Não há mundo seguro sem ciência: A luta de um cientista contra as pseudociências
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Não há mundo seguro sem ciência - Luiz Carlos Dias
© Luiz Carlos Dias, 2024
© Editora Paraquedas, 2024
1ª edição digital, maio de 2024
Editora TAINÃ BISPO
Coordenação editorial JADE MEDEIROS
Preparação LUCIANA FIGUEIREDO
Revisão FERNANDA GUERRIERO ANTUNES
Projeto gráfico e diagramação VIVIAN OLIVEIRA
Capa VANESSA LIMA
Desenvolvimento de eBook: LOOPE EDITORA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Dias, Luiz Carlos
Não há mundo seguro sem ciência: A luta de um cientista contra as pseudociências / Luiz Carlos Dias. – 1ª ed. – São Paulo : Paraquedas, 2024.
352 p.
ISBN 978-65-6088-026-9
1. Fake news 2. Covid-19 (doença) 3. Ciência 4. Pandemia 5. Informação I. Título
24-1433 CDD 302.23
Índice para catálogo sistemático:
1. Fake news
2024
Paraquedas é um selo editorial da Editora Claraboia.
Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Paraquedas.
Caixa postal 79724
CEP 05022-970
www.editoraparaquedas.com.br
Dedico este livro aos grandes amores da minha vida, minhas filhas Luana, Luiza e Luma. Por vocês, vale muito toda essa luta! Amo muito vocês, to the moon and back!
Dedico ao meu querido pai, Aurino Liberato Dias, de quem herdei a paixão pelo Club de Regatas Vasco da Gama.
Dedico também aos meus gatinhos Tutti, Jade e Cheese. A Tutti está comigo há dezesseis anos, foi minha companhia durante a pandemia e durante o processo de escrita deste livro, quando tive que dividir a digitação com carinhos na cabecinha e no pescocinho dela.
A todos e todas que caminharam ao lado da ciência nesta jornada em defesa da vida.
E a todos e todas que perderam entes queridos para a covid-19 e para o negacionismo criminoso relatado neste livro. Nós jamais podemos esquecer.
Dedico este livro especialmente à minha mãezinha, Dilma dos Santos, que, apesar da distância, esteve sempre pertinho, preocupada com a pandemia e com as ameaças que eu sofria. Minha mãe via todos os meus vídeos e todas as minhas postagens nas redes sociais, comentava sempre, enviava para as amigas e amigos e, algumas vezes, com delicadeza, reclamava dos meus textos muitos longos para o Jornal da Unicamp...
Te amo, mãezinha querida!
SUMÁRIO
PREFÁCIO, PROFESSOR DR. GONZALO VEC
PREFÁCIO, GUSTAVO MENDES LIMA SAN
PREFÁCIO, DRA. LUANA ARAUJO
NOTA DO AUTOR
APRESENTAÇÃO
Título e subtítulo do livro
Conteúdo dos capítulos
CAPÍTULO 1
Ciência × Negacionismo
Algumas definições
Desinformação não é falta de informação
O movimento antivacinas
Quais fake news nós combatemos?
Tratamento detox vacinal: charlatanismo em nível máximo
Revisão por pares e revistas predatórias
Os componentes do kit covid
As fases no desenvolvimento de uma vacina
Por que as vacinas da covid foram desenvolvidas rapidamente?
Parece que não existe limite para o charlatanismo nesse país
Pandemia, desgoverno e desinformação
Discursos negacionistas
CAPÍTULO 2
E, no meio disso tudo, eu me perguntei: como posso ajudar?
Meu envolvimento no combate às fake news na pandemia
Participação na elucidação da farsa da fosfoetanolamina, a pílula do câncer
O ingresso na Força-Tarefa Unicamp de combate à covid-19
Reconhecimento a jornalistas e cientistas que me ajudaram nessa caminhada
Rádio Band News BH 89,5 FM
Rádio CBN Campinas 99,1 FM e rede CBN SP
Programa Trocando em Miúdos: Contraponto
A criação da Faixa de Combate às Fake News
no Portal Unicamp
Ação extrajudicial movida pela associação Médicos Pela Vida
A retirada da Faixa de Combate às Fake News
Unicamp do ar
Colaborações com a Sociedade Brasileira de Química (SBQ)
Rádio Brasil Campinas AM 1270
Colaborações com o podcast Ciência Suja
Rádio Nova Brasil Campinas 103,7 FM e Nova Brasil SP
Revista ISTOÉ Independente
Centro de Apoio ao Tabagista (CAT)
Programa A Grande Verdade, rádio Energia 97 FM SP
Programa Carlinhos Lima, rádio Clube 1 São Carlos
Rádio POP 88,7 FM: São Carlos (SP)
TEM Notícias, Rede Globo de Televisão: Sorocaba/Jundiaí
Programa Entrevista Coletiva e Bastidores do Poder, TV Band Mais Campinas
Grupo #derrubeasfakenews
Revista AEscolaLegal
Rádio Antena 8 FM: Caraguatatuba (SP)
Observatório do Terceiro Setor, rádio Brasil Atual FM SP
Plano de Saúde PROASA
Membro do Comitê Científico do Centro de Estudos Sociedade Universidade e Ciência (SOU_Ciência)
Membro do Grupo de Trabalho de Medicamentos: Secretaria de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde, Governo do Estado de São Paulo
Conclusões
CAPÍTULO 3
E a pandemia chegou...
Ano 2020
Ano 2021
Ano 2022
Ano 2023
Ano 2024
CAPÍTULO 4
[1] Só a ciência salva do obscurantismo – A luta de um cientista contra a pseudociência em tempos de pandemia
[2] Combate à desordem informacional na pandemia de covid-19
[3] Não há evidências que cloroquina seja eficaz em prevenção ou tratamento da covid-19
, alerta pesquisador da Unicamp
[4] Pesquisador de medicamentos para malária explica perigos da cloroquina
[5] Os institutos de pesquisas e universidades públicas brasileiras no enfrentamento à covid-19
[6] Desmentindo as fake news sobre vacinas
[7] O nosso inimigo é o vírus, não as vacinas
[8] Reflexões sobre a pandemia. Está mesmo acabando?
[9] As mentiras que se contam contra as vacinas para covid-19
[10] Não há um mundo seguro sem ciência
[11] A fase aguda da covid ficou para trás, mas o momento é de reflexão
[12] A pandemia está acabando graças às vacinas
EPÍLOGO
Reflexões sobre como começar a mudar o cenário
Como desmontar essa máquina de desinformação?
Conclusões
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
POSFÁCIO, PROFESSOR DR. PETER SCHULZ
POSFÁCIO, DRA. ROSANA RICHTMANN
POSFÁCIO, PROFESSORA DRA. SORAYA S. SMAILI
AGRADECIMENTOS
SOBRE O AUTOR
PREFÁCIO
Confesso que ser professor é minha vida, é o que mais gosto de fazer – estar com alunos e buscar construir conhecimentos e experiências coletivamente. Mas tenho um grave defeito para ser um bom professor: sou ágrafo!
Nestes recentes tempos pandêmicos, durante os quais experimentei sensações de terror e medo pelo que acontecia com o que eu conhecia como mundo, e ainda envolto nas trevas do desgoverno que vivemos, tive que aprender a superar minha deficiência e escrevi – não tudo que deveria, mas algumas coisas para cumprir com minhas obrigações de participar dessa luta contra a pandemia e suas terríveis mazelas e contra o pandemônio do governo que elegemos!
Foi nessa luta que conheci, em alguma entrevista, o Luiz Carlos Dias. E aprendi que um professor de Química tinha muito a dizer ao mundo da saúde sobre tudo que estávamos vivendo e sofrendo. Fui buscar informações sobre ele e saber de sua vida – o que aqui também neste livro você, leitor, poderá conferir: uma biografia fantástica e uma atuação voltada para melhorar a sociedade com e sem pandemia. Com e sem pandemônio.
Aí ele me convida para prefaciar seu livro e, portanto, mais uma vez subverter meu agrafismo. Sim, por uma excelente causa: a preservação de nossa memória desses dias tão difíceis.
Alguns dos textos aqui presentes eu já tinha lido na imprensa ou nas publicações que circularam durante a pandemia; além disso, havia participado de alguns Ponto e Contraponto ao lado do Luiz e fui assimilando a sua postura em relação à ciência e à questão da boa informação. Também busquei, durante esse período, travar essa luta, mas com armas menos letais que o Luiz. Ele usou como arma o conhecimento que tão vastamente possui; eu me contentei em ser um arauto do óbvio, o que, de certa maneira, também acredito que foi muito útil.
Um dos textos que estão logo no início do livro se intitula Desinformação não é falta de informação
, o que é muito real, ainda mais nestes tempos em que existe uma revolução informacional, mas nem toda informação é verdadeira. Então, o papel de transmitir a informação, seja através da sua tradução para uma linguagem mais simples, seja decodificando essa informação mais complexa – sobre vacinas, epidemiologia, doenças, proteção –, foi fundamental para a sociedade conseguir ultrapassar o transe que vivemos.
Acho que esse mundo tão carregado de informação é melhor que os que vivemos antes, mas temos que aprender a separar o verdadeiro do falso, e creio que a maneira de fazer isso não é censurando, e sim explicando, traduzindo, clareando. Sim, são necessários muitos esforços para conseguir fazer frente à imensa quantidade de mentiras e falsidades que foram disseminadas durante a pandemia. Aliás, recomendo a leitura cuidadosa do capítulo 1. Lá, nosso autor faz uma lista escabrosa de parte das falsidades com as quais tivemos que nos defrontar e que, em grande parte foram clareadas por sua ação.
Com certeza temos que construir uma caudalosa memória destes três anos. Cometemos muitos erros, e aí não me refiro somente ao pandemônio, também à pandemia e às ações internas que vimos aflorar, inclusive dentro de nossas tão queridas universidades. Temos que colocar o dedo na ferida e registrar esses acontecimentos – esquecer jamais; temos que registrar e aprender. Esta não foi a última calamidade que viveremos. Infelizmente, estamos sempre preparando uma nova tragédia contra a qual teremos que lutar também; por isso, é fundamental realizar o registro dos erros e acertos cometidos durante esse tempo.
Não podemos deixar de registrar, e o Luiz o faz várias vezes neste livro, a questão da importância de termos contado com um SUS em toda a sua capacidade de assistir a nossa população. Sim, ele foi reconhecido e cantado. Mas temos que ir mais longe: não podemos esquecer!
E somos muito bons em esquecer.
Mais do que isso, porém, temos que lembrar que não é só o SUS, mas a educação, a segurança alimentar, a seguridade social, o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa, o direito à justiça, a inclusividade da sociedade. Enfim, não queremos só uma sociedade com um sistema de saúde bom, queremos uma sociedade que seja melhor para todos nós vivermos, e é isso que vamos encontrar nestes textos do Luiz: a busca de um mundo melhor para todos nós!
Parabéns, Luiz, e vamos em frente lutar as batalhas que virão para construir nossa utopia.
Professor Dr. Gonzalo Vecina
Médico e professor assistente da FSP/USP e da EAESP/FGV
PREFÁCIO
Além de farmacêutico, sou um historiador entusiasmado pela teoria da história elaborada pelo colega alemão Jörn Rüsen. Rüsen acredita que a história tem um método científico bem definido e, como ciência, pode orientar a vida prática do homem no tempo.
Talvez ainda não tenhamos o afastamento temporal primordial para que seja possível analisar historicamente o que vivemos durante a pandemia de acordo com o método de Rüsen, mas a forma como o livro do Luiz apresenta a sua luta e a de diferentes atores contra as mazelas trazidas pelas fake news aos brasileiros representa um material histórico muito relevante.
Por meio da sua própria trajetória, o Luiz nos conduz para a sequência de acontecimentos técnicos, políticos e sociais daquele período e nos leva a reflexões não só sobre a importância da ciência, mas também sobre os esforços de tantos que sacrificaram seus dias e noites para trazer luz à população, numa época de tanta incerteza e obscuridade. Para quem viveu a pandemia envolvido nos meandros das decisões técnicas e políticas necessárias ao enfrentamento da doença sob a pressão de uma emergência em saúde pública, este livro traz à memória episódios de muito orgulho, mas também de muita dor.
Atuando à época como gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável para avaliação dos critérios de qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos e vacinas desenvolvidos pelas indústrias farmacêuticas, pude viver na pele ocasiões de muita tensão por pressões e críticas infundadas, por vezes baseadas em fake news, tanto para aprovar produtos e indicações de medicamentos sem a devida comprovação quanto para desqualificar ou ameaçar servidores quando decidiam pela aprovação de vacinas. Mas houve momentos de muito orgulho também, por exemplo, quando as primeiras vacinas aprovadas foram aplicadas após um esforço árduo da equipe de especialistas da agência.
Essa amplitude de sentimentos, que reflete exatamente o que vivíamos todos os dias ao ver as notícias publicadas no período mais duro da pandemia, faz com que a leitura deste livro não passe incólume. É uma história que precisa ser contada.
Para quem não viveu a pandemia sob essa perspectiva, a jornada do Luiz trará dados e reflexões críticas para que seja possível uma análise aprofundada, mas também humana, sobre esse momento.
De perto ou de longe, a pandemia foi uma circunstância sem precedentes, que expôs o melhor e o pior de todos nós na tentativa de sobreviver. E é exatamente por isso que este livro é tão importante: reacende em nós a certeza da imprescindibilidade da ciência e da história não só como conhecimento, mas também como um aprendizado, que deve para sempre ser lembrado.
Gustavo Mendes Lima Santos
Diretor de Assuntos Regulatórios, Qualidade e Ensaios Clínicos da Fundação Butantan e ex-gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos na Anvisa
PREFÁCIO
Cada um de nós tem uma visão muito particular sobre a experiência da vivência da pandemia da covid-19. Para alguns, foi um trabalho exaustivo inédito; para outros, um sofrimento incomensurável; para muitos, uma mistura das duas circunstâncias; para todos, em maior ou menor grau, um evento inesquecível e traumatizante. Em cada uma delas, uma grande chance de as lentes pessoais obnubilarem a ordem e a intensidade dos fatos e, portanto, os ensinamentos preciosos cruciais no aprendizado científico, político e social e na predição e prevenção de desastres futuros.
A lucidez, como sempre, é antídoto para os vieses individuais que constroem a vulnerabilidade pessoal e populacional.
Nas páginas deste livro, uma boa dose dela nos conduz por uma jornada através dos momentos decisivos e das ações determinantes que moldaram a pandemia da covid-19. Escrito por um pesquisador incansável e defensor incisivo da verdade, mergulhamos em um relato que enfileira os fatos desnudos do período, expondo, sem piedade, os labirintos da desinformação. No cenário caótico das fake news, este autor não apenas descreve os desafios enfrentados, mas também traz à luz a contenda incessante pela disseminação da verdade, cujo impacto transcende os limites da doença, da crise política, da formação em saúde, e se enraíza no bom senso e na ética. Ao enveredarmos por estas páginas, somos confrontados com a importância vital da informação precisa, com as reações viscerais que podem nos assolar diante das consequências letais das mentiras que ameaçam a saúde pública, e pela batalha incansável pela compreensão de que a ciência é inútil se não servir à coletividade e for assim percebida por ela.
Luiz nos traz mais do que um relato histórico; faz um chamado à ação, um convite para nos unirmos na busca pela lucidez em tempos de inglória consagração da estupidez. Em mim, felizmente, encontrará sempre uma colega de propósito, de ofício, de resistência e de perseverança na luta, acima de tudo, pelas pessoas, pelo discernimento, pela equidade e pela justiça.
Não esqueceremos. Nunca.
Que este livro faça parte da materialização da memória de todos nós, que nos aproxime uns dos outros e que nos ajude a evitar que cometamos os mesmos erros.
Dra. Luana Araujo
Infectologista, epidemiologista e comunicadora em saúde
NOTA DO AUTOR
Este livro é um registro histórico sobre a pandemia de covid-19 e os desdobramentos de como essa grave crise sanitária foi afetada pela triste fase da política contemporânea brasileira, salientando o papel decisivo da ciência. A pandemia chegou no pior cenário para os brasileiros, com o pior governo federal da história desde a redemocratização. O ex-presidente Bolsonaro sempre desprezou as universidades públicas, a ciência e os cientistas, nunca demonstrou qualquer sinal de compaixão, empatia e respeito pela vida dos brasileiros durante a pandemia e trabalhou para descredibilizar as vacinas contra a covid-19. Essa crise sanitária e humanitária nos mostrou o que há de melhor e de pior na ciência, na universidade brasileira, na política, no jornalismo e na medicina.
Esse não é um livro sobre mim, mas sobre minha experiência durante a pandemia, no combate ao negacionismo científico e ao obscurantismo, atuando fortemente na Unicamp, de onde sou professor titular no Instituto de Química e coordenador do consórcio latino-americano Molecules Initiative for Neglected Diseases
(MINDI) – cujo objetivo é descobrir novos medicamentos para o tratamento da malária e da doença de Chagas –, nas minhas próprias redes sociais e onde mais me convidaram para falar sobre esse triste cenário.
É também um reconhecimento a todas e todos, cientistas, pesquisadores, profissionais da área da saúde que atuaram na linha de frente de combate ao vírus, a quem lutou nas redes sociais em defesa da vida, aos bons jornalistas, a todos e todas que lutaram contra o negacionismo, o charlatanismo e o obscurantismo que tomou conta do país. É uma reverência a todos e todas que defenderam as nossas universidades e institutos de pesquisas públicos, a ciência, as vacinas, a vida e os bens maiores deste país: nossa população, nossa liberdade e nossa democracia.
APRESENTAÇÃO
As histórias de combate ao negacionismo científico na pandemia de covid-19 precisam ser escritas e contadas. a O Brasil se tornou um pária, uma ameaça à saúde global, a capital mundial do negacionismo e do charlatanismo durante a pandemia de covid-19 em virtude do comportamento anticiência do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, e de seus fiéis seguidores, entre eles alguns extremistas. O vírus, que atingiu os cinco continentes, chegou no pior momento para os brasileiros, com o país sob um governo que odiava a ciência, os intelectuais, os livros, a inteligência, as minorias, as universidades, as vacinas. A covid-19 foi um gravíssimo problema sanitário e político.
O conjunto de textos nesta obra situa historicamente os acontecimentos desde o início da pandemia da covid-19, a maior crise de saúde pública que nós enfrentamos, e traz uma cronologia dos fatos mais marcantes na minha visão, incluindo os percalços no enfrentamento dessa grave crise sanitária, salientando o papel decisivo da ciência. Este livro reúne acontecimentos conforme foram se desenrolando. Tudo isso faz parte de nossa história. São fatos que aconteceram e marcaram para sempre nossas vidas. São páginas que lembram alguns dos momentos históricos e dramáticos que passamos, com dúvidas, medo, angústia, desespero, dor, luto, falta de esperança diante da catarse coletiva em defesa da farsa do tratamento precoce, um experimento irregular com medicamentos contra a covid-19, até que as vacinas surgiram no horizonte.
O verdadeiro tratamento precoce deveria ser a prevenção, a defesa das medidas preconizadas pela ciência, como uso de máscaras, distanciamento físico e hábitos de higiene das mãos. O tratamento precoce de fato deveria envolver evitar aglomerações em locais fechados, testar em massa a população com o isolamento dos infectados e seus contatos imediatos, realizar vigilância epidemiológica e vigilância genômica, restringir deslocamentos não essenciais, priorizar estratégias de vacinação com campanhas de esclarecimento e conscientização da população brasileira em horário nobre para termos uma alta adesão às vacinas contra a covid-19.
Mas, em vez disso, o governo federal defendeu o chamado tratamento precoce com o kit covid, um retrato fiel do negacionismo que ameaçava destruir o país. Vimos políticos no Senado Federal, na Câmara dos Deputados e nas Câmaras de Vereadores com discursos exaltados defendendo práticas sem respaldo científico. Passamos por momentos tensos com as medidas de restrição de movimentos, como isolamento social, distância e saudade dos entes queridos e reuniões e encontros apenas virtuais, até as vacinas surgirem no fim do túnel. Com a chegada delas, porém, chegou também uma onda simplesmente gigantesca de fake news (notícias falsas) e desinformação sofisticada, trazida pelo monstro faminto do negacionismo científico.1
Meus dias, assim como de outros colegas de várias instituições brasileiras, foram tomados por entrevistas para diversos veículos de comunicação, rádios, jornais, programas de TV, por lives em plataformas digitais, seminários e conferências on-line, quando foi possível perceber a dúvida, o medo, a angústia e o desespero que levavam as pessoas a acreditar em curas milagrosas e crenças infundadas. Era preciso estar atualizado, tentando sempre transmitir informações qualificadas e confiáveis. As plataformas digitais haviam se tornado uma terra de ninguém, devastadas e sem dono. A saúde pública havia sido colocada em segundo plano e o engajamento de vários personagens alinhados ideologicamente ao governo federal fez com que decolasse o tratamento precoce com o kit covid contendo cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e outros componentes. Eles insistiram, mas, infelizmente, esses medicamentos nunca tiveram futuro no combate à covid-19. Com uma ação coordenada de políticos, médicos, pseudocientistas, líderes religiosos, empresários, jornalistas, influenciadores digitais e blogueiros para amplificar narrativas falsas, o kit covid virou uma política de saúde pública no Brasil. Sempre foi por ideologia política, por poder; nunca foi por saúde. Se o ex-presidente tivesse defendido a bandeira da vacinação baseada nas melhores evidências científicas, todos os seus seguidores certamente estariam abraçados à causa da vacinação.
Ao lado de outros valorosos colegas, procurei ser uma voz de alerta sobre a importância de seguir as melhores evidências científicas para evitar a perda de mais vidas que, infelizmente, deixaram muitas famílias enlutadas, sem a possibilidade de ao menos uma despedida digna de seus entes queridos. Foi preciso estar atento e resiliente para ajudar a desconstruir todos os dias o crescente movimento antivacinas no país, trazendo informações concretas e confiáveis sobre a ameaça invisível que estava afetando o mundo (ver textos 6 e 9 no capítulo 4).b Foram muitas as horas de estudos e leituras para estar sempre atualizado e pronto para transmitir informações corretas, usando linguagem de fácil compreensão. Foi, sem dúvida, uma jornada intensa, buscando as informações fundamentadas em estudos científicos de qualidade, salientando as descobertas mais promissoras e tentando trazer esperança para uma população visivelmente desorientada. Foi preciso sinceridade, estar comprometido com a verdade, mesmo que nem sempre tivéssemos as melhores notícias. Foi preciso coragem, firmeza, perseverança, resiliência, vontade de ajudar e muita solidariedade, pois estávamos diante dos falsos dilemas entre saúde × economia, vida × economia, ciência × política e ciência × pseudociência. O gabinete do ódio montou uma estrutura digital muito organizada e muito financiada, com forte penetração em grande parcela da população, para espalhar mentiras e amplificar notícias falsas, desinformação e trapaças que levaram a mortes.2 Foram muitos os influenciadores e jornalistas apoiadores do ex-presidente cooptados para alimentar as teorias da conspiração nas redes sociais. A maldade desses personagens não tem limites e, para defender uma visão de mundo da qual a ciência não faz parte, eles mentiam compulsivamente. Muito do movimento de desinformação foi construído e arquitetado entre quatro paredes nos calabouços do submundo da extrema direita brasileira. Esse núcleo de desinformação é o mesmo que atacava o sistema eleitoral, as urnas eletrônicas, que ajudou na manipulação de seguidores do ex-presidente e na organização dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, além de arquitetar o golpe de Estado com o objetivo de abolir o Estado Democrático de Direito, que, felizmente, não foi bem-sucedido. O país convivia com mentirosos no poder, com alguns psicopatas nas redes sociais e nas ruas ameaçando nossas instituições e defendendo ruptura institucional. A agência Lupa mostra em um documentário como a desinformação e o discurso de ódio foram peças-chave para o 8 de janeiro de 2023.3 Trata-se de uma poderosa ferramenta política.
Na ausência de campanhas oficiais de esclarecimento da sociedade e de incentivo à vacinação por parte das autoridades, diversas universidades, organizações, entidades médico-científicas, cientistas e divulgadores de ciência lançaram campanhas próprias sobre o tema. Testemunhamos com muito orgulho a força inequívoca da resposta das nossas instituições públicas de ensino superior e de pesquisa, da ciência e do conhecimento científico em benefício da saúde pública da população brasileira (ver textos 5 e 10 no capítulo 4). Fomos à luta para defender os bens maiores deste país: nossa população e nossa democracia.
Como cientista e cidadão brasileiro, eu não poderia me ausentar desta discussão e do debate contra o negacionismo científico e o obscurantismo intelectual de um governo populista de extrema direita que, desde o início da pandemia, deu as costas à ciência e à sua população, se tornou o melhor amigo do vírus e contribuiu para o espalhamento da doença. Muito mal assessorado, o ex-presidente foi contra a adoção das medidas não farmacológicas, como a quarentena, o isolamento social e o uso de máscaras, defendeu a farsa do kit covid com antiparasitários que nunca foram antivirais e ainda foi radicalmente contra as vacinas, ajudando a espalhar inúmeras fake news.c
Não era o momento de ficar calado, ter medo ou ficar isento. Era preciso ter coragem para defender a vida, a democracia, nossas instituições epistêmicas, lutar contra o vírus e contra os aliados dele, em defesa das pessoas que nós amamos. Muitas delas não têm força para lutar, então precisam de cada um de nós, precisam de alguém para lhes estender a mão.
O país passou pelo debate da falsa dicotomia entre preservar vidas ou salvar a economia. A estratégia oficial do governo federal foi deixar todo mundo se infectar para atingir a imunidade coletiva ou de rebanho, um conceito que se aplica com alta taxa de cobertura vacinal (ver textos 11 e 12 no capítulo 4). Essa foi a política nacional oficial de contenção da covid-19. Felizmente, o Superior Tribunal Federal (STF) impediu o ex-presidente de intervir na atuação de prefeitos e governadores, que, a partir daquele momento, tiveram autonomia para tomar decisões sobre a melhor maneira de combater a covid-19, sem precisar seguir as orientações nefastas do governo federal e de seus interlocutores. O STF foi fundamental para evitar uma catástrofe ainda maior. Mas isso levou à divisão e à fragmentação das iniciativas.
Segundo matéria divulgada pela agência de checagem Aos Fatos, o ex-presidente se despediu do Palácio do Planalto com 6.685 declarações falsas ou distorcidas, perfazendo a média de 4,58 mentiras por dia.4 Apostando na técnica da repetição, estratégia ilícita usada de forma compulsiva pela máquina de propaganda de desinformação da extrema direita, das 6.685 declarações verificadas pela agência, 4.690 foram repetidas pelo menos uma vez. Apenas durante o período da pandemia, foram 2.511 declarações falsas ou distorcidas.5 Em 139 ocasiões, Bolsonaro mentiu ao afirmar que o STF o impediu de coordenar o combate à pandemia.6
O país sofreu também nas mãos de alguns ministros da Saúde incompetentes, que nunca adotaram uma política nacional de testagem em massa e não defenderam as vacinas. Os dados oficiais de casos e de óbitos sempre estiveram subnotificados, pois testávamos pouco e sem coordenação, o que serviu para mascarar a gravidade da pandemia. O Brasil estava entregue à própria sorte, nós estávamos por nossa conta, mas o esforço conjunto de nossas instituições e universidades públicas e de profissionais de várias áreas, incluindo jornalistas,7 fez toda a diferença. Foi necessária a união de muitas expertises e de muita gente boa para fazer aquilo que o governo federal não fez. Mas nós passamos dias tristes e amargos, o país deixou pouco mais de 710 mil vidas para trás (números provavelmente muito subnotificados) e milhares de famílias enlutadas. O que se passou no Brasil não pode ser esquecido jamais. A onda de negacionismo e desinformação científica que tomou conta deste país, gerada pelo gabinete do ódio e espalhada por pessoas conectadas à extrema direita do espectro político nacional, certamente causou milhares de mortes. A ideologia política contaminou totalmente o debate na área de saúde pública. Nós lutamos contra um delírio coletivo e muitos acham que a ciência saiu vitoriosa e fortalecida. Tenho algumas dúvidas a respeito e voltarei a esse ponto importante no Epílogo deste livro.
TÍTULO E SUBTÍTULO DO LIVRO
Não foi simples escolher um título e um subtítulo para este livro. Eram muitas as boas opções. Mas optei por duas frases que me marcaram muito durante a pandemia.
O título é inspirado em uma frase que citei bastante: Não há um mundo seguro sem ciência
. E foi título de um texto de minha autoria, escrito para o lançamento da REVISTAq – Uma publicação comemorativa dos 70 anos do CNPq, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).d
No dia 31/08/2021, recebi uma mensagem por e-mail do colega Brenno A. D. Neto, professor da UnB, me convidando para contribuir para esse número especial. Além de Brenno, assinavam a mensagem Normanda Morais (UNIFOR), Cristiane Porto (UNIT), Cláudia Figueiredo (UFRJ), Marcus Lacerda (Fiocruz), Raquel Minardi (UFMG) e Rodrigo Reis (UFPR). Voltarei a falar de Marcus Lacerda no capítulo 3.
A REVISTAq foi lançada em maio de 2021, durante o simpósio híbrido 70 anos de CNPq (1951-2021) – Passado, presente e futuro pensando e transformando o Brasil e foi desenvolvida em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC).8 O evento de lançamento, organizado para celebrar o aniversário do CNPq, foi realizado em Brasília, na sede da agência. Recebi o convite do CNPq e da ABC e foi com muita honra que escrevi um texto para esse número especial. A entrevista completa está reproduzida no texto 10 do capítulo 4.
O subtítulo deste livro peguei emprestado de parte do título de uma entrevista que dei ao jornalista Luiz Felipe Stevanim para a Revista Radis, da Fiocruz (texto 1 do capítulo 4), que destacou o meu trabalho durante a pandemia de covid-19: Só a ciência salva do obscurantismo – A luta de um cientista contra a pseudociência em tempos de pandemia
.
O Programa Radis de Comunicação e Saúde, criado em 1982, é um programa nacional de jornalismo crítico e independente em saúde pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). A entrevista que concedi foi publicada em 2021 e refere-se à reportagem da Radis especial de abril sobre negacionismo científico A negação dos fatos – Como o negacionismo atrapalha a busca da humanidade por saúde e conhecimento
. A introdução diz assim:
Luiz Carlos Dias tornou-se voz ativa no combate às fake news relacionadas ao novo coronavírus. Com um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele desmente informações falsas e medidas que contrariam a ciência em vídeos curtos que podem ser compartilhados nas redes sociais. Nesse momento, o Brasil é um ambiente muito propício para o espalhamento de mentiras e de narrativas anticiência, particularmente porque falta informação qualificada para a população
, afirma à Revista Radis. Luiz Carlos é professor do Instituto de Química da Unicamp, membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e integrante da força-tarefa da universidade no combate à covid-19. Ele defende que as políticas públicas devem se basear em evidências científicas que mostram a eficácia e a segurança