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Perna de Magia
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Perna de Magia
E-book433 páginas6 horas

Perna de Magia

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Sobre este e-book

Toni Maro é um jovem com uma doença incurável, problema que lhe ocasionou a perda de uma das pernas. No entanto, com o uso da magia, uma antiga arte esquecida no mundo de Novea, ele é capaz de recriar uma perna de pura energia. Mas a doença continua avançando, ameaçando sua vida. Lutando contra o tempo e sem melhores opções, Toni embarca junto com sua irmã Renata numa jornada incerta em busca de um gênio, o ser mágico que segundo a lenda, concede um único desejo a quem o convocar. Os irmãos contarão a ajuda de uma companheira misteriosa, Irene, a Dragoa das Águas, cujas intenções dúbias levantam dúvidas quanto ao seu caráter.
Quando Toni descobre que Elias, um mago milenar, também está atrás do gênio, pode ser tarde demais.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de mar. de 2015
ISBN9781310639012
Perna de Magia
Autor

Priscila Barone

Sou apenas uma viajante do tempo que busca o sentido da vida, do universo e tudo o mais. E já descobri que é 42.

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    Pré-visualização do livro

    Perna de Magia - Priscila Barone

    Prólogo

    Decida-se garoto. Hihihi. A vida é sua mesmo.

    O menino estava exausto, derreado. Arrastara-se por horas floresta adentro, no escuro e com aquele ruído perturbador ecoando por todo o céu, carregando a perna inútil.

    O som era como um rugido, intermitente, com um tom metálico. Parecia uma máquina gigantesca trabalhando, tão grandiosa que o eco se perdia por vários quilômetros. Mas o garoto mal percebia.

    As roupas estavam imundas, os joelhos esfolados, as unhas quebradas e negras de lama. Os braços magros exauridos, mal podia movê-los. Porém, por mais que rastejasse, por mais que fugisse, não conseguia livrar-se do peso da culpa.

    Era um inválido agora, e quando sua família mais precisou dele, nada pôde fazer. A raiva e o desespero fizeram com que se embrenhasse naquela floresta. Mas, passada a raiva, só lhe restava o desespero.

    Gritou, chorou e se contorceu. Terra entrou em sua boca e olhos. Ele cuspiu, esfregando as pálpebras. E quando olhou à frente, percebeu que não estava sozinho.

    A princípio, achou que fosse alguém segurando uma lanterna, pois a figura o ofuscava. No entanto, prestando mais atenção, notou que o brilho vinha do corpo inteiro da pessoa. Não parecia de fato uma pessoa, mas era algo com um tronco humano. Havia também uma extensa cauda ofídica.

    A coisa emitia uma luz uniforme. Seu corpo parecia ectoplásmico, mas a expressão do rosto era inconfundível, pois apesar de seus olhos serem apenas dois filetes negros, a boca gigantesca rasgava a face num sorriso repleto de dentes muito afiados. Se sorria de alegria, de euforia, de felicidade ou sentimentos menos nobres, isto seria uma incógnita para qualquer um que o visse.

    — Que som agradável esse que ecoa, não? Dia de acontecimentos grandiosos. — O ser parecia refletir enquanto mirava o céu. — Posso livrá-lo desse membro inútil, assim evitando que morra em breve, menino. Gostaria de devorar essa sua perna. Em retribuição, posso lhe ensinar um truquezinho. Vai me agradecer muito depois.

    O garoto não podia mais articular os pensamentos de forma coerente. Só sabia que deveria sentir medo, porém não conseguia. Aquela perna era de fato imprestável, nunca mais funcionaria de novo. E ainda por cima, com certeza diminuiria seu tempo de vida.

    A coisa meio-gente, meio-cobra o apressou, cobrando para que se decidisse logo. Sem pensar muito, ele aceitou e pediu que o ser fosse em frente. Então, aquilo enfiou a perna toda na boca, até a altura da coxa. A garganta fantasmagórica não tinha fundo. Deu um último aviso ao garoto.

    — Vai doer, mas, sabendo de quem você é filho, acho que aguenta.

    E pressionou a mandíbula afiadíssima na carne tenra.

    Um grito lancinante na floresta se uniu ao rugido metálico do firmamento.

    01 – Encontros e esperança

    Era uma bela manhã. O sol se erguia lentamente no céu, brilhante, cálido. Trazia o conforto e a promessa de um dia inspirador. A temperatura agradável, num dia onde se pode apenas usar roupas leves e sentir a brisa bater no rosto.

    O navio singrava pelos céus sob aquela luminosidade, a excelente madeira absorvendo um pouco do calor, que parecia lhe dar vida, quase como se estivesse respirando. Era mágica, aquela madeira.

    A moça de olhos claros apenas observava a paisagem lá embaixo. As montanhas verdejantes passavam lenta e suavemente, enquanto o vento agitava seus cabelos negros como carvão. Ouvia-se somente o som da caldeira funcionando e do vapor sendo lançado na atmosfera para colocar a nau em movimento. Ela fechou os olhos para melhor aproveitar o momento tão relaxante. Eram raras as ocasiões em que podia apenas ficar meditando, devido principalmente à sua personalidade agitada.

    O oscilar da embarcação criava um ambiente sereno, fazendo com que a jovem quase adormecesse em pé, com a mão sobre o leme, em paz. Foi quando o estrondo da porta da cabine se abrindo e batendo com violência na parede oposta fez seu coração falhar uma batida.

    Um vigoroso rapaz saiu de lá de dentro, enchendo os pulmões de ar e andando rapidamente até a garota de olhos claros. As madeixas dele eram do mesmo tom negro da companheira, embora com um corte bem rente à cabeça, e um minúsculo topete próximo à testa. Usava roupas de viagem. Um sobretudo branco coberto de botões envolvia uma blusa de zíper e calças leves. Deixou que a luz do sol lhe inundasse o rosto, aproveitando o calor. Os olhos castanhos, muito claros, cintilavam de animação. Chacoalhou as pontas dos dedos e com eles esfregou as pálpebras, como se acabasse de despertar. Com efeito, soltou um audível bocejo. Caminhou até a diminuta proa e, chegando à amurada, colocou sua perna esquerda sobre ela, que ficou imediatamente iluminada por um brilho azul fosco. Na verdade, esta descrição é inapropriada, pois ele não possuía a perna esquerda. Esta fora seccionada na altura da coxa. Em seu lugar havia um espectro luminoso que tomava a forma do membro ausente, com consistência suficiente para sustentar o peso de seu corpo. Era, de fato, uma perna feita de magia.

    Toni se sentia ótimo naquela manhã, e sua perna mágica reagia de acordo, brilhando intensamente.

    — Você parece bem hoje, Toni.

    — E estou mesmo, Ren. Dormi que foi uma beleza.

    — É por isso que dizem que a noite é feita pra dormir.

    — Ah, qualé, Ren! Sabe que nós temos que encontrá-la...

    — Não sabemos nem se ela existe... — desabafou Ren, desviando o rosto de seu irmão de sangue, encarando o horizonte.

    Toni retirou o espectro da amurada, percorreu a distância que o separava da irmã e a segurou pelos ombros, fazendo com que ela olhasse para ele.

    — Renata, acredite, ela existe.

    — Hum, você só me chama de Renata quando a coisa é séria. Ok, Antonio, vamos continuar seguindo em frente.

    — Aff!! Toni, por favor.

    — Ren, por favor — arremedou a jovem de olhos claros. Eles já estavam naquela busca havia algum tempo. Desde que seu irmão enfiara na cabeça que a Tecedeira existia.

    O conto da Tecedeira era um dos mais antigos na terra de Novea. Datava da Era dos Magos, o que significava que possuía ao menos dois mil anos. Não passava de uma história da carochinha, narrada para que as crianças dormissem ou se assustassem. Desde que o mundo era mundo, a lenda existia. Tratava-se de uma das guardiãs daquela terra. Dizia-se que vivia isolada numa montanha alta qualquer, era dona de um péssimo humor e que sua principal atividade era tecer a vida. Tanto coisas boas, como ruins. Gostava de realizar seus afazeres em paz, e se por algum motivo fosse perturbada por algo ou alguém, geralmente o infeliz tinha o seu fio de vida cortado. Contava-se também que, às vezes, quando ficava realmente muito aborrecida, ela arrebentava a linha e a emendava de novo. Ninguém sabia se o resultado final disso seria um morto-vivo, um vampiro ou um zumbi. Histórias desses três seres também não faltavam em Novea.

    Porém, segundo uma fonte não muito confiável, a Tecedeira existia de fato. Contudo Toni passou a encarar aquilo como verdade, porque era a última esperança que lhe restava para resolver o problema que o assolava. Ren sabia que o irmão mais novo era assim mesmo: quando colocava algo na cabeça, poderia ser a coisa mais absurda do mundo, o tolo acabava por levar muito a sério.

    Portanto, se Toni fazia questão de encontrar a Tecedeira, iria com ele. Claro que não foi fácil para o rapaz quando ela anunciou que o acompanharia. Mesmo sendo o mais novo, ele tinha um excesso de zelo pelas mulheres da família. Era o único homem, e mesmo não colocando isso em palavras, se sentia no papel de protetor das demais. Mas isso não importava para Ren. Ela sempre vencia pelo gênio ruim. Além do mais, não poderia deixar que o irmãozinho fosse sozinho. Afinal, desde criança Toni inspirava cuidados. Ele sempre tivera problemas motores. Aos dois anos de idade, era possível notar que não possuía muita firmeza nas pernas. Vivia levando tombos e se machucando. Havia um enrijecimento nos braços e mãos, mas nada tão gritante quanto os membros inferiores.

    A mãe, Amanda, e a irmã mais velha, Adriana, cuidavam de Toni da melhor forma possível. Ren era advertida a tomar cuidado com o caçula, mas sendo apenas um ano mais velha que ele, não tinha muita noção de condescendência.

    Por isso eles brincavam e corriam, pulavam e se divertiam, até que Toni não pudesse mais andar ou a mãe descobrisse. Tirando o pequeno problema de saúde do garoto, a vida deles fora tranquila e feliz.

    Até que um dia, ao completar 15 anos, o rapaz perdeu completamente os movimentos da perna esquerda. Esse foi apenas o estopim de uma tragédia familiar, que mudou a vida da família Maro. Toni, Ren, Adriana e Amanda nunca mais foram os mesmos. Por mais que os anos passassem e todos estivessem bem, a cicatriz ainda ardia em algum ponto de suas almas.

    Em meio ao caos que reinou nesse período, Ren achava que Toni ter aprendido a produzir uma perna de pura magia foi uma das melhores coisas que lhe aconteceram, depois de tudo o que a família enfrentara.

    É preciso que se diga que em Novea a magia não era comum entre as pessoas medianas. Todos a conheciam, sabiam do que se tratava, mas a consideravam algo fantástico, assim como consideravam a Tecedeira um mito. Para a maioria, tratava-se de uma ciência oculta a qual poucos indivíduos tinham acesso. Mas alguns raros homens e mulheres possuíam aptidão natural para o seu uso, e acabavam aprendendo sozinhos, ainda que sem técnica e refinamento.

    O que os habitantes de Novea dominavam bem era a força das máquinas e do vapor. Era a tecnologia que movia o mundo, o que eles podiam controlar. Por isso havia desconfiança das pessoas que utilizavam magia. Não existia animosidade declarada contra eles, mas no imaginário coletivo, habitava a máxima de sempre tomar cuidado com elementos que podiam manipular as forças da natureza.

    — Beleza então, Ren! Segundo as últimas informações que obtive, a Tecedeira vive em algum lugar neste quadrante de Novea! — exclamou Toni, arrancando Ren de suas lembranças melancólicas.

    — Até onde eu sei, ela pode estar neste quadrante ou em qualquer outro num raio de mil quilômetros... Qual a diferença deste para os outros que já verificamos?

    — A diferença é que não verificamos este! – replicou um sorridente Toni. — Você precisa ter mais paciência, irmãzinha.

    — E você precisa de um soco no meio da fuça. Ei... espera. Que diabos é aquilo?

    Toni mirou onde Ren apontava. Além do navio, no meio do ar, havia alguém. Mais especificamente, uma mulher. Ela parecia flutuar. Claro que um barco a vapor flutuante era um meio de transporte não usual naquela terra. Mas uma pessoa suspensa no ar era totalmente impensável.

    A mulher não se mexia, apenas voava vagarosamente, de costas para seus observadores na proa do navio. Carregava uma pequena mochila a tiracolo.

    — Será o espírito de alguém que morreu? — perguntou uma preocupada Ren.

    — E você já viu o espírito de alguém vivo?

    — Você entendeu! Será que ela morreu aqui?

    — No meio do céu, Ren?

    — Merda, sei lá! Vai ver ela era pirata dos céus. Fantasmas me dão arrepios.

    — Bom, talvez consigamos descobrir se perguntarmos.

    — Perguntar pro... espírito?

    Não parecia uma ideia muito sensata. Mas neste exato momento, o espírito finalmente lhes notou a presença. A mulher voadora virou-se e olhou na direção deles, sem parecer surpresa. Como parou de se mover, o navio foi se aproximando dela, e os irmãos puderam notar que não planava no vazio. Sob seus pés havia uma espécie de prancha metálica, na qual não se encontrava nenhum dispositivo ou mecanismo que a fizesse funcionar a vapor. Ao contrário, parecia um pedaço ordinário de metal. Toni achou aquilo tão absurdo quanto a ideia de uma alma penada flutuando no ar. Porém uma observação mais atenta de sua parte revelou que a prancha da misteriosa mulher estava envolta em magia. Magia invisível, difícil de ser detectada, por conta do pouco esforço que ela fazia para manipulá-la. Passaria despercebida a qualquer um que não tivesse um mínimo de conhecimento no manuseio desse tipo de energia, como ele e sua irmã.

    — Er... Olá, senhorita... — Começou um interessado Toni.

    — Muito bom dia! Ora, vejam se não é o famoso Perna de Magia! E claro, sua irmã Ira dos Sons! Até que enfim nos encontramos... — soltou aquela mulher flutuante, encarando ambos os irmãos com os olhos apertados e um sorrisinho dúbio no rosto. O fato dela chamá-los por suas alcunhas mostrava que a fama deles vinha crescendo por Novea. Há pouco tempo, eram apenas Toni e Ren. Mas a admirável perna de Toni em conjunto com o mau temperamento da irmã havia erigido sua reputação nos arredores. O que era cômico, porque nenhum dos dois buscava isso. Estavam naquela jornada por motivos pessoais, que não envolviam ajudar injustiçados pelo caminho, bancando os heróis. Mas era justamente o que acabavam fazendo devido à incapacidade de ficarem quietos, observando algo errado.

    Mas para Toni, nada explicava a bizarra situação de uma mulher sozinha num pedaço de metal voador no meio do céu, chamando-os por suas alcunhas. Ele ficou de imediato em alerta.

    — Vejo que nos conhece de alguma forma, senhorita, mas estamos em desvantagem pela recíproca não ser verdadeira.

    — Na verdade é, Perna de Magia, pois em algum momento de sua vida você já ouviu falar de mim... — disse a mulher, mais para si mesma, num sussurro entre sorrisos.

    — Como disse?

    — Esqueça. Meu nome é Irene. Prazer em conhecê-los, jovens.

    Jovens? Você não é muito mais velha que a gente... — Ren estava intrigada com toda a situação.

    Passado o receio inicial, ao constatar que ela não era um espírito, começou a ficar preocupada. Não havia muitas pessoas com conhecimento suficiente para magnetizar objetos com magia a ponto de fazê-los voar para servirem como transporte. E ainda por cima, uma magia tão requintada. A perna de Toni, por exemplo, precisava ser mais densa para poder se materializar e sustentar seu corpo, mas nem de longe tinha aquele refinamento. Tampouco a magia de Ren. Só grandes usuários, com mais idade, tinham tamanha intimidade com aquela arte. E como bem observado por Ren, Irene não parecia mais velha que eles. Era bela, esguia, tinha longos cabelos castanhos bem claros, ondulados e presos no alto da cabeça. Os olhos cor de mel transmitiam uma maturidade e profundidade não condizente com o seu rosto liso e delicado. Aparentava ser ligeiramente mais alta que Ren, mas não alcançava a altura de Toni, que tinha por volta de 1,80m.

    Em todo caso, aquela prancha era preocupante. Em sua jornada, os irmãos já haviam enfrentado vários mercenários. Como teoricamente eram justiceiros, não faltava quem quisesse suas cabeças. Havia até recompensas por eles, para quem fosse louco o suficiente para ir atrás. Portanto, mercenários, piratas, assassinos e gente da pior espécie eram esperados. Mas, definitivamente, não um usuário de magia. E muito menos um do nível daquela mulher.

    — Minha cara Ira dos Sons, eu sou um pouco mais velha do que pareço. Se não se incomodam, podem me dizer que caminho seguem?

    — E por que quer saber? — perguntou uma Ren irritada, com cara de poucos amigos.

    Toni olhou para ela, os cantos de sua boca quase desenhando um sorriso. O Ira da alcunha não era à toa.

    — Uma simples curiosidade... Nossa, que cheiro de queimado de repente. Não fique nervosa. Não nega sua alcunha, não é mesmo?

    — Eu só me preparo para eventualidades...

    — E faz muito bem. Meninas precavidas são tão adoráveis. Pena que, neste caso, talvez isso não signifique muita coisa...

    — O que quer dizer? — Praticamente todos os pêlos de Ren se arrepiaram, enquanto ela assumia uma posição de ataque, arreganhando os dentes e pronta pra saltar na jugular da estranha Irene. Também já havia esquecido o fato de que a outra flutuava em uma prancha minúscula, e que era bem provável que despencassem para uma morte infalível. E, se Toni não a tivesse segurado pela cintura com uma mão, e com a outra retido seu ombro, ela provavelmente teria feito exatamente isso.

    — Calma aí, Ren. Irene, estamos indo ao encontro da Tecedeira.

    Ren quase mordeu a língua de espanto. Ainda retida pelas mãos fortes do irmão, jogou a cabeça para trás para murmurar próximo ao rosto dele.

    — Ficou maluco?! Vai contar pra ela aonde vamos assim, de mão beijada, seu idiota?!

    — E você acha que ela vai acreditar? — Devolveu ele no mesmo tom baixo, esperando com isso despistar a mulher. Talvez ela achasse que eles eram idiotas ou loucos, e perdesse o interesse neles. Mas qual não foi a surpresa de Toni ao encará-la e notar que ela estava com um sorriso sinistro nos lábios.

    E enquanto o rapaz decidia como melhor interpretar aquela reação inesperada, uma gigantesca sombra se avolumou sobre eles, cobrindo todo o navio. Ao erguerem os olhos, o trio se deparou com o casco de uma gigantesca embarcação, não avistada antes por estar muito acima do ponto onde se encontravam. Ao se posicionar exatamente acima de Toni, a nau despencou sobre eles. Ato contínuo, o jovem, sem pensar, agarrou o leme e saiu do caminho, evitando o impacto por um milésimo de segundo.

    Mal tiveram tempo para se recuperar do susto, quando uma flecha voou certeira em direção ao rosto de Ren, que sequer foi capaz de notar sua aproximação. Mas Toni estava atento e aparou a seta a meio centímetro da bochecha da irmã, e fez com que ambos se abaixassem, pois mais delas riscavam o céu.

    Irene, após acompanhar o navio dos irmãos na manobra evasiva, permaneceu exatamente onde estava.

    — Hahahahaha, olhem só, são eles mesmos! — Vibrou o pirata de bandana amarela.

    A maioria dos homens a bordo portava bestas de repetição rápida. Podiam lançar pelo menos três flechas por segundo. Alguns ainda portavam espadas. Uns poucos manuseavam armas de fogo. O navio deles era bem maior que o dos irmãos, e se era inusitado ver um navio a vapor no céu, o que se diria de dois ao mesmo tempo?

    Eles lançaram mais uma chuva de flechas, e alguns até deram tiros, o que impossibilitou qualquer tentativa de fuga. O interessante, porém, era que as setas e balas não se fincavam na madeira do navio. Elas ricocheteavam.

    Irene continuou estática. Ocasionalmente desviava de sua direção algum objeto que voava ao seu encontro, só o encarando.

    O pirata de bandana amarela foi o primeiro a invadir o navio menor. Ele portava uma espada enorme, para ser segurada com duas mãos, mas, curiosamente, conseguia manejá-la com apenas uma. Observou os dois irmãos abaixados atrás do leme do navio, e as flechas ao redor deles, sem tocá-los. Notou que não haviam se cravado em nenhum lugar do navio. Coçou a cabeça, sem entender muito bem, e sem tempo para tanto. Enquanto os outros piratas se apossavam do local, ele se adiantou em direção aos dois tripulantes, pretendendo aprisioná-los vivos. Mas se não cooperassem, não via problemas em levá-los já esfriando.

    — Saia de Newcomen agora mesmo. — Toni estava possesso com o tratamento dispensado ao barco que ele mesmo construíra com tanto esforço. Foi se levantando aos poucos, sem deixar de encarar o pirata da bandana amarela. Ren se ergueu junto com ele, mal se segurando para atacar.

    — Newcomen? Ah, claro, é o nome do navio, certo? É um belo barco, vamos conseguir muita grana com ele. Eu, Bartolomeu Roberts, agradeço muitíssimo.

    — Para um pirata ignóbil como você, até que pensa rápido, Roberts.

    — E pra uma putinha como você, até que tem fibra. Vamos conseguir muita grana pela sua cabeça também, mas nada impede que antes a gente dê uma trepada!

    Sem muita paciência, Ren partiu para cima do homem, com um soco armado. Mas ele não era fraco, aparou o golpe dela só com a empunhadura de sua avantajada espada.

    — Noooossa, que gênio ruim! Que delícia você deve ser. Vocês causaram muita bagunça na última cidade por onde passaram, e o prefeito de lá nos prometeu uma boa recompensa por suas cabeças...

    — O ex-prefeito você quer dizer, certo? Depois que nós arrasamos com aquele safado, ele foi preso pelo próprio povo... Como ele contratou vocês da prisão? — perguntou um soturno Toni, olhando bem a face do pirata.

    — Você ficaria surpreso com a extensão da influência de certas pessoas, filho... — revelou com um sorriso Bartolomeu Roberts, agarrando a mão de Ren e tentando virá-la de costas.

    Enquanto isso, a horda de piratas avançou em peso para cima de Toni. Sem piscar, ele abateu três logo de cara. Levando alguns cortes de espada e evitando tiros, continuou a derrubá-los.

    Ren tentava socar a cara de Roberts, enquanto se esquivava dos golpes da poderosa espada. Ele acabou se revelando um excelente espadachim. Sem dúvida era o capitão do bando. Outros cinco a rodearam para ajudar seu líder, mas eles não possuíam a mesma agilidade. Numa sequência vertiginosa, a garota acertou dois deles no nariz. O terceiro, que esperava o mesmo golpe, for atingido na garganta e desabou estrebuchando. Os dois restantes partiram para cima dela, que utilizou-se da própria força empregada por ambos para fazê-los perder o equilíbrio. Arrematou com um pulo, plantando um pé na nuca de cada um e afundando o rosto deles no chão. Logo outros cinco os substituíram.

    Irene continuava observando, com os braços cruzados sobre o peito. Até que um dos piratas a divisou:

    — Capitão, e aquela ali? - perguntou o dedo-duro ao pirata da bandana amarela.

    — Não conheço. Atirem nela!

    Com isso, os larápios se posicionaram próximo à amurada. Não havia como errar: a mulher estava a apenas três metros de distância. Ninguém estranhou o fato de ela não estar do lado de dentro do navio, na adrenalina em que se encontravam. Irene não parecia nem um pouco abalada.

    Três tiros de três atiradores voaram em sua direção. Ela apenas olhou para os projéteis e algo aconteceu. Foi tudo muito rápido, mas quem tivesse olhos ágeis, poderia notar que primeiro as balas se congelaram no ar. Depois elas simplesmente inverteram seu movimento, voltando em direção aos atiradores. Eles sequer chegaram a saber o que os atingiu, mas misturado com o sangue que saía do buraco em suas cabeças, havia água.

    No furor do momento, ninguém percebeu o fato, com exceção de Toni e Ren. Mas não tinham tempo para se impressionar, ou poderiam perder as cabeças.

    Ren já havia derrubado cerca de 20 homens, mas não conseguia abater o capitão. O enorme sabre impedia que ela entrasse no espaço pessoal dele, e lhe acertasse um soco no rosto. Estava unicamente se esquivando, habilidosa. Mas não poderia fazer isso para sempre, e sinais de fadiga começavam a dominá-la. Até que, em um dos movimentos violentos da espada, Roberts conseguiu fazer um corte em seu antebraço. Ela recuou, praguejando mais de susto do que de dor e, neste instante, o capitão acertou-lhe um chute no estômago que a pôs de joelhos. De imediato se colocou atrás dela, agarrou seu longo cabelo negro e puxou a cabeça para trás.

    — Muito bem, vadiazinha, agora você está rendida. Fique quieta ou seu pescocinho será dividido em dois. — O ameaçador fio no pescoço dela não o deixava mentir. Ela fez uma careta de desgosto, como se fosse chorar. Lentamente foi erguendo a mão direita até o rosto, como se quisesse esconder as lágrimas. Fato que não passou despercebido ao capitão.

    — Ora, a grandiosa Ira dos Sons vai chorar agora? — provocou o homem. Ren não cobriu os olhos, como Roberts esperou a princípio, e sim os lábios. Na verdade, era mais como se ela estivesse soprando na mão. Um rápido e intermitente chilro, como a voz de um pássaro, se fez ouvir.

    — Caro ignóbil, você realmente não sabe o porquê da minha alcunha, não é mesmo?

    Antes que pudesse ter qualquer reação, o pirata foi tocado pela mão de Ren, a mesma que estivera em sua boca, e que agora segurava uma pequenina bola de energia. Aquela minúscula esfera penetrou no crânio de Roberts, atingindo seus ouvidos em cheio, que foram sacudidos com o som mais agudo que o ouvido humano não consegue suportar. Os tímpanos do homem rasgaram como panos velhos, e sangue começou a escorrer pelas orelhas. Ele caiu estirado no chão, com uma expressão de pura surpresa no olhar. Ele urrava, mas não escutava os próprios gritos.

    — Imbecil... Isso é o que dá não prestar atenção nas alcunhas das pessoas...

    Entrementes, Toni enfrentava o bando que o cercava, já coberto de cortes e arranhões. Mas mantinha um sorriso no rosto. Estava adorando poder se exercitar. Os piratas não representavam uma ameaça, apesar da quantidade. Cinquenta homens contra um único não era exatamente justo. Mas aquilo não era um problema para o rapaz da perna mágica. Se houvesse mais 100 daqueles lacaios, talvez tivessem uma chance. Toni, porém, havia eliminado a maioria deles, restando apenas mais dez homens, pois os outros jaziam sem consciência no chão. Não podia mais aguentar a ansiedade de testar a perna, para comprovar sua completa recuperação.

    Parou de se movimentar e se concentrou. A perna esquerda brilhou com uma intensidade absurda, a ponto de ofuscar os homens. Toni se sentia bem, muito bem. O membro estava perfeito e a energia circulava e resplandecia por seu corpo sem nenhum bloqueio. Fluindo de cima a baixo, o poder se concentrou na perna. Quando se tornou intenso demais, e ele percebeu que não poderia mais retê-lo, Toni deu um poderoso chute circular no ar. A energia acumulada então se desprendeu, percorrendo em uma velocidade imensurável a distância que separava Toni dos piratas. Estes, que formavam um círculo ao redor do rapaz, receberam o golpe praticamente todos ao mesmo tempo. É claro que eles não processaram o fato de maneira adequada, pois o que puderam observar foi Toni tomando fôlego, a perna ofuscando seus olhos e depois a escuridão.

    — Ora, Toni, pelo visto sua perna está ótima, que bom!

    — Ren!! Tudo bem com você? — indagou Toni, correndo para junto da irmã e tocando o seu braço ensanguentado.

    — Não se preocupe, não foi fundo. Mas e você? Tá legal mesmo?

    — Claro, estou totalmente recuperado.

    — Mal consigo conter as lágrimas com esta tocante reunião familiar, mas sou obrigada a interrompê-los em nome da manutenção do meu nível de açúcar. Podemos conversar?

    A estranha Irene estava de pé na amurada, segurando sua prancha também apoiada onde pisava. Como se estivesse pedindo permissão para adentrar o navio. Toni mirou o rosto dela profundamente, e fez um aceno com a cabeça. Enquanto Irene entrava, ele começou a expulsar os piratas claudicantes para fora de Newcomen. Irene até mesmo os ajudou na tarefa.

    Todo o processo levou algum tempo, que os três cumpriram em silêncio, e não necessariamente com gentileza. Eles faziam os que estavam minimamente bem carregar os desacordados, ou apenas os atiravam de volta ao navio deles. Dois homens ajudavam seu capitão, cujas orelhas escorriam sangue, agora surdo. Quando o último saiu, Ren manobrou a nau para longe deles. Newcomen soltou seu barulho característico de vapor e se afastou rapidamente.

    02 – Magias e dimensões

    — Perna de Magia... Você realmente está indo ao encontro da Tecedeira? - Irene quebrou o silêncio.

    Toni estava analisando aquela mulher. Era mais ou menos da altura de sua irmã. Achou os olhos muito bonitos, puxados para o mel, com salpicos de verde aqui e ali. Seu semblante era ilegível, mas parecia estar levando aquela história da Tecedeira a sério. Ao menos não exibia aquela expressão incrédula de chacota que todos lhes dispensavam quando esse assunto era tratado. Mas ostentava uma de ligeira descrença, como se eles fossem incapazes de conseguir o que intentavam. Não porque a Tecedeira não existisse, mas porque eles é que não tinham habilidade para alcançá-la.

    — E você a conhece? — Toni tentou manobrar a conversa.

    — Digamos que é uma velha conhecida que não vai com a minha cara... Mas, convenhamos, vocês não conseguiriam chegar lá sozinhos.

    — Por que não? — Ren indagou, com cara de poucos amigos.

    — Porque tem que conhecer o caminho, e usar a magia certa para abrir os portões. Aquela velha bruxa não gosta de visitas. Mas felizmente vocês estão comiguinho aqui, que conheço todos os detalhes sórdidos. — Deu um sorriso enorme.

    — Se ela não vai com a sua cara, como você conhece a magia certa pra entrar? E por que você nos ajudaria?

    — Conheço a magia certa porque eu tenho meus contatos. E vou ajudá-los porque sou como a água, meu caro Perna de Magia. Vou aonde o caminho me levar. E já que estou aqui, quero ver como os dois novatos se sairão na jornada.

    — Você é tão vaga que me assusta. Por que será que não acredito em nada do que contou?

    A misteriosa Irene deu uma risada efusiva. Ela era na verdade de gestos calorosos, expansivos. Encarava os irmãos com um sorriso cálido. Aparentemente, levara o comentário do irmão mais novo como brincadeira. Ou, se percebeu o quanto Toni desconfiava dela, fez questão de se fazer de desentendida.

    — Fique tranquilo, Perna de Magia. No momento, eu só quero algo pra comer.

    — Bom, se ela é suspeita ou não, eu também estou com fome. Vou ver o que arranjo pra gente comer. - Ren sumiu por uma porta adentro.

    Sem um pingo de constrangimento, Irene se sentou em um banquinho que estava caído ali perto, mostrando um meio sorriso. Toni observou a moça, enquanto tomava o leme do navio.

    — Posso então presumir que você não é uma mercenária atrás das nossas cabeças, certo, Irene?

    — Sim, pode presumir. Ora, vamos, você já deve ter percebido que se eu realmente fosse uma mercenária, já teria pegado vocês.

    — Devo admitir que você é uma incrível usuária de magia. Você é muito boa nisso!

    — É a prática, rapaz! Existem muitas formas de se usar magia, e vejo que vocês conhecem algumas variações de magia de luta, apesar de se segurarem ao máximo para não usar.

    — Então você percebeu? É claro, se a gente usasse magia de qualquer jeito com aqueles pobres diabos, podíamos até matá-los!

    — Eram só uns piratas. Isso não deveria incomodá-los tanto. Se usassem logo de cara, evitariam todos esses machucados.

    — Bom, a gente prefere não exagerar. Então, você sabe como chegar até a Tecedeira?

    — Sim. Como eu disse, é uma velha conhecida. Já estamos bem perto, na verdade. Deixe-me apenas comer algo, e mostro pra vocês.

    ******************

    O dia ia pela metade, e todos agora comiam. O sol continuava forte no céu, e uma leve brisa soprava. Não falaram enquanto degustavam a comida. Os irmãos ainda não se sentiam à vontade para agirem normalmente perto da misteriosa mulher de cabelos castanhos. Eles eram muito parecidos em alguns aspectos, como, por exemplo, agirem de forma introspectiva com pessoas fora do círculo familiar. Perfeitos bichos do mato, diriam alguns, pois eram inábeis com relações sociais externas. A vila onde foram criados era extremamente pequena. Mas isso vinha mudando aos poucos, desde que se colocaram naquela viagem de destino incerto.

    Os irmãos se revezavam na preparação da comida. Toni gostava muito da comida de Ren, que considerava melhor que a sua. Ele sempre fora desajeitado para muitos trabalhos manuais, menos para construir coisas. Criara várias versões e modelos de uma perna de metal, antes de conseguir sua perna de magia. Até mesmo uma a vapor.

    O navio Newcomen também era uma invenção sua, feito de sucata e da madeira da floresta que crescia a alguns metros da casa onde vivia. Orgulhava-se daquela construção em especial porque fora feita com sangue e sofrimento, literalmente. À época do início da produção, a perna esquerda de Toni, a mágica, era o único membro que não lhe incomodava. A cada hora trabalhada naquele projeto, sentia os braços mais dormentes, com dores que lhe atravessavam os

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