÉU

    É DAS ELITES

    ARTHUR JOSÉ POERNER

    O GOLPE MILITAR DE 64 me pegou no início da carreira jornalística, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Embora novato na profissão e na cultura política, egresso da formação alienante para o oficialato da Marinha de Guerra, recebi-o como irrupção do argumento dos tanques, brandido pelos que sempre dominaram o país e não se dispunham a abrir mão de qualquer fração dos seus privilégios, no debate que inflamava a nação em torno das reformas de base propostas pelo presidente João Goulart. Fui contra, desde o primeiro minuto, como já fora, em 1961, ainda menos politizado, contra as tentativas empreendidas, por setores militares golpistas, para impedir a posse de Jango, e, no plano internacional, pelos Estados Unidos, para esmagar a Revolução Cubana.

    Para mim, que havia sido, no limiar daquela década, um rebelde sem causa concreta, fã de James Dean e simpatizante da juventude transviada, o golpe significou, de imediato, mais um salto à frente na conscientização da realidade. Inclusive porque as medidas inaugurais do regime implantado em 1º de abril não deixaram margem para dúvidas: contra a reforma agrária no campo, o tabelamento dos aluguéis nas cidades e a limitação das remessas de lucros ao exterior, assim como — diante de imposição norte-americana — pelo rompimento das relações diplomáticas com Cuba.

    A resistência

    O Correio da Manhã, que apoiara a deposição de Goulart com três

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