Por dentro da pandemia: Deus e nossas dores
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Por dentro da pandemia - João Décio Passos
Sumário
Vivenciamos uma pandemia?
A negação da pandemia
Contaminação ou conspiração?
A pandemia como crise
Os discursos ideológicos
A pandemia na era da pós-verdade
A visão sobrenaturalista
A metafísica dualista
Os males da pandemia
O mal-estar universal
O pressuposto Deus como problema
Por que a pandemia?
Deus e o problema do mal
Deus e o mal
Deus dentro do mal
Jesus: enfrentar o mal praticando o bem
Sem conclusão: pelo bem, contra o mal
Bibliografia
Landmarks
Cover
Table of Contents
Apresentação
Eu sei que o meu protetor está vivo
e que no fim se levantará sobre o pó (Jó 19,25).
A pandemia provocada pelo Covid-19 apanhou a todos de surpresa. O mundo jamais tinha vivenciado uma experiência dessa proporção e, por certo, não havia pensado que um episódio do gênero aconteceria de fato, embora se tratasse de um evento possível, e até mesmo cogitado, ao menos hipoteticamente. De uma hora para a outra, o mundo teve que reinventar seu modo de agir e de ser para driblar a contaminação trazida pelo vírus e evitar a saturação dos sistemas de saúde com os doentes mais graves. As rupturas da rotina, do estabelecido, do estável e do supostamente imutável se impuseram e mostraram suas necessidades implacáveis. A pandemia despertou os mais variados sentimentos e provocou múltiplas leituras. Mentiras e verdades, pânicos e indiferenças, crenças e dúvidas, certezas e incertezas, ódio e amor foram sentimentos que estiveram presentes na sociedade, enquanto todos tentavam elaborar a experiência inédita.
Hoje a pandemia é mais conhecida do que no início do ano de 2020. Sabemos mais sobre o processo de contaminação, os modos de controle e as consequências já evidentes da paralisação mundial. Os números ensinaram com suas somas e curvas de crescimento. Os mapas de cada região expuseram os mais vulneráveis e os mais protegidos, os sistemas de saúde mais robustos e mais precarizados, as posturas políticas mais e menos humanas. Os modos de gestão da pandemia revelaram também os mecanismos mais ou menos eficientes. As ciências avançaram na busca de uma vacina e, por conseguinte, acumularam novos conhecimentos sobre as particularidades do novo coronavírus. E não há dúvidas de que também personagens políticos e religiosos revelaram seus modos de encarar a grande crise, com qual critério compreendiam os fatos, assim como passaram a sugerir alguns meios de controle adequados. Hoje conhecemos melhor como muitos personagens públicos pensam e a partir de quais valores se orientam. A pandemia mostrou também as fragilidades instaladas nos regimes econômico e político praticados no planeta e em localidades específicas. O vírus trouxe à tona realidades escondidas, revelou verdades esquecidas ou desconhecidas.
Na verdade, a pandemia não foi e não é, por si mesma, uma ideia que se apresentou ou se apresenta como acabada; um conceito que nasceu pronto e se impôs com um significado único para todos. Como todas as ideias, ela foi construída socialmente e, em boa medida, ainda está em construção. Em muitos aspectos será ainda completada, à medida que tomarmos distância dos fatos e contarmos com os resultados das vacinas e com os balanços das consequências econômicas e políticas que ainda assumirão configurações mais definidas. Parece certo que as ciências tiveram um protagonismo central na construção do imaginário coletivo sobre a pandemia. As explicações e as estratégias de controle construíram rapidamente a ideia de uma crise sanitária planetária inédita e ensinaram os mecanismos básicos de controle do contágio. As mídias exerceram também um papel fundamental, quando divulgaram e ofereceram versões sobre os fatos. A pandemia foi globalizada não somente como um rápido contágio de um vírus que se espalhou pelo planeta, mas também como imagem universal construída pelas mídias na era da informação globalizada. A imagem do vírus, com sua rápida expansão e com sua força letal, bem como a imagem do mundo em quarentena foram onipresentes no planeta. O mundo vivenciou uma experiência de consciência planetária da crise inédita. Todos vivenciaram sincronicamente os dramas de um mundo em crise.
Contudo, a pandemia ainda é interpretada de diferentes maneiras e encarada com estratégias distintas, em função de crenças e conhecimentos adotados por grupos e indivíduos. Embora as ciências tenham exercido seu protagonismo na construção de uma ideia científica da crise sanitária, outras leituras se fizeram presentes, inclusive a que tratou de negar a realidade da pandemia. A era da informação facilitou, sem dúvidas, a divulgação de leituras dissonantes sobre o fato, por meio das bolhas de verdade que se organizam nas redes sociais. A guerra de informações demarcou as mídias clássicas e novas, de modo particular no Brasil. Não faltaram fake news dedicadas a divulgar suas verdades
sobre o assunto. Autoridades políticas participaram dessa batalha, a começar do presidente da República.
Por certo, depois da pandemia, os usuários das redes e também os receptores das mídias clássicas saberão perceber com maior realismo a existência da diversidade de interpretação e as intenções e interesses que estiveram em jogo nos diversos discursos mentirosos e verdadeiros. E os fatos consolidados ensinarão a discernir de modo mais seguro o falso do verdadeiro.
O que aconteceu com o planeta? Como já ocorreu em outras grandes crises, a clareza dos fatos se encontra quase sempre no futuro. Quando tudo passa e os conhecimentos sobre os acontecimentos se aprofundam, a verdade se mostra de modo mais claro e objetivo. No futuro todos saberemos explicar com mais exatidão o que aconteceu conosco naqueles meses do ano de 2020.
As formas de vivenciar e interpretar a pandemia constituem o objeto das reflexões desta pequena publicação. A pandemia é, antes de tudo, um fato biológico que deve ser entendido e explicado pelas ciências que se dedicam à questão: a biologia, a virologia, a epidemiologia etc. No entanto, não somente pelo fato de todas as ciências serem sempre uma construção humana, mas antes pelo fato de as pandemias ocorrerem em determinadas condições históricas (econômicas, sociais, tecnológicas) e dentro dessas condições provocarem impactos sobre a vida humana e também aí serem interpretadas, as reflexões das ciências humanas se mostram necessárias para a compreensão do fenômeno. Aliás, não menos necessárias que as ciências da saúde. A pandemia é uma crise sanitária humana. A própria noção de pandemia tem um significado humano que vai além da mera definição biológica e social, na medida em que contém em seu conteúdo uma dimensão ético-política como constatação que visa oferecer a proteção social do contágio. A pandemia é uma declaração que tem como objetivo mapear para proteger as vidas em risco: constatação das ciências da saúde, apelo ético pela vida e decisão política.
A luta interpretativa que se instaurou em nosso país, sobre a existência ou não de uma pandemia, é um exemplo claro do fundo ético do debate: salvar economia ou salvar vidas? Revelar a crise sanitária por que, para que e para quem? E, por certo, a pergunta escondida e silenciada pelo sentido do sofrimento e das mortes que se tornaram parte de nossas rotinas, gerou incômodos. As lágrimas derramadas diante do imponderável das vidas ceifadas e dos limites dos sistemas de saúde vieram a público sem disfarces e com grande frequência. Cada pranto interroga os discursos prontos sobre o sentido do sofrimento e da morte. No fundo das interrogações silenciosas dos prantos, elevam-se, como grito sem solução, as perguntas: Por que a pandemia? Por que a dor e a morte? E o grito supremo: Quem nos salvará?
As reflexões que seguem estão centradas em três interrogações decorrentes umas das outras e compostas de questões transversais que vão sendo retomadas, em busca de aprofundamento em cada um dos tópicos desenvolvidos. A atenção e a paciência do leitor são importantes para avançar a cada passo na compreensão da pandemia: a realidade dos fatos, as interpretações e os grandes questionamentos. No meio desses é que se elevam as eternas perguntas sobre o significado do mal e da bondade de Deus.
A primeira interrogação retoma a pergunta sobre o que aconteceu? Ainda é preciso perguntar de novo se houve uma pandemia? As dúvidas e negações parecem justificar essa recolocação. Olhar com atenção a realidade é fundamental, como primeiro passo de qualquer estudo sobre a vida de um modo geral. Mas é também importante para sustentar as posturas éticas. Afinal, o que os olhos não veem, o coração não sente. E o que o coração não sente pode gerar indiferença e omissão perante a dor do outro.
A segunda interrogação busca explicar os modos de operação dos discursos que interpretaram a pandemia e responde pelo como? As explicações mais imediatas dos acontecimentos escondem posturas e percepções mais amplas e profundas que merecem ser examinadas. Aí se encontram as metafísicas
que sustentam algumas explicações, quase sempre elaboradas na lógica do popular e com o intuito de oferecer soluções imediatas. Compreender a lógica e os interesses escondidos por debaixo dos discursos é uma tarefa necessária, sobretudo na era da informação.
A terceira questão chega à pergunta tão antiga quanto atual sobre quem é o responsável? Nessas últimas reflexões são colocados os problemas do mal e de Deus. Como o Deus que é bom