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Fortaleza
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E-book210 páginas3 horas

Fortaleza

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Sobre este e-book

O romance de estreia de Luciano Brito apresenta a autobiografia ficcional de Celestino X, comunista e telepata cearense que aos 77 anos resolve contar sua história. Em retrospectiva, ele relata como foi abduzido por extraterrestres, entrou para o seminário, descobriu-se marxista cristão, participou de missões em favor dos pobres em várias regiões do mundo, em tom que oscila entre a alucinação, a nostalgia e a revelação de grande capacidade de ser cruel.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de out. de 2021
ISBN9788578588786
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    Fortaleza - Luciano Brito

    p13.jpg

    1

    As linhas

    Esta vai ser a minha história, que somente eu posso contar e não um outro que não eu. Pela primeira vez vou contar pois já vira um sonho nas mãos de Deus e de Jesus Cristo. Ai de Marx, dos extraterrestres, de mim. Da minha esposa amore mio, dos meus irmãos, filhos e netos; essas almas se tornam rarefeitas num sonho, vão retornar ao magma em que se nivelam. Posso contar depois de ter feito muitas versões, partes e proliferações, de ter visto a história mudar com os anos, porque desconfiava que há vidas paralelas, que nada começa e que estamos aqui de passagem. Antes, tinha vergonha de falar e gaguejava no momento da vergonha, não deixava a pontuação na minha fala ser como é; ou, me sabendo culpado, acabava não falando. Mas aqui onde cheguei, longe e do outro lado da desolação, a palavra sai serena da minha boca, cai no mundo contida e natural. Cada frase é uma semente levada à terra pela gravidade. E foi muito tempo até poder falar assim, simplesmente. Talvez quando eu tiver contado dessa vez, que é uma nova vez, a minha história vai virar o sonho no qual eu vou entrar. E a alma transparente, linho branco visto de perto, aberta nos intervalos de ar entre os fios, será uma emanação. Será a história do que vivi, um pesadelo que deixou de ser um porque é um esplendor de energia. Meu Deus. Muitos duvidaram do que eu acatei; não sabiam que nasci com o dom da telepatia, que vi estrelas cadentes e discos voadores. Eu que, há muitos anos, tinha entendido que esse é um mundo de mentira, sob a lei dos advogados da mentira. Eu que li em silêncio todos os poetas brasileiros, beijei na testa os garçons e os taxistas do Nordeste e de Moçambique. Benzi como pude (é que não sou padre) lavadeiras e vendedores. Dei comida às crianças que vi na rua. E vou hoje, um dia lindo e calmo, contar como vi o rosto do Senhor diante de mim, e que foi o meu encontro com a verdade.

    O que sou agora: corpo ou luz? Ou corpo virando luz? Linho branco se desmaterializando. Preciso dizer ainda que não tem nada de errado em ter sido comunista, acho, fui comunista, acho, andava pelas ruas de Fortaleza nos anos setenta com uma barba que lembrava os que queriam acreditar numa vida compartilhada, em vidas que se nivelam, aos quase trinta anos naqueles dias tinha descoberto que não era mais nem menos importante que os outros. Achava que se os homens tivessem barba as diferenças entre os rostos seriam menos visíveis, estaríamos visualmente mais próximos uns dos outros como os cachorros de uma espécie são. Isso era o que pensava, e a minha mulher, Lya, achava charmoso mas errado, porque ela não podia deixar crescer nenhuma barba e porque também queria acreditar numa vida comum. Quando eu era para ela mais charmoso que errado, ela me chamava de amor meu, amore mio eu era. Que cafona, meu Pai. Mas quando eu era mais errado que charmoso ela me chamava pelo nome:

    Celestino, se quer usar barba, que use. Mas não venha pra cima de mim com esse papo de merda, por favor.

    Celestino, estou pasma.

    Celestino. Pelo amor de.

    Ela, que eu amo, gargalhava forte e não percebia que eu estava engolindo lágrimas. Desde pequeno não me acostumei a não ser ouvido, a falar e não ser levado em consideração, eu me encolhia e voltava a gaguejar ou acabava não falando mais. Não sei mais o que fui: substância ou sonho? Tendo sido ou não comunista eu acredito em Deus, no Espírito Santo e na reencarnação dos homens e dos animais, de humanos para animais, de humanos para humanos, tanto de homens para mulheres quanto de mulheres para homens, de animais para animais e de animais para humanos e extraterrestres e de extraterrestres para humanos e coisas. Aquele que terá passado a vida flutuando de um ponto a outro, como passei, não verá contradição no que digo. Foi com o tempo que cheguei a essa serenidade, insisto nisso porque agora é a minha vez de falar e porque não preciso mais de palavras emprestadas.

    Não fui sempre sereno. Não como sou agora aos setenta e sete anos, quando sou e não sou casado, pois não fomos nós, a mulher que amo e eu, que nos casamos na igreja. Foram as décadas que nos casaram, que Deus me perdoe por isso também. Temos cinco filhos, seis netos e doze crianças apadrinhadas na Mansão Solar. Quis ajudar as crianças doentes e os mendigos. Quis salvar os índios. Se pudesse, acolheria os constrangidos e deformados que sofrem, não haveria mais sofrimento que não pudesse ser anulado pela minha ação. Naqueles anos, já tinha começado a me vestir apenas de branco: com essa cor me sentia mais perto de Deus. O branco do linho e a translucidez entre os fios compunham os raios ópticos da minha desrealização na direção da realidade. Naqueles anos, já sabia que era telepata. Antes dos trinta, seguia sem saber, era doloroso receber as informações psíquicas do mundo. Mais doloroso porque, como acabei de dizer, não me acostumei a não ser ouvido. Então quando queria falar do que ouvia, não porque queria dedurar os pensamentos das pessoas, eu não sabia de onde aqueles pensamentos vinham, só sabia que não vinham de mim. Não sabia o que eram os meus pensamentos, a minha vida mental flutuava numa atopia morna e vasta; num mangue indiferente, sem fim e sem poesia. Então, quando queria falar do que ouvia, e esboçava uma sintaxe a partir da ausência que era essa vida mental e a partir das frases externas que essa ausência absorvia involuntariamente (pois a minha pele, os tecidos sob a pele e a matéria óssea craniana eram membranas finas inchando, por osmose, do turbilhão de neurônios infrafísicos que vinham de fora), as pessoas não reagiam bem ou não reagiam simplesmente. E antes que reagissem mal ou indiferentemente, eu também já sabia, porque a velocidade com que a minha telepatia funcionava, sendo feita de luz e não de consistência, era mais rápida que os nervos que moldam as expressões humanas. Por isso também sabia, desarticuladamente, que as pessoas não iam acreditar em mim nem me ouvir. Antecipando o duplo transporte telepático, começava a sofrer. E sofrendo não poderia ser sereno.

    Era melhor me afastar e ficar sozinho. Era mais confortável ir aonde não houvesse pessoas para me revelar involuntariamente o que a parte desmaterializada do meu cérebro absorvia. Porque quando estava rodeado de humanos, acabava triste ou com muita raiva por ser incapaz de examinar minimamente o que a minha mente fazia. Por ser incapaz de examinar as circunstâncias que faziam com que essa aptidão, tida como uma deficiência, não pudesse se transformar numa potência ou num portal iluminado. Ninguém entendia por que eu me entristecia ou explodia. O novelo empalhava e engrossava: depois de ter lido sem querer a mente dos outros, depois de me entristecer em seguida por não ter sido escutado ou tido como credível, agora era a hora de me aborrecer pelo fato de que ninguém entendia por que eu estava cansado.

    Assim se formou um vício. Não sabendo o que constituía a minha vida mental, me acostumei a buscar o que estava pensando nas frases dos outros, a pensar as frases dos outros. Passava dias, quando pirralho, na Biblioteca Municipal de Hevqué, sublinhando linhas sozinho no interior do Ceará ao qual eu nunca mais voltei porque é sem interesse. Sem ar-condicionado, ficava na sombra, com as espinhas a ponto de espocar na testa e nas dobras do nariz. Era triste também porque estava longe do mar e dos mangues, mares e mangues que se tornariam a paisagem inconsistente e próxima do que eu chamava de os meus pensamentos. Estes, por serem a causa do que me humilhava e do que eu tinha vergonha, não poderiam conduzir a uma paisagem poética, ainda que fossem mares e mangues. Não poderia haver poesia nos mares e mangues; assim como não havia poesia na vegetação de Hevqué. A amorfia não é poética, menos ainda para uma criança como a que eu era, uma criança infinitamente desorientada, muito antes de me tornar o missionário e filantropo como viria a ser chamado nos bares da Varjota e da Praia de Iracema e nos corredores da faculdade de Letras no Benfica. Instantâneos da vida adulta: as mãos dos garçons e das cantoras dos bares e dos alunos e dos professores na universidade, diante de mim, fechavam em concha na altura do peito. Ou o sorriso com os lábios fechados que só os músculos contraídos do rosto poderiam remeter a um sorriso (é que não disse ainda que a minha telepatia não é apenas uma osmose do pensamento dos outros, mas uma osmose mais embaralhada dos gestos dos outros e do que existe por trás dos gestos, o mundo hipofísico dos números e dos anjos, de onde saímos e para onde vamos voltar, pensava). Foi dessa forma que vim ao mundo mais tarde. Ainda assim, não havia sinal de verticalidade na relação, ninguém nos bares ou nos corredores da universidade pública de Fortaleza me chamava de seu Celestino X.; eu não era o senhor de ninguém; era chamado simplesmente Celestino X.; a igualização que era o nosso sonho não era anunciada aos gritos nem através da teatralização do sonho. A igualização era inscrita discretamente na ausência de diferenciação de tratamento, o apagamento do seu, quotidiana e simplesmente. E não é que fôssemos uma comunidade simples demais para nos organizarmos por classe; éramos, ao contrário, tinha nascido com aquela convicção, uma comunidade seguindo o curso natural da vida, rumo ao nivelamento: à luz, à verdade e a Deus. Isso é lindo.

    Voltando à infância, não havia poesia naquela vegetação. Sem ver encanto naquela natureza, precisava mesmo assim, e isso vale para qualquer criança que flutuava no mundo como eu, submergido num aquário mudo, precisava de um parâmetro mais visual que verbal, pensava. Porque desconfiava que a minha vida mental seria melhor transcrita em imagens que com palavras (eu ainda não tinha entendido muitas coisas que hoje vejo claramente, e mesmo se tivesse entendido não teria conseguido transformar em palavras, apenas mais tarde poderia entender que conseguiria escrever como se estivesse desenhando, ainda que não tivesse talento para a arte pictural, o que tampouco entendia). As imagens em Hevqué não correspondiam à inconstância da minha mente. Nem a arquitetura dos homens; a biblioteca rachada de Hevqué, as casas lotadas dos tios ou a estrada esburacada que nos levaria um dia para Fortaleza. Tampouco a capela que obrigava a gente a se acumular em pé nas bordas, às vezes sem que a gente pudesse ver o padre pela janela, e a extravasar os limites geográficos, logo a expandir esses limites até onde chegasse o barulho do coro. A igreja era os tijolos e a atmosfera e o sopro onde atingia o canto, poucos metros além da cerca. Nem a arquitetura da natureza correspondia à inconstância; a matéria esgotada da caatinga, os cactos pontudos, os mosquitos e os homens e as mulheres ocos que eram a gente. Essas imagens não teriam podido inspirar um pirralho desorientado como eu, exceto no que o que havia em torno de mim inspirava medo.

    Eu era amorfia e medo. E, sem nenhuma orientação, mais que medroso, pusilânime, me perdia e boiava sem ter uma imagem que pudesse se acomodar à minha vida interior, como um dia essa imagem seria o Oceano Atlântico e o mangue do Rio Cocó, que me deixariam perplexo quando os visse pela primeira vez, olhos abertos chorando embaixo d’água. Antes do meu encontro com a água, com os pés rachados no chinelo, sublinhava sozinho e constrangido livros na biblioteca de Hevqué. Não sabia como tinha ido parar ali, não tinha um senso da história. Pior, era incapaz de entender a utilidade de um senso da história. Falava de um lugar rarefeito onde se cruzavam os pensamentos das pessoas de Hevqué, tampouco sabia de onde vinham. Isso foi muitos anos antes de conhecer Lya amore mio. A gente em Hevqué era selvagem e ignorante e eu tinha a impressão de que estávamos ali desde sempre e de que éramos ao mesmo tempo os primeiros a estarem ali, num tal estado de perda como o da tribo selvagem do Gênesis ou de astronautas numa ficção científica, muitas gerações depois da transformação da Terra em lava. E desconfiava que eu não era sequer esse corpo. E era triste também porque de dia não conseguia ver os discos voadores que mais tarde me levariam dali.

    Ficava na biblioteca, dentro das possibilidades em que o prédio poderia ser considerado uma biblioteca; concreto rachado, mosca e café frio. Mas era um momento em que podia ficar sozinho, porque em casa dividia o quarto com sete irmãos. Ficava ali, buscando a citação adequada: um motivo a mais de aborrecimento, ai Deus e meu amore que nessa época não conhecia e nem poderia ter conhecido porque queria ser padre. As primeiras coisas que escrevi não eram exatamente minhas (estava longe de entender o que poderiam ser os meus escritos), mas sobreposições de imitações: primeiro copiava frases de que gostava e, insatisfeito com um só registro de cópia, passava a escrever à mão por cima da primeira frase com a mesma caneta ou uma caneta de outra cor, às vezes até rasgar a folha do caderno. Ou então reescrevia a linha da frase a alguns milímetros da primeira cópia de modo a criar um efeito de relevo, às vezes com cores de caneta diferentes, preto, vermelho, azul; ou com uma cor e uma textura pelas quais tinha grande afeição, o cinza do grafite, cuja delicadeza vem do fato de que se concretiza se desfazendo. Às vezes escrevia com uma caligrafia ligeiramente diferente ao lado da frase copiada. Imaginava que a frase copiada podia ter variantes incompreensíveis, embora fosse aparentemente a mesma (segundo a gramática baixa, a gramática do sentido), e que logo se ampliariam rumo à pureza, ao mundo dos traços e das linhas e que é o mundo dos anjos. Achava que depois de fazer esse exercício muitas vezes a frase de que gostava viesse a se transformar numa frase minha, e tendo frases minhas não teria mais por que sofrer por causa da membrana quase inexistente que existia entre os meus pensamentos e os pensamentos das outras pessoas. Teria meu próprio acervo de frases escritas várias vezes manualmente (se bem que o exercício podia chegar a tal ponto que já não existia diferença entre escrever manualmente e reescrever automaticamente, o meu objetivo inconsciente era chegar à atonalidade, ou seja ao estado de distração em que a escrita seria da cadência da respiração), sem saber que o que fazia era em parte a concretização exata de uma preguiça, em parte o caminho a ser feito. Foi só depois de muitos anos que percebi as páginas caindo e prestes a serem arrancadas por causa da pressão antiga dos dedos e do peso dos livros que copiava à mão, A história dos meus experimentos com a verdade, Corpos celestes da Via Láctea: edição ilustrada ou O Evangelho segundo São João, por causa também do tempo que passou, foi somente quando as páginas começaram a cair uma por uma e quando o cinza do grafite já tinha se diluído no branco das folhas e que as letras tinham se tornado ilegíveis, do cinza ao branco borrado à luz fosca, foi somente então que eu comecei a falar sozinho.

    2

    A visão

    Mas um dia decidi ficar na biblioteca de Hevqué até de noite. Não avisei meus pais; meu atraso não seria um incômodo. Não sabia que seria a primeira vez que entraria num disco voador. O céu era uma tela preta, azulada, lisa, com pontos luminosos, distribuídos de forma assimétrica; um pano defeituoso com minúsculos buracos brilhantes, as estrelas, por trás do qual estaria a luz, pensava.

    Quando era criança, imaginava que o céu de noite não era o que se vê. Imaginava que o verdadeiro céu seria o brilho sob o pano negro, o sob-o-céu; um branco sufocante e ofuscante que nem com os olhos fechados poderia impedir que me cegasse; um branco argentado e glacial da

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