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A Professora
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E-book423 páginas5 horas

A Professora

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Sobre este e-book

Em seu leito de morte, uma solitária e insuspeita idosa, narra sua trajetória como professora ginasial nos anos 1970. Vida comum, interiorana, nada de excepcional, exceto por um detalhe, um pecado escondido a sete chaves, um crime que lhe corrói o espírito em seus dias finais: a pedofilia, sua prática deliberada por anos a fio. Narrada em tom confessional, pontilhada por uma ourivesaria poética e tendo como pano de fundo a metade final da ditadura militar e a Nova República (1975-1989), a obra oferece outras leituras paralelas, para além do erotismo obsceno, nas quais se esmiúçam não apenas o tema central, mas o próprio labor literário e o estranho amor aos livros, os anos de chumbo e a lenta redemocratização do país, além da solidão de seus personagens debaixo de uma atmosfera sombria, mesmo sob o colorido ruidoso da época. intrincado jogo de avanços e recuos, ainda que aparentemente linear, em que autora pinta em sfumato o retrato de sua geração. Um tempo que há muito se foi, mas que jamais pode ser esquecido.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de mai. de 2024
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    A Professora - Lina Lorenzini

    Lina Lorenzini

    A PROFESSORA

    Memórias de uma transgeracional

    – 2ª edição - 2024 –
    Copyright © 2021 by Lina Lorenzini
    Todos os direitos reservados.
    Proibida toda e qualquer forma de reprodução sem a permissão expressa do autor.
    Apoio: Clube de Autores

    (https://clubedeautores.com.br/)

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Romances : Literatura brasileira B869.3

    Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

    Para Débora

    (* 02.03.1962

    † 17.04.1988)

    ...O que vocês orgulhosamente chamam ética nada mais é que o andar do rebanho, contra as suas inclinações mais íntimas e profundas. E é por isso que de tempos em tempos vocês tem ataques de selvageria, enquanto eu permaneço calmo e composto todo o tempo, mesmo diante do mais egrégio insulto. (...) eu escapei dos demônios interiores que vos atormentam.

    (Theodore Darlymple, Tanto por Fazer)

    Magnanimous of bird

    By boy descried,

    To sing unto the stone

    Of which it died.

    (Emily Dickinson)

    "Está em vossas mãos ver numa poça d’água a lama do fundo

    ou a imagem do céu lá no alto".

    (John Ruskin)

    SUMÁRIO

    INTERIOR

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Capítulo 30

    CAPITAL

    Capítulo 31

    Capítulo 32

    Capítulo 33

    Capítulo 34

    Capítulo 35

    Capítulo 36

    Capítulo 37

    Capítulo 38

    Capítulo 39

    Capítulo 40

    Capítulo 41

    Capítulo 42

    Capítulo 43

    Capítulo 44

    Capítulo 45

    EXTERIOR

    Capítulo 46

    ALGURES

    Capítulo 47

    Capítulo 48

    Capítulo 49

    Capítulo 50

    Capítulo 51

    Capítulo 52

    Capítulo 53

    Capítulo 54

    Capítulo 55

    Capítulo 56

    Capítulo 57

    Capítulo 58

    Capítulo 59

    Capítulo 60

    Capítulo 61

    LANCE FINAL

    INTERIOR

    Capítulo 1

    Abro em jogo calmo as minhas estatísticas, embora não seja esse o meu objetivo. Sei perfeitamente que tal confissão soa ridícula vinda de uma respeitável senhora caminhando para os seus setenta anos, mas conheço bem a alma humana, notadamente a masculina, de modo que facilito as coisas ao distinto leitor desde agora: ao todo foram somente 27.

    Esses 27 nem devem ser divididos por minhas quase sete décadas (o que tornaria meus números ainda mais irrisórios e risíveis), mas por quinze, que formaram os meus efetivos anos de atividade, o que dá uma média ainda ridiculamente baixa, mesmo para os parcos padrões daquela época, de menos de dois por ano.

    Também não fica bem a uma dama (e eu ainda me considero uma; aliás, não apenas eu, mas os poucos que me conhecem também me veem assim) usar termos chulos para contar sua trajetória, mas não há, no meu caso, muito por onde fugir. Evitei-os como pude, mas foi tarefa árdua. Deixo igualmente claro que jamais pretendi escrever obra erótica, ainda que por certo estas páginas venham a desaguar em tal vertente, mesmo eu tendo me esforçado bastante em sentido contrário.

    Meu objetivo é tão somente contar a minha história, a qual julgo inusual. Merecedora, então, de ser relatada. Talvez o livro adquira contornos psicológicos, ou algo do gênero. Há pitadas que me vi forçada a acrescentar em termos, digamos, políticos ou sociais, pois fizeram parte do importante pano de fundo daqueles intensos quinze anos de minha vida. Note que as aspas são para suavizar a dita intensidade. Vistos a partir da mentalidade ora reinante, talvez pareçam exatamente o inverso: modorrentos e sem frescor. Mesmo assim, creio que vale a pena conhecê-los. Quem sabe até ganhem algum ar de surpresa para muitos. As poucas pessoas que me conhecem ou que ainda lembram de mim certamente ficarão estarrecidas. Agora idosa, tenho nada a ganhar se levar tais segredos para o túmulo que já acena para mim.

    Capítulo 2

    Em 1975 eu tinha 22 para 23 anos. Façam as contas óbvias. Cresci, pois, durante o regime militar, sobre o qual, adianto, não tenho nenhuma palavra contra ou a favor. Sabíamos, na cidade do interior de Santa Catarina em que vivíamos, que se tratava de uma ditadura, mas pouco nos importávamos com o fato, já que para nós as coisas fluíam bem, com segurança (física e econômica) e raros sobressaltos. Se esse cenário me moldou, acho pouco provável e não relevante. Muitas contemporâneas minhas tomaram rumos bastante diversos do meu, rumos normais, rumos ousados, rumos liberais, rumos progressistas, cresceram, se divertiram, namoraram, formaram-se, casaram, tiveram filhos, netos, envelheceram. Somente o envelheceram nos põe em um mesmo compartimento geracional e, na falta de termo melhor, demográfico. Tenho quase nada a ver com elas, conforme verão nas páginas que seguem.

    Meu pai era de origem italiana. Veio para o Brasil ainda menino, no começo da década de 1920. Morreu relativamente jovem. Eu tinha apenas dezesseis anos quando ele se foi, vítima da mesma doença que ora me acomete. Na época, não havia muitos recursos, mesmo em grandes centros. Seu sofrimento durou pouco. O nosso, meu e de minha mãe, acabou sendo um tanto maior. O meu talvez mais duradouro. Como filha única, senti o baque, pois mais do que gostar dele, eu o admirava. Ele havia herdado de meu avô, a quem não conheci, uma razoável biblioteca. Embora pouco nos falasse sobre suas origens, pesquisando mais tarde, descobri tratar-se de uma família toscana com algum verniz aristocrático. Não foram meros emigrantes escapando de uma situação econômica devastadora, mas sim fugitivos do fascismo que se iniciava na Bota. Nessa biblioteca, a que ele cedo me habituou, além naturalmente de livros em italiano, havia obras clássicas em inglês, francês e alemão, sobretudo de literatura e filosofia. Posteriormente foi acrescentando obras em português. Mesmo sem muito estudo formal, acabou ganhando o direito de lecionar aulas de inglês e francês em nossa cidade, dada a carência de profissionais no setor. Seu ofício, contudo, ou seu ganha-pão, era o de jornalista, se é que assim podemos denominar sua atividade no pequeno e único jornal local. Ele era o responsável pela área de cultura do referido periódico, alternando inutilidades regionais com resenhas dos grandes clássicos, tentando, creio que em vão, despertar o gosto provinciano para algo mais universal. Não tão inutilmente assim, já que ao menos eu, sua filha, guardei muitas daquelas páginas, maravilhosamente bem escritas, sobre Dante, Manzoni, Deledda, Carducci, Shakespeare, Cervantes, Goethe e outros ainda hoje desconhecidos naquelas plagas. A rigor, ainda desconhecidos mesmo em grandes centros e, pelo que observei mais tarde, mesmo entre supostos acadêmicos letrados.

    Resumo em poucas linhas o meu background (eventualmente usarei termos estrangeiros nesta narrativa; tentarei evitá-los, para não passar por pedante, mas eles me são e soam naturais). Enfim, cresci em meio a livros, sempre agarrada a meu pai, meu orientador naquele vasto mundo desconhecido, que me tratava com carinho contido, às vezes beirando à indiferença. Isso, talvez, tenha afetado a minha formação e o meu posterior comportamento relutante ou arredio para com outros homens, aos quais sempre reputei abaixo dos conhecimentos e atitudes daquele que me criou. Sem falar que ele era veramente bonito, mistura de Marcello Mastroianni com Massimo Troisi, afora a inata categoria masculina italiana no gestual e, sobretudo, no olhar. Enfatizo isso porque quase nunca consegui observar tais qualidades em outros exemplares masculinos que conheci ao longo da vida, mesmo em cidades maiores. Virtudes que talvez possam ter-se perdido com o tempo.

    Divago.

    Note que ainda não falei sobre minha mãe, que foi o oposto dele. Nunca entendi a razão de os dois terem se casado. Ela não era propriamente bonita, apenas normal. Creio ter herdado isso dela e falarei sobre tal herança mais adiante. Também morreu jovem. Nesse caso, para minha sorte. Muito tempo depois, pesquisando, é que descobri tratar-se de uma esquizofrenia grave. Calculo agora, retroativamente, que meu pai possa ter se encantado com ela (oito anos mais jovem que ele) pela sua aparência simples, suave, de moça direita, interiorana, sem muitos predicados intelectuais, mas de conduta reta, ilibada e bem-intencionada. Estou procurando o máximo de qualidades possíveis nela, mas a convivência que tivemos foi terrível e me deixou marcas um tanto ruins como lembranças. Nos tempos atuais, meu pai teria lhe dado um pé na bunda, mesmo grávida, no primeiro surto que ela não conseguisse conter. E os surtos foram se sucedendo e se agravando, até se tornar um pária, alguém fora da realidade, alguém a precisar de constante vigilância.

    Friso (e isto é importante) que ela não casou grávida. Ele não sofreu essa pressão, habitual naqueles tempos. E tudo ia bem no início, até eu vir à luz. Não sei se sou a culpada, mas a coisa passou a desandar depois de meu nascimento, pelo que consegui obter de informações com parentes distantes. Aliás, todos os meus parentes sempre foram distantes, de modo que nem primos, tios e avós estiveram por perto para dar outras cores ao meu limitado universo. Era somente meu pai (fazendo das tripas coração para nos sustentar, ao mesmo tempo em que tentava me proteger dos surtos de minha mãe) e ela, isolada em seu mundo. A lembrança mais lontana que guardo é ela com uma faca tentando matá-lo por acreditar que ele fosse um soldado alemão disfarçado, ou algo que o valha. Tais crises, graças aos pesados remédios da época, às vezes ficavam adormecidas por longos períodos, mas quando retornavam à superfície eram sempre em fúria, o que, mais que amedrontar, deixava-me profundamente envergonhada em relação a colegas e vizinhos. Para agravar o quadro, havia também um diabetes crônico a lhe rondar que, adicionado aos incipientes conhecimentos alimentares à época sobre como não o agravar, precipitou o seu fim.

    Certa feita, apareceu de supetão na escola onde eu estudava. Seus olhos estavam vidrados. Percebi (tinha uns dez anos) que se tratava de uma crise, coisa que meus professores e colegas nem imaginavam. Ela me pegou pelos cabelos e levou-me arrastando para casa, gritando que eu não deveria ter fugido para aquele convento...

    Não quero me alongar nesses pormenores. Eles não são o foco desta obra. Todos nós temos a nossa cruz. A do meu pai acabou sendo a mais pesada. E poderia ser ainda pior se eu tivesse tido irmãos. Ou se eu mesma herdasse dela aquele problema mental, então pouco conhecido. Meu pai parecia ter esse constante medo, por isso me tratava como um cristal. Eu mesma cresci com medo de, em algum momento, ter um surto incontrolável. Por sorte, meus atributos legados dela concentraram-se apenas no aspecto visual. Uma pena não ter puxado a beleza dele, mas poderia essa combinação trazer de contrapeso também os transtornos psíquicos dela.

    Fato é que ela durou seis anos a mais que ele. Quando se foi, para meu alívio, eu tinha recém completado 22. Entre o fim de um e de outro foram seis terríveis anos. Para minha mãe, sua doença possibilitou ao menos pouco sentir a ausência de meu pai. Já para mim, foi extenuante cuidar dela durante esse período ao mesmo tempo em que estudava para ser alguém na vida, como insistia meu genitor, justo ele, nunca devidamente respeitado por seus pares dada à ausência de um diploma de nível superior, apesar de seus indubitáveis vastos conhecimentos literários.

    Deixou-nos uma casa simples, pequena, mas boa e quitada. Tínhamos também uma empregada, moça pobre, verdadeiro anjo, que cuidava de minha mãe enquanto eu estava na escola. Virei-me como pude. Não passei fome, apenas dificuldades, como todos nós, ou ao menos os que têm alguma agrura para contar. A dor nos torna sábios.

    Meu objetivo, repito, não é esmiuçar essas agruras. Elas servem apenas de introdução. Talvez importem, torno a dizer, do ponto de vista psicológico para aqueles que apreciam tal tipo de linha investigativa (aliada à atmosfera repressiva e patriarcal da ditadura). Rio dessas análises. Não creio que esse perfil dos meus primeiros vinte e dois anos tenha a ver com o que ocorreria nos meus próximos quinze (arredondo os números para facilitar as contas...).

    Admito, apenas en passant, que a memória de meu pai talvez tenha influído nos meus relacionamentos posteriores com homens adultos (ou, melhor, na quase total ausência deles). Porém, a memória que conservo é como a de um velho filme, do qual participei, em que ele era o ator principal. Sem dúvida, influenciou-me sob vários aspectos, notadamente o intelectual, mas antes que alguém possa imaginar qualquer coisa além, deixo bem claro que ele jamais me tocou (falo, claro, do ponto de vista sexual) e, até onde sei, jamais pensei sexualmente sobre ele, ainda que, reitero, fosse o arquétipo do homem que admiro: bonito (refiro-me à beleza masculina tradicional), olhar direto, gestos poucos, postura ereta, certa timidez no sorriso e um brilho intelectual indubitável a cada palavra que proferia (brilho natural, destaque-se). Suavidade e segurança irmanadas. Tudo isso construído sozinho, por suas próprias mãos e suor. E outro ponto a favor dele, que ainda hoje me comove: ter ficado ao lado de minha mãe até o seu fim, mesmo que se tratasse de alguém que ficaria melhor caso tivesse sido internada em um sanatório (na época os havia e essa possibilidade chegou a ser aventada). Ele sempre declinou dessa alternativa. Se tivesse se casado com outra mulher, normal, ou até quem sabe à sua altura, fico a imaginar aonde poderia ter chegado.

    Capítulo 3

    O fato é que minha mãe enfim se foi e me vi sozinha. Poderia parecer o fim do mundo a qualquer outro, mas eu me virei e segui em frente, apesar das costumeiras dificuldades. Só que agora elas passaram a ser apenas econômicas. Quando ela saiu de cena, sumiu de minha vida um enorme encargo. Cuidar dela e estudar eram coisas quase inconciliáveis, tanto que fui reprovada no segundo ano do colegial, quando meu pai estava em sua fase terminal, mais por ausências do que por notas. Foram inflexíveis comigo, mas não me importei tanto. Ganhei tempo e a reprise me permitiu fixar conceitos, especialmente gramaticais. E agora, sem ela, tempo não mais me faltaria. Dedicar-me-ia somente aos meus estudos e aos livros que meu pai deixou. Eram os meus melhores amigos. Amava-os. Amo-os (ainda estão comigo e não faço ideia a que mãos irão após o meu fim). Meus únicos amores. Meus companheiros de toda vida.

    Entre os meus 16 e 22 anos, enfatizo, perdi meu pai e cuidei de minha mãe, como pude, até ela também partir, ajudada apenas por Graça, a citada empregada, dispensada pouco depois do falecimento dela. Apesar de todas as dificuldades, nunca desisti de estudar. A cidade tinha apenas uma pequena faculdade, particular, não muito cara (na época ainda não era uma fonte inesgotável de enriquecimento de uma elite iliterata). Uma cidade média, algo como uns 70 mil habitantes. Vestibular não era ainda tão disputado, mas só consegui entrar na segunda tentativa, um pouco antes de sua morte. Fiz o curso que escolhi: Licenciatura em Letras, noturno. Apesar de alguma chatice com provas e trabalhos, gostava das aulas. Considerava tudo aquilo fácil, embora enfadonho. Dentre meus professores, raros se mostraram à altura de meu pai no quesito amor à literatura, mas eu fingia que os respeitava e, assim, sem muitos sobressaltos e, mesmo antes de terminá-lo, já havia conseguido emprego de professora de inglês para o ginasial (ser filha de quem era me ajudou, visto meu pai ter deixado boas recordações por onde passou). E o fato de todos saberem dos problemas de minha mãe também colaborou para confirmar precocemente minha nova atividade; além disso, no Brasil daquela época, em cidade do interior, ainda não prevalecia o critério estritamente burocrático e acadêmico do papel passado: apenas fizeram um teste comigo e comprovaram que eu mais que daria conta do recado. Hoje eu só seria aceita para a função depois do carimbo de meu diploma lavrado em cartório, ainda que posteriormente viesse a não comprovar por a mais b os meus presumidos conhecimentos.

    Assim, durante esse período conturbado, estudava, trabalhava e cuidava, com apoio de Graça, de minha mãe, doente quase terminal. Não dispunha de tempo para outras coisas. Leia-se: namorar. Ou: para os rapazes.... Não era só falta de tempo. Eu não demonstrava o menor interesse ou vontade para com eles. Para agravar, eu não era bonita. Vou ser um pouco mais condescendente comigo: eu não era atraente. Um dia, um aluno (voltarei a ele) me considerou parecida com a atriz do filme Love Story. Ele não sabia o nome da bela Ali MacGraw (bela para os padrões dos anos setenta). Havia algum exagero, embora eu tivesse, de fato alguns traços dela. Mas eu era insossa: sorria pouco, saía pouco, só estudava e lia muito. Amava apenas livros. Sem sal, pouca bunda, seios pequenos, vestia-me com frugalidade, sem adornos, nada de sensual. Um pouco mais tarde descobri que estava justo ali a minha sensualidade. Infelizmente, esse subterfúgio não é mais válido hoje em dia. Hoje, ou a moça dá ou desce. No meu tempo (sim, estou velha e me permito certo saudosismo), valorizava-se a mocinha difícil, delicada e dedicada, ainda que neutra nos demais aspectos. Não há mais virgens hoje em dia. Virgem no sentido amplo da palavra. Mesmo uma garota de 15 anos que ainda não tenha ido às vias de fato sabe hoje mais do que eu vagamente imaginava aos meus 22.

    Meu pai deve ter-se deixado seduzir por minha mãe quando esta era jovem e sã justamente por conta das características acima mencionadas. Eu, por certo, de forma natural e sem o perceber, herdara o mesmo approach físico dela, relativamente até majoritário naquele tempo e espaço, com alguns toques do molho italiano dele.

    Capítulo 4

    Ainda não cheguei aonde pretendo chegar, que é contar o que aconteceu comigo entre 1975 e 1989. Toda a digressão pregressa foi somente para confirmar que, aos 22 eu tinha, do ponto de vista sexual, 13 anos. Não só virgem de fato, como virgem de ideias sexuais, que é efetivamente o que importa. Claro, às vezes alguma imagem me perturbava (fruto provável daqueles dias). Frequentemente eu os demovia com estudo e leituras, disciplina aprendida com meu pai. Como os livros eram, em sua maioria, em língua estrangeira, isso me conduzia quase que naturalmente a um pouco mais de esforço e tempo, o que me cansava para outros pensamentos. Fora, como já dito, os cuidados com minha mãe. Poucas vezes me masturbei. Sempre muito rapidamente, quase sempre no banho, seguido de algum arrependimento, não do ponto de vista religioso ou algo que o valha, mas do ponto de vista do tempo perdido. O tempo sempre foi a coisa mais preciosa para mim, mais do que dinheiro. Aliás, dinheiro foi outra coisa que nunca me deu tesão. Claro, fazia as contas e fechava o saldo ao final do mês, mas meu horizonte de gastos e desejos quase sempre foi, a exemplo de minhas ingênuas fantasias sexuais, bem limitado. Limites que nunca atrapalharam as minhas outras aspirações. E pouco mudou desde então neste meu permanente low profile. E este é outro ponto que difiro (talvez até com algum orgulho) não só da turma de hoje como até mesmo de minhas colegas da época, as quais tentavam, quase sempre sem sucesso, me levar para algum baile ou cinema, tentando me apresentar a algum bom partido até que, elas ou eles, desistiam. Percebia que me achavam diferente. Quando minha mãe morreu, talvez tenham acreditado que eu viesse a mudar, pois estaria então livre para experimentar, finalmente, novas e diferentes experiências. Acertaram. Só que não eram bem as experiências que elas e eles imaginavam...

    De fato, senti-me leve e livre com a partida de minha mãe, afora o natural luto dos primeiros dias após sua morte. Ao menos de início, pouca coisa de fato mudou em minha vida, pois havia muitas atividades, como a faculdade por concluir e as aulas para o ginásio, que me tomavam agora todo o tempo. Porém, algo começou a mudar lentamente em mim.

    Capítulo 5

    É aqui certamente que chegamos à novidade, enfim. Aqui que minha história de fato começa. Antes foram experiências, sem dúvida duras ou mesmo dolorosas, iguais a que muitas pessoas passaram ou ainda passam. Sei de relatos de gente que sofreu e sofre muito mais do que eu sofri naquele período. Considero-o apenas um período de experiências. Nunca me vi ou me fiz de coitadinha ou de vítima. Odiava quando me viam assim. Repito, todos temos a nossa cruz. Esta minha, conforme brevemente acima narrada, é no máximo um pano de fundo, uma ligeira introdução, um intermezzo quase sem nenhum vínculo com o que agora passarei a narrar, sem dó nem piedade, com todas as letras, inclusive com o vocabulário real, até chulo, sem titubear, sem florear, sem tergiversar, direto ao ponto.

    Antes, ainda, um aspecto importante que havia esquecido: eu era respeitada por meus jovens alunos, bem como pelos outros professores, como uma professora séria, retíssima, estudiosa, esforçada (eles não acrescentavam, mas eu notava também um sofrida). Sorria pouco. Séria, mas sem severidade. Esse respeito foi fundamental. Aliás, ele me salvou ou me isentou algumas vezes de grandes embaraços. Enfim, todos gostavam muito de mim. Nunca tive problemas nesse sentido. Refiro-me, claro, a problemas no ambiente pedagógico.

    Pois bem, certa feita, em uma aula para a turma da 7ª série (meninos e meninas em torno de 13 anos, 1975, ditadura militar, tempos em que a palavra sexo era dita, quando dita, em voz baixa por quem quer que fosse, causando até certo rubor) percebi um garoto com um volume acentuado em sua calça. Nunca havia reparado com atenção ao fato, nem mesmo em homens, nem mesmo em praia, mas ali fez-se notório. Fiquei de início embaraçada, embora, creio, tenha disfarçado bem diante dos demais alunos. Percebi que ele percebeu o meu olhar.

    Era um menino usualmente tímido. Vi que se tornou ainda mais tímido, embora não ocultando o que lhe incomodava na parte de baixo do uniforme. Sentava-se quase no fundo da sala. Dia de prova. Quem a terminava podia ir embora mais cedo. A sala foi se esvaziando. Normalmente já teria terminado e entregado o seu teste (era um aluno inteligente), mas foi ficando. Sem colegas por perto, percebi que pusera sua mão esquerda por dentro da calça e, muito lentamente, começara a se masturbar. Apesar de virgem, evidentemente eu sabia como os rapazes se masturbavam. Lembro que, certa feita, ao voltar tarde da noite da faculdade, surpreendi (provavelmente ele contribuiu para a surpresa) um sujeito, adulto, masturbando-se em um terreno baldio. Vi de soslaio, embora tenha visto bem. Corri imediatamente. Na ocasião, fiquei com nojo do tarado (coisa, aliás, comum à época, talvez pela supracitada repressão dos costumes). Mas desta vez, com aquele menino, foi diferente. De início fiquei vexada, mas depois senti um pequeno entusiasmo. Não sei se ele o fazia por mim, mas era provável, visto que sempre o pegava com o olhar perdido em minha direção. Havia também o componente da ousadia, de poder ser pego e, no caso, muito provavelmente ferrar-se com uma suspensão. Fingi, ma non troppo, que não o havia flagrado, mas creio que percebeu, ainda que intuitivamente, pelo meu acanhado sorriso, que eu notara a sua arriscada ação. Sei, hoje, que nessa idade é realmente difícil controlar os ditames da natureza, mas na época não tínhamos (ao menos eu não tinha) claramente esta noção. Tais coisas eram inusitadas para mim. Mas o que mais mexia com os meus sentidos é que eu estava gostando daquilo. Era a primeira vez que alguém parecia se interessar de fato por mim, e alguém puro (creio que o termo se lhe aplica), além de inteligente e, por que não dizer, bonito. Fiquei também muito curiosa em ver seu negócio (não acho, por ora, termo melhor). Nunca havia visto um. Vi, claro, de meu pai quando pequena, de um ou outro colega meu de escola quando resolviam fazer xixi em qualquer lugar. Ali era diferente. E não podia vê-lo, pois ele o fazia com certa discrição, a mão por dentro da calça e a camisa por fora, a tapar seu lento e discreto vaivém, parando somente quando algum coleguinha se levantava para entregar a prova.

    Até que ele ficou por último. Só eu e ele na sala fechada, uma tarde quente de abril. Olhei para o garoto, que olhava para mim. Então baixou o olhar, fingindo escrever algo na prova. Levantou os olhos e de novo encontrou os meus. Nunca havia olhado antes para ninguém com desejo, mas ali foi a primeira vez que realmente senti atração pelo sexo oposto. Talvez não fosse (certamente não era) apenas pelo menino em si, mas pela própria situação inusitada e perigosa (mais para ele do que para mim).

    Levantei-me sem pressa. Caminhei lenta até ele, que retirou devagar sua mão de dentro da calça, embora a carteira protegesse parte de seus movimentos. Eu fingia segurança, mas pela primeira vez tremia por dentro. Uma parte era desejo. Desejo de ver. Desejo até de ajudá-lo a terminar com aquela prova (algo ainda meio professoral, diga-se). Desejo sexual, em suma.

    – Ainda não conseguiu terminar, Lúcio?

    Minha pergunta saiu um pouco trêmula, ainda que eu tenha tentado pôr o máximo de segurança em minha voz.

    – Quase.

    A voz dele saiu meio embargada, sem olhar para mim. Estava corado e um pouco ofegante, mas acredito que eu não devia estar muito diferente.

    – Quer ajuda?

    Essa pergunta foi, indiscutivelmente (e pela primeira vez em minha vida), dita em tom sensual, ainda que eu tenha pouco disfarçado sua real intenção, ainda que eu própria tenha me assustado com tamanha coragem. Não imaginava que tinha aquilo dentro de mim. E como aquilo me alegrava! Primeira vez que sentia correr vida, vida de verdade, diferente, dentro de mim, ainda que tudo parecesse uma grande e perigosa loucura. Provavelmente, em seus 13 anos, Lúcio pouco deve ter entendido aquele tom. Ou talvez não. Todos nós temos um sistema operacional de intuição que funciona sozinho nessas situações.

    – Não... Tô quase terminando.

    Respondeu-me com um sorriso maroto, que eu nunca havia reparado nele. Aliás, em homem algum. Pus-me ao seu lado. Vi que a prova já estava completa. Sua letra era bonita. Abaixei-me um pouco, de modo que, um pouco curvada, ficasse ao nível dele. Vi que só a camisa protegia seu membro, agora identificável, ereto, fora da calça.

    – Tem certeza?

    Lancei a pergunta em tom baixo, para não o intimidar, para deixá-lo tranquilo, se é que era possível naquela situação tão diversa, perigosa e constrangedora. Era possível ouvir a nossa respiração tão próxima, possível graças à diminuição gradual do barulho dos outros alunos no corredor, liberados para ir embora após entregarem suas provas.

    – Ah, não sei...

    Lúcio alternou

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