O mundo ao contrário em 80 dias
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Sobre este e-book
Este é um testemunho de experiências pessoais, familiares e profissionais de um anestesiologista equatoriano durante os 80 dias de quarentena que ocorreu em Quito, Equador, durante a pandemia da covid-19. Repleto de temas domésticos, médicos, técnicos, sociais e políticos, leva o leitor a situações objetivas do cotidiano às vezes escritas com um fino senso de humor. Também traz algumas ideias culinárias.
O prólogo e o epílogo são escritos com um alto senso de responsabilidade e sensibilidade dentro desta situação avassaladora que está afetando cada ser humano.
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O mundo ao contrário em 80 dias - JULIO ANDRADE LARREA
Prólogo
Este é um testemunho de tantos que existirão, de como eu, um dos 7,5 bilhões de habitantes do nosso planeta Terra, tenho tido que enfrentar e viver uma pandemia, para a qual pouco ou nada tenho estado preparado e como a vivi no meu próprio mundo e entorno.
Se há algo que tem feito com que nós, seres humanos, nos sintamos iguais pela primeira vez, tem sido este vírus, que não tem distinguido entre os cidadãos do mundo. Pobres ou ricos, brancos ou negros, amarelos ou pardos, cristãos, mulçumanos, judeus ou ateus, cultos ou incultos, altos ou baixos, gordos ou magros, jovens ou velhos, homens ou mulheres, do mar ou das montanhas, etc. Tem afetado a todos nós por igual e nos levado a viver dias de angústia, desolação, dor, medo e, inclusive, terror diante de uma situação tão inesperada e tão pouco compreendida. Como vamos viver assim que tudo isso terminar? Se é que termina... Como vai mudar nosso estilo de vida daqui em diante? As respostas não deixam de nos levar a uma incerteza própria de uma situação pós-traumática.
Meu nome é Júlio e sou o protagonista desta história. Tenho 54 anos e nunca havia enfrentado, em toda a minha vida, nada tão ameaçador nem surpreendente como o que estamos passando. Agora consigo entender um pouco das experiências vividas por pessoas de outras gerações que passaram por guerras, desastres naturais, inclusive pandemias que as obrigaram a aprender a ser resilientes. A sobrepor-se às adversidades. A ter fé na capacidade do ser humano de reconstruir seu mundo e a tratar de ser melhor e de fazer dele um lugar melhor para toda a humanidade. Não tenho muita certeza de que nós, seres humanos, tenhamos aprendido com o passar dos séculos a ser melhores, mesmo após enfrentarmos circunstâncias desastrosas como a atual. E isso me dá muita tristeza. É que talvez, depois das inumeráveis guerras fratricidas, dos inumeráveis desastres naturais, de tantas revoluções e tantos enfrentamentos ideológicos, deixamos de enfrentarmos uns aos outros? Deixamos o ódio racial, religioso ou social? Creio que não.
Agora que nestes 80 dias de quarentena, nos quais temos visto como o mundo praticamente ficou ao contrário e que nada vai ser igual daqui em diante, queria ser otimista e pensar que, como aprendi neste confinamento, o único que conta nesta vida, o único que vale, é o amor de teus entes queridos. O resto não importa. A solidão, o frio, a fome, o desespero de que tudo volte à normalidade, só pude superá-los graças ao amor de minha esposa, minha filha e meus entes queridos.
Como médico, tenho tido que enfrentar este vírus na linha de frente e a verdade é que não tem sido fácil. A angústia do paciente que não pode respirar. Sua falta de ar, seu sofrimento ao saber que pode morrer. O altíssimo risco de me contagiar só pelo fato de respirar o mesmo ar ou por ter que intervir em sua via aérea. As angustiantes condições de trabalho junto ao paciente, vestido com inumeráveis roupas, máscaras e protetores que te sufocam e não te deixam respirar, fazem com que realmente seja uma experiência um pouco mais que assustadora. Equiparável à que devem sentir os soldados diante de uma batalha. Creio que todos os médicos e enfermeiras do mundo temos sido realmente uns heróis nesta guerra e tomara que isto sirva de algo para que nós, profissionais da saúde, recuperemos esse respeito e consideração perdidos nos últimos anos em nossa profissão. Que fantástica é a vocação médica! Todos nós fomos preenchidos por uma coragem própria de guerreiros valentes e fortes. E que capacidade temos tido em apenas 80 dias, de ler, entender, aprender, conhecer e nos adaptarmos a esta nova enfermidade. Eu me sinto realmente orgulhoso de ser médico e de haver escolhido a Anestesiologia como especialidade. Muitos colegas morreram. É isso mesmo que acontece nas frentes de batalha e desde já dedico a eles este livro, que não é de caráter científico, mas sim um testemunho. A história de como um vírus transformou o mundo em apenas 80 dias que durou a quarentena na minha cidade...
Neste livro descrevo o que vivi dia a dia. Cheio de anedotas, pensamentos, sonhos, pesadelos, canções, alegria, tristezas e até receitas de cozinha...
SUMÁRIO
VÉSPERA DE ANO NOVO
DIA 1
17 de março de 2020
DIA 2
DIA 3
DIA 4
DIA 5
Sábado, 21 de março
DIA 6
Domingo
DIA 7
DIA 8
DIA 9
DIA 10
DIA 11
DIA 12
DIA 13
DIA 14
DIA 15
DIA 16
DIA 17
DIA 18
DIA 19
DIA 20
Domingo
DIA 21
DIA 22
DIA 23
DIA 24
DIA 25
DIA 26
Sábado de Glória
DIA 27
Domingo de Glória, Páscoa de Ressurreição
DIA 28
DIA 29
Hoje, de Plantão de Primeira Chamada
DIA 30
DIA 31
DIA 32
DIA 33
DIA 34
Domingo
DIA 35
DIA 36
DIA 37
DIA 38
DIA 39
DIA 40
DIA 41
Domingo
DIA 42
DIA 43
DIA 44
DIA 45
DIA 46
DIA 47
Sábado
DIA 48
Domingo, 3 de maio
DIA 49
DIA 50
DIA 51
DIA 52
DIA 53
DIA 54
DIA 55
Segundo domingo de maio: Dia das Mães
DIA 56
DIA 57
DIA 58
DIA 59
DIA 60
DIA 61
DIA 62
Domingo
DIA 63
DIA 64
DIA 65
DIA 66
DIA 67
DIA 68
Sábado
DIA 69
DIA 70
DIA 71
DIA 72
DIA 73
DIA 74
DIA 75
DIA 76
DIA 77
DIA 78
DIA 79
DIA 80
É quinta-feira, 4 de junho de 2020
30 DE JUNHO DE 2020
VÉSPERA DE ANO NOVO
O dia 31 de dezembro de 2019 seria uma data especial para mim. Logo após dois anos exercendo a liderança do serviço de Anestesiologia do hospital, essa noite seria a última como chefe e amanheceria no dia seguinte como um membro a mais do serviço. Foram dois anos muito difíceis, mas ao mesmo tempo muito gratificantes. Poder servir e dirigir um grupo de profissionais tão valiosos só podia me encher de orgulho.
Duas semanas antes, o diretor médico me falou: É hora de oxigenar o serviço
. E tinha toda a razão! Na verdade, creio que não poderia continuar mais um dia. Via a possibilidade de seguir como chefe tal qual como uma empresa para a qual me encontrava já muito desgastado e sem forças para continuar. Havia conseguido dirigir o serviço sempre guiado pelos valores que fazem um ser humano bom. Ser justo, prudente, forte e exemplar. E isso não pode agradar sempre a todos. As autoridades do hospital exigiam muito de nós e queríamos colocar limites àquelas exigências. Eu me sentia com a consciência tranquila, deixando o serviço em mãos de quem havia sido meu subchefe no último ano: Manuel.
Ao amanhecer, não podia imaginar que a primeira notícia internacional de 1º de janeiro deste novo ano 2020 fosse o comunicado de que uma cidade chinesa chamada Wuhan, que na verdade ninguém tinha ideia de onde estava, já havia apresentado alguns casos de pneumonia atribuídos provavelmente a um vírus, do qual não suspeitavam que pudesse ser transmitido entre humanos, mas que provavelmente se originava em um mercado de animais exóticos e de mariscos da cidade. Não creio que alguém pôde dimensionar o que esse comunicado significaria para os dias subsequentes. Apenas dez dias depois, a China informava sobre seu primeiro paciente falecido com essa pneumonia provavelmente causada por um vírus da família coronae, transmissível por via aérea. A China imediatamente deu voz de alerta e a Organização Mundial de Saúde (OMS) demorou até o fim de janeiro para declarar um estado de emergência sanitário a nível mundial.
Começamos a ver imagens na televisão que pouco a pouco foram impactando a comunidade mundial. A cidade de Wuhan totalmente fechada. Seus hospitais colapsados com enfermos em diferentes estados de gravidade. Contabilizaram-se centenas de mortos em poucos dias. Pessoas morrendo na rua e todo seu sistema hospitalar em emergência.
Com olhos e ouvidos incrédulos, soubemos que a China construiria um hospital de emergência para pacientes graves com mais de 400 camas em apenas 10 dias. Todos nós comentávamos o enorme poder econômico dos chineses e seu grande nível tecnológico para poder erguer o hospital.
A essas alturas, a OMS já havia dado um nome ao vírus. Ele se chamaria covid-19, ou seja, coronavírus, enfermidade do ano 2019. Uma notícia espantosa se difundiu nesses dias no mundo. Um médico chinês, oftalmologista, poucas semanas antes alertou as autoridades chinesas para a nova doença. Aquelas não o permitiram que continuasse insistindo em difundir o alerta. Seu nome: doutor Li. Em pouco tempo, todos nos espantávamos ao ver que ele inclusive foi preso por dizer a verdade! Era uma enfermidade altamente contagiosa e que necessitava uma ação imediata por parte das autoridades chinesas. Não conseguiu nada e poucos dias depois morria em uma sala de seu próprio hospital com falha multiorgânica. Dr. Li, uma homenagem à sua valentia!
No final de janeiro, veio uma notícia que comoveu todo o Equador. Havia chegado ao Hospital Eugenio Espejo um paciente vindo da China