Concerto para Quatro Mãos
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Sobre este e-book
CONCERTO PARA QUATRO MÃOS é um romance sobre a experiência de se ter um irmão. O personagem, ao perceber-se numa situação muito desesperadora, repassa mentalmente toda a sua vida e nota que, em todos os momentos, sempre esteve acompanhado de alguém que testemunhava sua existência. Não se trata de um conselheiro, de um grande amigo , mas de uma presença constante. A prova de que existiu.
Henrique Komatsu
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Concerto para Quatro Mãos - Henrique Komatsu
Gangorra ou História Triste
Henrique Komatsu
Copyright 2010 by Henrique komatsu
Smashword Edition
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Ao meu irmão,
pelo testemunho que
- de tão extenso e ininterrupto -
tornou-se cumplicidade
no tribunal da existência.
- "O que me pedes? Uma prova? Estás louco? Não vês que sou um velho de setenta e nove anos? Como diabos poderia eu provar-te que já tive infância, que já fui, um dia, criança?".
- E teus pais...
-Mortos, há tempos... pedes-me um tempo perdido
.
- ... acaso não te deram um irmão?
.
SASKO MANEV, O Néscio.
I
O carro, um Volkswagen de quase onze anos, seguia à margem direita da linha amarela e tracejada que dividia a pista. Ambos, traços e pista, aparentavam ser intermináveis e retilíneos. A estrada parecia algo vivo, tamanha a obstinação com que se mantinha alinhada ao horizonte – num ângulo reto: era a morosa mediatriz do infinito.
Havia uma vontade pichada no asfalto, a enorme ânsia dos homens em vencer as distâncias. A menor distância entre dois pontos? Uma reta. Algum espírito a havia traçado sobre a superfície duma carta geográfica e agora ela se estendia ali, quilométrica, engenhosa, diante de nós, do velho automóvel e nos três retrovisores. Vazia, como no mapa.
Sentado no banco do carona, com o braço direito estendido para fora, eu alimentava uma secreta satisfação em fazer parte do mundo civilizado e capitalista capaz de construir... tudo. O sol seguia ao nosso lado direito como uma grande fragata amarela, entardecendo toda a paisagem. A velocidade constante fazia com que eu me perdesse em pensamentos mais e mais longínquos; cada vez menos precisos, trazidos e levados pelo vento morno e entorpecente que inundava o carro.
Já quase dormia quando, de repente, ouvi um ruído assustador que me trouxe de volta a mim. Seguiu-se um baque. A estrada e todo o horizonte moveram-se num rasgo para a esquerda. O Sol, que há pouco caía à nossa destra, subitamente nos encarava, cegando-me. Que diabos estava se passando? A dúvida durou um átimo.
O Volkswagen girava na pista como um pião. Um som agudo, dos freios, mantinha-se absoluto sobre todas as outras sensações. Meu corpo, ainda que atado ao cinto de segurança, chacoalhava violentamente. Minha mão direita agarrava-se com todas as forças a uma alça fixada no teto do carro, quase a ponto de arrancá-la, enquanto a canhota, tola, segurava minha própria perna, como se esta fosse um ponto de apoio.
Tudo acontecia muito rápido, era o mundo vomitando sua realidade, mas, visto que o cérebro estava sempre um passo atrás dos acontecimentos, as coisas pareciam mover-se em câmera lenta – o planeta parecia valsar. A estrada passou uma segunda vez pela janela, como um ponteiro, e a ela seguiu-se, mais uma vez, o Sol. A fragata perdera o oeste... ou fôramos nós?
Era assombrosa a violência do movimento. O cheiro de borracha queimada...
Enquanto girávamos, olhei para o lado e vi meu irmão, agarrado ao volante, tenso até as sobrancelhas.
Há muito tempo atrás, ainda com oito anos de idade e morando numa pequena cidade do interior, recebi, junto com meus colegas de classe, a seguinte tarefa: deveríamos entrevistar um adulto. Não qualquer adulto, mas um que tivesse a profissão que gostaríamos de exercer quando crescêssemos. A tarefa nos tinha sido dada ao final da aula e deixou-me muito preocupado. Voltei para casa pensando no assunto e passei todo aquele dia sem conseguir tirá-lo dos miolos.
O que me perturbava era o fato de eu não conhecer ninguém quem pudesse entrevistar. Naquela idade não sabia bem ao certo o que gostaria de ser, mas nutria algum interesse por dinossauros e naves espaciais. Ou seja, teria que conversar com um paleontólogo ou um astronauta; justamente a classe de mão de obra que o mercado do interior, à época, apresentava certa escassez.
A cidade onde morávamos era margeada por um rio, ao final do qual estava sendo construída uma usina hidrelétrica; possuía cerca de quinze mil habitantes e sobrevivia, principalmente, da pesca esportiva e de uma companhia de energia pertencente ao governo estadual.
O comércio, o centro financeiro (um banco estatal e o escritório de um agiota) e parte dos serviços comunitários – dentista, posto de saúde, delegacia, prostíbulo e igreja (evangélica) –, estavam concentrados na via principal. Esta se chamava Avenida Brasil, uma das poucas asfaltadas e certamente a única com placas legíveis e iluminação adequada. Nada alarmante, visto que a frota de carros da cidade era superada em muito pela de pedestres ou bicicletas.
A única biblioteca pública ficava dentro do prédio da prefeitura, uma construção da década de 50 que não possuía nem imponência nem seriedade, parecia algo descartável, um brinquedo. Ali dentro, metade das obras era sobre pesca: molinetes, iscas artificiais, motores de barcos, etc e a outra metade eram relatórios técnicos sobre os índices pluviométricos da região. Havia um ou outro livro didático desatualizado, perdido nas prateleiras.
Assim, os garotos que sonhavam em pescar o maior tucunaré do século ou os que queriam trabalhar na usina para poderem pescar durante o trabalho, estes não tinham que se preocupar com o dever escolar. Provavelmente teriam algum parente ou amigo da família com quem conseguir a entrevista. Eu, todavia, estava em sérios apuros, minhas pequenas mãos suavam só de pensar no assunto.
Aquela tarefa corroia-me por dentro. Como gelo nas