Forma fácil e prática de enxugar gelo: Canção para ninar o Zeca
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Sobre este e-book
José Maria Soares Viana
É maranhense, 75 anos , poeta, músico e compositor. Publicou pela Quártica três livros: HISTÓRIA E ESTÓRIAS DE SERENATAS (2008, sua biografia através da sua memória musical), CHICO PEDREIRA - O AGENTE ESPECIAL (2009, sua segunda ficção) e O VALE O OURO BRANCO(2010, seu primeiro livro escrito ).A LOIRA DO CEMITÉRIO é sua quarta publicação pela editora.O escritor possui ainda um livro não publicado: A ILHA DAS PIRANHAS.
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Forma fácil e prática de enxugar gelo - José Maria Soares Viana
FORMA FÁCIL E PRÁTICA DE ENXUGAR GELO
(CANÇÃO PARA NINAR O ZECA)
Há coisas que acontecem no longo percurso da vida que nem o tempo consegue apagar de nossa lembrança, mesmo que tenha transcorrido uma vultosa quantidade de anos. Bem a propósito, foi exatamente uma dessas antigas verdades que, em certo e inesperado momento, veio à tona das profundas e tumultuadas águas do mar de meus pensamentos. Decorrida há quantos anos?... Precisamente, não sei! Apenas faço uma ligeira ideia, sem expor... O certo é que naquele justo, exato e decorrido (mas longínquo) instante o meu filho José Maria, meu único varão – que, à época, não contava mais que oito anos de idade –, a quem, íntima e carinhosamente, eu chamo de Zeca, aproximou-se de mim com uma pergunta no mínimo estapafúrdia e sem nexo, quando disse:
– Papai, como é que a gente faz pra enxugar gelo?
De imediato, eu tomava uma iniciativa na qual tentava dar uma séria, correta e necessária resposta, enquanto explicava:
– Gelo não se enxuga, Zeca! Gelo é feito de água!... Por isso, ao menor calor, ele se derrete e outra vez volta a ser água. É uma coisa que não se faz, meu filho!...
– Faz, sim, velho!... – no mesmo instante, contradizendo-me, afirmava o meu pequeno rapaz, falando mais alto que o necessário. E no mesmo tom, ainda me dizia com ativa convicção: – ... Tu não ta és sabendo mais de nada!...
Surpreso com o comentário do menino, principalmente pela maneira agressiva com que ele o tinha feito, eu, ao invés de zangar-me, o que seria a reação mais natural, degluti uma saliva inexistente e, a todo custo ou às duras penas, procurei me controlar. Porquanto, de incontinente maneira, veio-me uma fria intenção – até mesmo pela curiosidade – de descobrir o motivo daquela sua momentânea e desnecessária agressividade. No entanto, se eu perguntasse diretamente ... Por quê?...
, era certo que receberia uma resposta inadequada. Então, valendo-me de minha versatilidade humana, busquei a própria astúcia e procurei dar um tom de indiferença na voz, ao indagar:
– Qual foi o colega que te falou isso, Zeca?
– Não, papai!... Foi assim. Eu tava na casa do Henrique, aquele meu amigo que mora na Rua da Palmeira, quando ele pediu dinheiro à mãe dele pra entrar no circo, certo?... Mas o pai dele, seu Raimundo, escutou... E como seu Raimundo sabia que a mulher não tinha o dinheiro e vinha pedir a ele, na mesma hora, brabo feito uma fera, gritou pra ela:
– Francisquinha, manda esse moleque ir enxugar gelo, mulher!
– De que jeito, Raimundo?... – perguntou a mãe do Henrique... Mas perecia que ela tava com medo do homem.
– Esse moleque se vira, Francisquinha!... Manda ele se virar, mulher! – outra vez gritou o pai do Henrique, agora mais alto do que da primeira vez, e parecia que ele, o tal de seu Raimundo ia soltar fogo pela venta, feito aquele dragão do filme!...
O Zeca fez uma pausa, tranquilo e com ares de satisfeito como quem tivesse realizado um desencargo de consciência. Mas, a seguir, expressando a verdade, confessou:
–... Até eu fiquei com medo, papai!
Naquele momento, diante da seriedade com que meu filho relatava os fatos nos quais ele se estribava para expressar a sua férrea opinião, o seu firme ponto de vista, o meu esforço para manter a seriedade foi ainda maior que da vez anterior, pois o meu desejo, quase incontrolável, era explodir numa gostosa gargalhada. Contudo, talvez pelo mesmo excesso de inocência que o Zeca acabava de demonstrar em sua credulidade, esse meu impetuoso desejo de gargalhar cedeu vez e espaço a outro tipo de gozação. E de repente estava decidido que seria, uma brincadeira a qual, embora contivesse um pouco de mau gosto, eu iria fazer com o meu rapaz.
– Ah, Zeca!... – principiei eu. –... Que cabeça esta minha, rapaz!... – continuei meio sem graça. –... Como é que eu não me lembrei antes, meu filho?...
– De que, velho?... – perguntou-me ele, com a voz alterada e os grandes olhos (uma herança materna) quase a saltarem das órbitas.
Meio constrangido pelo fato de me obrigar a mentir – sem-cerimônia, descaradamente... – para meu filho, mesmo sendo aquilo por força de uma brincadeira, eu, mesmo assim, tentando enfatizar uma falsa seriedade, respondi:
– De uma forma fácil, fácil de enxugar gelo, rapaz!
De maneira admirável, o Zeca nada comentou!... Mas eu notei que o meu pequeno rapaz se animava, pois dava um passo à frente para se aproximar um pouco mais de mim, enquanto os seus grandes olhos – que, então, ainda eram azuis – denunciavam a sua ansiedade pela explicação que, certa e precisamente, eu – seu pai – teria de dar. De tal modo, eu, que jamais fui um especialista em contar mentiras, agora me encontrava na inevitável obrigação de exercer tão ingrata e desagradável empreitada! E logo para quem? Para uma criança!... Para o meu único filho!... Um verdadeiro e legítimo beco sem saída!
Contudo, considerando que, embora fosse de puro mau gosto e totalmente despida de graça, tratava-se de uma brincadeira, tentei sufocar o escrúpulo e engendrei no rosto uma seriedade que me estava a quilômetros, para em seguida expor o meu relato de meia-tigela
, dizendo:
– É simples, rapaz! Basta que se ponha uma barra ou vários cubos de gelo encima de uma mesa, que deve está sobre um piso cimentado, plano e, se tiver uma inclinação, tanto melhor. – O Zeca sequer pestanejava, e eu continuei: – A seguir, a gente tem de ter a paciência de esperar até que o gelo retorne ao seu estado natural, ou seja, se converta em água outra vez e escorra pelas bordas da mesa para o piso. Bom!... – Emiti um suspiro de pura cretinice, antes de concluir: –... Aí, com um pano de chão, é só a gente absorver o líquido, a água resultante da operação...
A essas alturas, eu – que contava a aquela estória deslavada e sem a mínima graça, enquanto olhava para o dedão do meu próprio pé – suspendi os olhos para fixá-los em meu filho e só então constatei que desde há muito estava falando sozinho!... Ou então, mais precisamente, já que tinha as vistas dirigidas para baixo, eu estava conversando com as lajotas miúdas do piso da casa...
O Zeca já seguia lá no final da sala... E era visível que o meu pequeno rapaz ia contrariado pela decepção que lhe causava o desfecho daquela brincadeira de puro e total mau gosto – na qual eu, seu amado e admirado pai, ora tentava lhe envolver –, pois ele aplicava contínuos piparotes na própria orelha! O mais importante de tudo aquilo, no entanto, era que, apesar de ser uma criança, meu filho acabava de demonstrar, principalmente para mim, que não era – nem nunca seria – um ilustre panaca, um refinado idiota!
UMA DESCOBERTA MACABRA
(Ossos do Ofício)
– Papai, papai, eu achei!... – gritos estridentes e nervosos davam-me a certeza de que meu filho José tinha encontrado alguma coisa, surpreendente ao extremo, em pleno monturo do nosso um tanto vasto quintal. Tinha de ser mesmo algo inusitado e bastante aterrador, visto que, de forma alarmante, demonstrando um desmedido pavor, o Zeca continuava gritando: ...Papai, papai, eu achei!... Papai, eu achei!...
Assim, apanhado de surpresa, não me restou alternativa a não ser correr para o local! Contudo, ansioso a mais não poder, enquanto me movimentava com a rapidez que conseguia imprimir às minhas longas pernas, eu, também gritando, perguntava:
– Achou o quê, meu filho?!...
– Um montão!... De osso!... – titubeou o meu pequeno rapaz. –... A Luciana correu quando eu mostrei pra ela, papai!... Como é mesmo que a gente chama aquilo, aquele bocadão de osso?... – perguntou-me.
– Esqueleto?!... – respondi, chutando, meio que sem ter certeza.
– Isso, papai!... Um esqueleto de gente!... – confirmou o Zeca, um pouco mais calmo, pela minha proximidade, por certo.
No entanto, quando já me aproximava do exato lugar, senti que alguma coisa atrapalhava o movimento da minha perna direita e descobri a Luciana aferrada em minha calça. Era visto que, poucos minutos antes, sobrecarregada de pavor em face da proximidade e à vista da macabra descoberta, minha filha tinha fugido. Imediatamente após, levada por uma curiosidade doentia, ela pegava carona na minha presença, retornando ao sinistro local. E, desse modo, agora ela se encontrava totalmente escorada nos próprios calcanhares!
Ele estava lá! Numa cova rasa, em pleno monturo de chão preto e úmido!... De tão pequeno, podia-se afirmar que, sem a menor sombra de dúvida, pertencia a uma criança! Então, à vista daquele diminuto esqueleto, veio-me à lembrança a verdadeira história daquele esquisito – mas extremamente doloroso! – fato. A verdade é que, antes de eu construir a nossa casa, naquele mesmo lugar existia outra morada na qual, por alguns meses, residiu uma família cuja filha, na tenra idade, viera a falecer... Apenas eu nunca saberia –