Linguagem escrita e alfabetização na era digital
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Linguagem escrita e alfabetização na era digital - Dagoberto Buim Arena
Os atos culturais de ler e de escrever
Nestas duas primeiras décadas do século XXI, parece amplamente aceita a tendência na área de ensino e de aprendizagem da linguagem escrita que situa o núcleo desse processo no âmbito dos gêneros, ora considerados como gêneros textuais, ora como gêneros do discurso, ora como gêneros da palavra. Faço referência à expressão gênero da palavra (genres de la parole), menos usada no Brasil, porque a tradução da expressão gêneros do discurso a partir de obras russas foi submetida a reparos na França a partir de 2007. Permito-me registrar o trecho em que Sériot (2007, p. 40) expõe o tema para debate, ao comentar as traduções de Bakhtin para o inglês e para a primeira edição de Marxismo e filosofia da linguagem para o francês em 1977:
Ora, Bakhtin não falou evidentemente de gêneros do discurso
; levando-se em conta que ele escreveu rečevye žanry
, é dessas palavras que é preciso partir, e as interrogar de início, antes de toda discussão sobre as diferentes exegeses. Se se tinha traduzido rečevye žanry por registros da palavra, é sem dúvida uma outra direção que teria sido seguida, uma outra afiliação de termos e de conceitos a que teriam sido feitas referências. Far-se-á aqui a escolha experimental de traduzir por gêneros da palavra
e de estudar suas consequências interpretativas da escolha dessa tradução.
Não será essa divergência o objeto de discussão, já que empregarei a expressão gênero do enunciado. Insiro a citação apenas para apontar que a expressão não é consensual. O núcleo da discussão aqui deverá se situar em torno da eleição do objeto fundamental que ocuparia o lugar central no processo de aprendizagem desse instrumento histórico, cultural e social chamado linguagem escrita. O problema se aprofunda um pouco mais quando se indaga a respeito do lugar que o homem ocupa na eleição desse objeto, isto é, se dele se afasta para melhor o ensinar ou se com ele se funde para o aprendiz compreendê-lo como um instrumento que ganha valor e importância exatamente por ter vida nas relações entre os homens. Para iniciar as discussões em torno desta temática, recorro às críticas que Coutinho (2010) fazia, já na década de 1970, ao avanço dos princípios estruturalistas no terreno da linguística que, pela inércia própria de matrizes de estudos gramaticais, descritivos ou normativos, influenciaram a nomenclatura e o núcleo do objeto a ser ensinado em escolas — a Comunicação e Expressão — e a delinear os objetos principais do ensino na área da linguagem, fundamentados na teoria da comunicação.
Coutinho (2010) analisa o movimento das ciências humanas sob dois aspectos, um que considera como filosofia do progresso e outro como filosofia da decadência. Os debates entre esses dois movimentos culminam no desenvolvimento de estratégias, pouco perceptíveis ao olhar ingênuo, desencadeadas pela filosofia da decadência que se mascara como filosofia do progresso. Precisamente, ele vê o nascimento do estruturalismo na linguística e seu desdobramento hegemônico para as demais áreas do conhecimento como a tentativa de construir o modelo supremo de inteligibilidade dos fatos sociais. Ela funda, como define ele, [...] um método objetivo, racionalista, de análise social
(Coutinho, 2010, p. 78). Sua crítica se estende ao ponto de partida, ao pensamento de Saussure (o primeiro Saussure) que ele localiza no que chama de miséria da razão, isto é, no campo da ciência formal, objetiva, descritiva, porque o linguista genebrino, entre langue e parole, opta por estudar a langue, uma vez que reconhece a prevalência da estabilidade da langue sobre a instabilidade da parole.
Coutinho (2010), na esteira dos princípios marxianos, entende que, para Marx, a ciência fundamental é a economia, mas, como contraponto a essa visão, os estruturalistas elegem, para esse mesmo patamar, a linguística. Coutinho, todavia, em seu escrito publicado inicialmente nos anos 1970, não teve encontro com as obras de autores russos que fizeram parte de um curto e efêmero círculo, considerado por alguns pesquisadores como o Círculo de Bakhtin.
Volóchinov (1895-1936), Medvedev (1891-1938) e Bakhtin (1895-1975) viveram o período pós-revolucionário na Rússia, o mesmo em que viveu o jovem formalista e posteriormente ícone do estruturalismo no ocidente, Roman Jakobson (1896-1982). Viveram o mesmo período de revolução nos objetos de pesquisa, nas artes, nas metodologias investigativas, nas concepções de sociedade e nos princípios epistemológicos, alimentados pelas ondas marxianas de natureza política e econômica. Entretanto, os membros do círculo, como os formalistas, viram nos estudos de linguagem a referência fundamental para a compreensão das relações humanas. Houve aí uma convergência, mas, no seu interior, também uma divergência. Coutinho apenas observou a evolução do movimento estruturalista nascido na Suíça, sem anotar a sua entrada na Rússia e os debates que lá ocorreram, tanto em Petrogrado, onde moraram e estudaram os integrantes do círculo bakhtiniano, quanto em Moscou, onde vivera Jakobson, que depois se deslocaria para Praga e, posteriormente, para os EUA. Ali, naqueles tempos, apesar de terem escolhido a linguagem, de modo geral, e eu incluiria a linguagem escrita, de modo específico, como alavanca de um novo homem, os dois grupos tomaram decisões divergentes. Enquanto os estruturalistas, na esteira do pensamento saussuriano, elegiam a linguística como sua ciência, e a língua estável e sincrônica como seu objeto, Volóchinov, Medvedev e Bakhtin escolhiam a filosofia da linguagem como referência, especificamente o enunciado, a instabilidade, o inconcluso, a palavra na vida, o ato humano de linguagem como seu objeto. Sobre essas escolhas, assim se manifesta Faraco (2009, p. 29):
Destacamos anteriormente que a questão da linguagem marca de modo bastante peculiar a contribuição do Círculo de Bakhtin para o pensamento contemporâneo. A entrada dessa questão nas preocupações do Círculo, por sua vez, foi responsável por dar novas direções ao desenvolvimento de seu próprio pensamento. Pode-se dizer, nesse sentido, que ocorre, nos debates intelectuais, uma espécie de virada linguística por volta de 1925/1926.
A tendência em dar destaque aos estudos de linguagem, portanto, não foi própria dos afiliados à filosofia da linguagem, já que fora uma vaga que invadira as universidades e o pensamento dos intelectuais no movimento russo pós-revolucionário, coincidente com o fim do período leninista e a ascensão do stalinista. Especificamente, no que concerne a Volóchinov, a Medvedev e a Bakhtin, essa tomada de decisão deu início a escritos que se tornariam nucleares para a compreensão do seu pensamento, e como pilares dos princípios teóricos que influenciam a linguagem escrita como objeto de pesquisa e de ensino em áreas permeáveis a esse debate. Faraco (2009, p. 30) aponta alguns desses princípios, nascidos ali, naquele tempo:
Há, portanto, por volta de 1925/1926, uma confluência do Círculo para a temática da linguagem. Nela se casarão as preocupações nucleares de Bakhtin (a temática axiológica, a questão do evento único do Ser e a relação eu/outro), o interesse acadêmico de Voloshínov (que se dedicava, nessa época, a estudos linguísticos) e o projeto deste e de Medvedev de elaborar um método sociológico para os estudos de linguagem, da literatura e das manifestações da chamada cultura imaterial como um todo.
Apesar da coincidência dos estudos, motivada pelas discussões da época, há um largo distanciamento na escolha dos objetos. Volóchinov, em Marxismo e filosofia da linguagem (2010; 2017), faz severas críticas às ideias de Saussure, situadas por ele como representante do objetivismo abstrato, e às de Humboldt (1767-1835) e às de Vossler (1872-1949), considerados representantes do subjetivismo idealista. Entretanto, leitores críticos de sua obra afirmam que não há razão para essas críticas, porque os objetos são distintos; enquanto Saussure escolhe a língua, Volóchinov escolhe os atos de linguagem. Bakhtin, nas palavras de Faraco, ao optar pela translinguística — que daria origem a sua inclinação para a filosofia da linguagem —, não desconsidera o outro objeto de pesquisa, a língua, eleito pela linguística. Cada uma escolhe seu objeto, mas resta decidir qual deles pode contribuir de maneira profunda e específica para o ensino dos atos de linguagem escrita, históricos, culturais e sociais, a serem ensinados de uma geração para a outra. A respeito das observações de Bakhtin, assim se manifesta Faraco (2009, p. 104 apud Bakhtin, 1984, p.181, grifos do autor):
Embora propostas como duas disciplinas distintas, Bakhtin as entende em permanente correlação, o que o leva a dizer também que seus limites, na prática, são violados com muita frequência [...] Bakhtin tinha, portanto, clareza de que o objeto de seu interesse, grosso modo apresentado como discurso, isto é, a língua em sua totalidade concreta e viva, e não a língua como o objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração totalmente legítima e necessária de vários aspectos da vida concreta da palavra [slovo].
A crítica, contudo, que Coutinho (2010) faz a Saussure é por ele considerar somente o homogêneo e o estável como passíveis de apreensão racional. Desqualifica, deste modo, o contraditório, o movimento cultural, social e histórico da linguagem que rola pelas bocas e pelos dedos dos homens. Para Coutinho, o estruturalismo empobrece o objeto e o enquadra em um conceito de manipulação, porque [...] a manipulação decompõe o objeto em unidades simples imediatamente utilizáveis e combina tais elementos isolados em função de uma finalidade assumida heteronomamente, ou seja, sem o questionamento de seu valor racional e de suas implicações humanas
(Coutinho, 2010, p. 91). O reparo ao estruturalismo na linguística feito por Coutinho encontra, na filosofia da linguagem de Volóchinov, de Medvedev e de Bakhtin, as possibilidades de considerar os estudos de linguagem, situados na superestrutura, como fundamentais para compreender as relações humanas no âmbito da infraestrutura, da produção, da manipulação e do discurso como instrumento de