Gilvan Lemos: o último capítulo: Coleção Memória
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Gilvan Lemos - Thiago Correa
Agradecimentos
A Gilvan, pela confiança de me deixar escrever sua vida.
A Pedro Américo de Farias, pelo desafio.
À Maria Lívia, Theresa, Flávia, Francisco Segundo, Leone, Samuel, Nivaldo Mulatinho, Raimundo Carrero, Luzilá – pela paciência, disposição e memórias.
gilvan que lemos
Nivaldo Mulatinho
"Todo homem é judeu,
embora talvez não o saiba".
Bernard Malamud
A história da literatura ilumina as vaidades e as influências. Enumera os talentos e as invejas. Revela os sentimentos e as técnicas de superação do artista. Também as amizades e inimizades. E as admirações reais. Sem admirações genuínas, recíprocas ou não, entre escritores, a arte literária, acredito, revela-se impossível. Tudo se completa na responsabilidade poética do leitor.
Gilvan de Souza Lemos. O Gilvan que lemos, como Tarcísio Pereira anunciava na Livro 7: uma Livraria, um cenário das emoções pessoais e políticas de gerações. Leitor insaciável, Gilvan era tímido. Mas um ficcionista absolutamente imodesto. Tinha consciência do seu valor. Nessa linha, ele se identifica, com humor e verdade, numa rara entrevista de televisão (Rede Globo), na época de lançamento do seu romance Espaço terrestre, pela Civilização Brasileira (1993). O livro é dedicado a Joaquim Gordo de quem ouvi, pela primeira vez, fantasias narradas no mais genuíno realismo mágico, muitas das quais adaptados neste romance. E a São Bento do Una onde nasci e aprendi a sonhar
.
O último capítulo faz parte da Coleção Memória, sem o estilo das outras biografias, pois Thiago Corrêa aceitou o desafio de dar vida à história de alguém já ausente
. E foi vitorioso. Inexistem palavras definitivas para o retrato de todo grande artista, mas o primeiro biógrafo do autor pernambucano soube unir, com sagacidade e fluidez, as memórias literárias
de Gilvan Lemos, terminadas em setembro de 2002, ao plano de pesquisas, depoimentos e análises do livro pioneiro.
Que possibilidades tem um homem que desconhece suas possibilidades?
. A pergunta é do homem de Kiev
, o personagem de Bernard Malamud, o autor da epígrafe, no livro The Fixer (1965), publicado no Brasil com o título de O bode expiatório , na edição de 1968. Um romance sobre um judeu, perseguido na Rússia czarista e antissemita no início do século XX. Posso testemunhar: um dos livros que mais impressionaram Gilvan Lemos. Malamud (1914-1986), filho de imigrantes russos, nasceu em Nova York. Tornou-se um dos escritores preferidos de Gilvan, pois tratava, nos seus contos e romances, da perplexidade do ser humano diante da vida – a vida de fracassos e redenção, de solidão e de escolhas, de compaixão e de medo. Todo homem é judeu
: uma linha temática que fascinava o autor de Os olhos da treva, prendendo-o, definitivamente, aos ficcionistas judeus-americanos
como Isaac Bashevis Singer (prêmio Nobel) e Philip Roth. Ao lado deles, o israelense Amós Oz, mestre do romance e dos ensaios literários e políticos.
Gilvan Lemos sentia-se um exilado? Talvez. Desgarrado da sua terra natal, para seguir uma vocação, sabia pintar bem a sua aldeia. Todo autêntico criador literário é regionalista, nos domínios plenos da emoção e do conhecimento, resumidos na frase de Tolstói, sobre a universalidade.
Aos 19 anos, Gilvan Lemos terminou o livro que seria a sua última publicação, o romance Sete ranchos, escrito entre 1947/48. A papelada
estava guardada. Uma lembrança do seu passado sonhador
. Nesse tempo, ele ainda residia em São Bento do Una e não se atrevia a pensar em ser escritor, como relata na apresentação do livro, publicado em novembro de 2010, no Recife, com o selo local da Nossa Livraria de João Luiz, que já publicara outros livros do autor, desde 2001. Thiago Corrêa ficou surpreendido com a força narrativa do livro de um iniciante
. A profundidade nos dramas pessoais e a capacidade de seleção dos fatos, ajudando o leitor a compor a dimensão social de uma comunidade periférica – Sete Ranchos –, o descaso do poder público, o alcoolismo, a prostituição, as fronteiras que se colocavam para separar os moradores do restante da cidade.
Sete ranchos não teve o lugar merecido no conjunto da obra do autor, com certeza por falta de uma boa distribuição. Afinal, escreve o biógrafo, o romance, além de reunir qualidades de organização e densidade humana, já revela a gênese das características que marcariam a obra de Gilvan Lemos, como o tom de crônica da sua ficção, o caráter memorialista e um interesse peculiar por personagens periféricos, sujeitos a histórias de injustiças e dificuldades financeiras
.
Sem clichê e sem hipérbole, partindo de Sete Ranchos, pode-se dizer que Gilvan Lemos já atingiu a altura de um autor clássico, ou seja, aquele cuja obra nunca termina de dizer o que tem para dizer, segundo a definição de Italo Calvino.
Escrever também é se vingar
, afirmava Gilvan Lemos, na entrevista de 30 de julho de 2003, no Jornal do Commercio. Ele publicava, também com o selo da Nossa Livraria, um livro de contos, Onde dormem os sonhos. Encontrava-se feliz com a tradução dos seus contos para o francês e o alemão. Ficaram melhores que o original
, brincava. Era o Gilvan que todos gostavam de ver e ouvir. Ele tinha suas birras, é fato. Afastava-se de grupos e movimentos. Escondia-se. Mas sabia cativar. Era um homem, na definição do crítico Mario Helio, sem posturas e sem imposturas. Em 2003, porém, o Recife não tinha mais a Livro 7. Faltava o grupo que sempre estava, num banquinho, em torno do autor de Noturno sem música, o mestre e amigo, o torcedor do Santa Cruz. O depoimento de Raimundo Carrero, na presente biografia, é bem claro: Quando comecei a publicar, Gilvan era uma espécie de semideus na literatura
.
Dos contos de O defunto aventureiro, novela-título do livro publicado em abril de 1974, destaca-se Um encontro, que colocou Gilvan Lemos para representar a literatura brasileira no sexto número da revista Caravanes, de edição francesa, publicada em 1997. Thiago Corrêa traz todo o quadro das esperanças, não concretizadas, do autor, para a tradução dos seus romances, entre eles, O anjo do quarto dia.
O ano de 1975 representou mais de um marco na vida literária de Gilvan Lemos. O romance Os olhos da treva, bem como as novelas de A noite dos abraçados, apareceram na lista de destaques do ano, assinada pelo escritor Flávio Moreira da Costa para o famoso semanário Opinião. E foi escrito um dos melhores livros do autor pernambucano, Os que se foram lutando, composto de 12 contos. As histórias têm em comum as chuvas que atingiram violentamente o Recife naquele ano, causando a enchente que encobriu cerca de 80% do território da cidade. Gilvan Lemos dedicou o livro Aos que lutam
. É a sua primeira obra de ficção com temática essencialmente urbana. São histórias de sobrevivência, como sublinha o biógrafo, através de personagens sofridos, como um operário que tumultua a sua vida, após ver seus galos de briga morrerem durante a cheia. Um garoto que trabalha com um mendigo cego. E a singular história de um homem que, de tão desesperado e tão solitário, aproveita o desaparecimento de uma criança para poder ser ouvido na comunidade. O livro foi publicado no ano seguinte, 1976, e o destaque fica para A Ponte da Boa Vista, a história da esmoler Damiana, que pedia na ponte de ferro recifense. O conto teve tradução na Alemanha, numa antologia de autores brasileiros, publicada, em 1989, pela Editora Volk und Welt, colocando Gilvan Lemos ao lado de autores como Rubem Fonseca, Moacyr Scliar e Luiz Fernando Veríssimo.
Hermilo Borba Filho, que comparou Gilvan Lemos com Dostoiévski ao falar de Os olhos da treva, dizia que o autor pernambucano conseguia a justa medida no jogo do personagem, situando-o entre o mundo íntimo e o mundo ao redor.
Aos 87 anos de idade, Gilvan Lemos foi encontrado, no dia 1º de agosto de 2015, no seu apartamento da Rua Sete de Setembro, sem vida, em meio aos seus quatro mil livros. Era novembro de 2011, quando, por aclamação, ele foi eleito para assumir a cadeira 26 da Academia Pernambucana de Letras. A presença de Gilvan trouxe leveza ao clima mais sério da Academia
, segundo a presidente Fátima Quintas. A casa de Carneiro Vilela soube abrigar muito mais calor humano. E Gilvan Lemos encantou-se na imortalidade.
Nivaldo Mulatinho é desembargador e escritor.
Recife, 1º de agosto de 2017.
introdução
Este livro deveria ser diferente. A proposta apresentada à Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), na manhã do dia 31 de julho de 2015, estabelecia que a biografia do escritor pernambucano Gilvan Lemos seria escrita a partir de entrevistas com o próprio autor, na esperança de resgatar fragmentos de memória da mente já relapsa de Gilvan para usá-los como fio condutor na construção da narrativa sobre sua vida.
Após a visita à Cepe, naquela sexta-feira, aproveitei que já estava no centro do Recife e telefonei para Gilvan. Estava cumprindo um pedido que ele me fizera no fim da tarde anterior. Ao sair do seu apartamento no edifício Mandacaru, localizado na Rua Sete de Setembro no bairro da Boa Vista, perguntei se poderia voltar no dia seguinte. Ele respondeu que sim, com a condição de que ligasse antes. O telefone chamou até disparar. Algo que voltou a se repetir na ligação que fiz após o almoço.
Naquele momento não tinha como saber, mas o silêncio aos telefonemas indicava que algumas das mais de sete dezenas de perguntas anotadas em meu bloquinho permaneceriam sem resposta para sempre. Você lembra do golpe em 1964? Onde você estava? Qual foi sua reação? Lembra de quando Gregório Bezerra foi arrastado pelas ruas do Recife? O que você lembra do enterro deles? O que te motivou a escrever? Viajou muito? Conheceu que lugares? Quem foi sua namorada em São Bento? Como era Aurelina? Alta ou baixa? Quando vocês se conheceram?
Todas essas interrogações permanecem engasgadas em minha garganta até hoje. Na noite do sábado, 1º de agosto, o corpo de Gilvan Lemos era encontrado no chão do escritório que ele mantinha em um dos dois quartos do seu apartamento no edifício Mandacaru. O fato se espalhara pela imprensa e chegou até a mim. Um amigo assistira à notícia na edição noturna do NETV e me avisara.
O impacto da notícia desencadeou um misto de sentimentos. O primeiro a se apresentar veio como perplexidade, na incapacidade de compreender como alguém que estava conversando tranquilamente com você dois dias atrás, de repente, deixava de existir. Em seguida, o lamento por não ter ajudado Gilvan, por não ter percebido qualquer fraqueza nem ter insistido na entrevista da sexta-feira, indo lá tocar a campainha do apartamento 1203 do Mandacaru e, quem sabe, ter podido socorrê-lo. Depois veio o ressentimento pelo preciosismo
jornalístico de se ambientar com a obra e a trajetória de Gilvan antes de realizar a entrevista, o que me fez atrasar o início das conversas. E, finalmente, na forma de dúvidas em relação ao projeto de biografia.
Até o momento, a Coleção Memória publicada pela Cepe – da qual esta biografia faz parte – era basicamente direcionada a personalidades pernambucanas vivas. Com a ausência de Gilvan, talvez o projeto não interessasse mais à editora ou se tornasse inviável, por fugir do padrão de ser construído a partir das memórias do biografado. Tentei falar com o editor da Cepe na época, Marco Polo Guimarães; conversei com Pedro Américo de Farias do Conselho Editorial. As palavras eram de incentivo, a vontade era de que se prosseguisse com o trabalho, mas o projeto se tornara nebuloso.
As dificuldades iniciais ganhavam contornos mais complexos. Antes, o que me preocupava era encontrar um jeito de conquistar a confiança do biografado, vencer a timidez de Gilvan, colocar seu discurso numa ordem narrativa, burlar seus lapsos de memória (que tantas vezes apareceram em nossa conversa gravada através de não lembro
, como era o nome mesmo?
, esqueci
, eu já contei isso?
) e driblar o seu problema de audição (como?
, fale mais alto
, hã?
, não entendi
, hein?
). Com a morte de Gilvan, o desafio de escrever sua biografia deixava de ser um problema mundano de comunicação para ser elevado a uma questão de existência: dar vida à história de alguém já ausente.
A conversa de uma hora e dezoito minutos gravada na quinta-feira talvez não fosse suficiente para dar conta do livro. Como, então, escrever o livro sem a sua colaboração? Como recontar a história de um sujeito tímido, reservado e solitário feito Gilvan? Como contextualizar sua infância? A quem recorrer para entender as intenções camufladas nas entrelinhas de seus contos e romances? A vida de um sujeito pacato, retraído, que passou a vida trabalhando como funcionário público e escrevendo livros isolado em seu apartamento, renderia realmente uma boa história? A família dele estava sabendo do projeto de biografia? Qual seria a reação dos familiares? Será que eles me receberiam bem? E, principalmente, eu seria capaz de assumir esse compromisso?
Diante de tantas incertezas, ao menos uma coisa se apresentava sólida: se o projeto continuasse, seria de suma importância comparecer ao velório. Naquela noite, as informações que apareciam na imprensa ainda eram desencontradas. O site do Jornal do Commercio inicialmente dizia que o velório seria na sede da Academia Pernambucana de Letras (APL). O portal de notícias G1 contava que a família ainda não se decidira onde seria. A página do Diario de Pernambuco, por sua vez, informava que o corpo seria velado em sua cidade natal, São Bento do Una, que fica a cerca de 208 quilômetros do Recife.
Era preciso me preparar para os dois cenários. Antes de dormir, coloquei para carregar as baterias de duas câmeras fotográficas, celular para gravar as entrevistas e tracei o caminho até São Bento do Una no GPS. Coloquei garrafa d’água, pacote de biscoito e canetas na mochila, junto com o mesmo bloco de anotações onde as perguntas para Gilvan permaneciam sem respostas. Programei o despertador para às 5h da manhã. Ao acordar, chequei novamente os sites dos jornais, disparei alguns e-mails pedindo informações aos colegas responsáveis pela cobertura de literatura nos jornais locais, tomei um bom café da manhã e segui para a sede da APL. Embora fosse domingo ainda bem cedo, os portões fechados indicavam que a cerimônia não seria ali. Sensação que confirmei com a segurança da APL.
Rumo a São Bento do Una, na BR-232, ultrapassei um cortejo fúnebre que pensei ser o de Gilvan. Não era. O corpo só chegaria, num caixão fechado à Casa Irlando Galvão Cavalcanti, a Câmara dos Vereadores de São Bento do Una, às 11h10 da manhã do domingo. Aos poucos, amigos, parentes e autoridades foram chegando para prestar homenagens e se despedir do escritor. Aproveitei para me apresentar, falar do projeto de biografia encomendado pela Cepe, descobrir quem poderia me ajudar e já continuar minha apuração. Assim, acabei conhecendo pessoas fundamentais para a realização deste livro, como o amigo, admirador e pesquisador Samuel Oliveira, o primo do escritor Leone Valença e as sobrinhas (consideradas as prediletas de Gilvan) Theresa e Maria Lívia Valença, hoje a responsável pelo legado da obra do autor.
Apesar do silêncio do caixão fechado de Gilvan, ao longo daquele dia pude ouvir histórias sobre sua infância, descobri hábitos, encontrei pontos de interseção entre sua vida e obra, ri com as implicâncias e resistências típicas de um velho solitário determinado em não dar trabalho aos outros e percebi a bondade de um homem na transparência das lágrimas de seus amigos e familiares, que aproveitavam aquele momento de despedida para compartilhar histórias e amenizar a dor da perda.
Então, ali pelo fim da vida de Gilvan Lemos, descobri por onde começar a sua biografia. A partir daquele dia, 2 de agosto de 2015, percebi que o meu trabalho passaria a ser o de um montador de quebra-cabeças. Embora algumas peças tivessem se perdido para sempre, dada à discrição de Gilvan mesmo entre os melhores amigos e parentes mais próximos; muitas cenas da sua formação intelectual, da sua carreira de escritor e dos seus anos de solidão no apartamento da Boa Vista poderiam ser remontadas com a quantidade de material que consegui coletar sobre