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O Corpo que nos Possui: Corporeidade e Suas Conexões
O Corpo que nos Possui: Corporeidade e Suas Conexões
O Corpo que nos Possui: Corporeidade e Suas Conexões
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O Corpo que nos Possui: Corporeidade e Suas Conexões

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Sobre este e-book

O que pode um corpo? Como decifrar suas diversas formas de expressividade? Qual a sua linguagem? Como sofrem, afinal, os nossos corpos? Mais uma vez, as organizadoras deste livro trazem-nos os frutos de suas pesquisas no Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis) e em suas universidades, em diálogos com outros pesquisadores que, uma vez mais, debruçam-se sobre o tema. Aliando rigor teórico a prática clínica e pesquisas de campo, encontramos nesta coletânea a multiplicidade de olhares que incidem sobre o corpo na contemporaneidade. O corpo na cultura Himba e na cultura judaica; o corpo na música popular, corpo e tecnologia nos ciborgues, Facebook e Instagram; corpos sofridos de negros, jovens e mulheres transformados em cenários de guerra; corpos obesos que trazem a memória da forme em seu bojo ou que sofrem a implacável perseguição dos ditames estéticos; corpos que se mutilam para aplacar uma angústia não nomeada ou que são mutilados para permanecerem vivos. Esses são apenas alguns dos temas que instigarão o leitor a percorrer estas páginas e refletir sobre a pluralidade de sentidos do corpo sempre sem perder de vista sua inserção na sociedade brasileira.

Augusto Sampaio

Vice-reitor comunitário

PUC-Rio
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de set. de 2018
ISBN9788547316747
O Corpo que nos Possui: Corporeidade e Suas Conexões

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    O Corpo que nos Possui - Junia de Vilhena

    1

    Práticas e representações do corpo entre mulheres himba

    Anderson Tibau

    Tania Dauster

    Estar lá, estar aqui¹

    Ao tratarmos dos himba², não buscamos ineditismo, tampouco apresentar uma cultura exótica e intocada sobre a qual nada se sabe. Ao contrário, trata-se aqui de um povo que já vem sendo pesquisado há quase 30 anos³ e que, desde então, vem se abrindo ao Ocidente, capitalizando sua cultura ancestral pelas vias do etnoturismo e da indústria do entretenimento.

    Basta digitar himba no Google e no YouTube, por exemplo, para encontrar, em fração de segundos, 2.700.000 e 57.200 resultados, respectivamente, com as mais variadas informações sobre a cultura. Qual o nosso objetivo, então? Adotando uma linha interpretativa antropológica ancorada na palavra e na imagem, acreditamos que ambas proporcionarão o sentido e a significação etnográficos (SAMAIN, 1995, p. 34) capazes de relativizar a pletora de imagens e links na internet, ultrapassando alguma superficialidade e generalização que tais buscas, por ventura, possam produzir. Desde já, explicitamos que estaremos trabalhando com representações de representações observadas no campo, algo que discutiremos de forma mais aguçada no decorrer do texto. Com isso, abrimos a possibilidade de outra abordagem, ainda que seja tout court nosso ponto de vista. Ademais, seguimos a postura de Tim Ingold (2008), pois numa linguagem livre tratamos a etnografia como uma prática de descrição verbal que tenta dar conta da forma de outros povos viverem.

    Dito isso, nosso texto dá sequência a uma parceria de pesquisa iniciada há quase duas décadas, acolhendo nossas trajetórias acadêmicas individuais e reunindo referenciais teóricos que aproximam imagem e antropologia⁴.

    De um lado, tem origem no trabalho fotográfico realizado por Anderson Tibau (2017) como parte do plano de estudo e pesquisa Imagens da África – aspectos da natureza e da cultura na Namíbia, supervisionado por Tania Dauster. De outro lado, segue as reflexões e a prática acadêmica de Tania Dauster (2016) sobre autores contemporâneos que se afastam da perspectiva das práticas corporais unicamente como ações simbólicas moldadas pela sociedade (MAUSS, 2003) e que discutem o corpo não apenas como reprodução, mas também como invenção, e produzindo relações distintas com o mundo à volta.

    Por uma terceira via, expande o debate iniciado no I Simpósio Internacional de Corpo, Imagem & Tecnologia⁵, quando apresentamos a palestra intitulada Fotografias, conexões e distâncias transatlânticas: práticas corporais e sociabilidades das mulheres vermelhas do deserto da Namíbia. Desse modo, o texto se situa entre a nossa interpretação das conexões do tipo experiência de cartão postal (GEERTZ, 2002, p. 170) realizadas in loco numa aldeia himba na Namíbia por Tibau, o estar lá, e as distâncias que marcam nossas elaborações, nosso estar aqui.

    Consequentemente, trata-se de mais um trabalho na linha de antropologia e educação, considerando a polissemia do termo educação. No caso presente, parafraseando Gilmar Rocha e Sandra Tosta (2017), a educação no seu sentido alargado está enraizada na vida das sociedades, sejam as chamadas sociedades modernas ou primitivas. Assim, os fenômenos fotografados, descritos e interpretados a seguir são parte do cotidiano da cultura e da sociedade himba e, como tal, são relativos a processos de ensino-aprendizagem sociais envolvendo as gerações e todo o universo social. São, ainda, fatos que envolvem a corporeidade, e neste sentido ampliamos para a reflexão, a partir do artigo dos autores citados, o pioneirismo de Franz Boas trabalhando a problemática dos usos do corpo em face das funções mentais, da educação, do racismo, entre outras dimensões etnográficas. Modestamente, inserimo-nos numa longa linhagem que remonta a autores clássicos da antropologia.

    No caso presente, Tibau, pesquisador e fotógrafo, acompanhado da família, entrou no campo como turista para viver um encontro de semi-imersão com os himba e, desse modo, foi identificado pelo grupo observado. Dessa experiência, destacamos para este texto práticas corporais entre mulheres himba, com aspectos da higiene e da identidade visual como signo e linguagem, tal como se pode observar, por exemplo, no banho, nos cuidados com a pele, nos penteados e no vestuário.

    Na mesma linha, compreendemos o corpo, e cada corpo sem reduzi-lo ao natural ou à natureza, mas como algo manufaturado, produto de valores, crenças, atitudes e desejos forjados nas relações sociais. Passemos à situação de contato.

    Moro perivi nawa: a situação de contato

    Moro perivi nawa é uma saudação típica dos himba, cujo significado pode ser interpretado por Olá, como vai?, Olá, muito prazer, Olá, seja bem-vindo. O ensino da pronúncia, do gestual e do significado da saudação é parte da visita. Entendemos que seu objetivo é inserir o estrangeiro na cultura local ao estabelecer alguma intimidade e dizer Saiba um pouco de nós, É isso que vocês procuram. É nisso que se baseia, dentro do roteiro de visitação, o limite da interação e as possibilidades de interpretação, dadas as específicas condições da situação de contato.

    Uma longa estrada de terra e cascalho, cruzando rios secos e savanas, leva até o Otjikandero Himba Orphanage Village, uma espécie de aldeia/orfanato onde seria realizado o trabalho de fotografia sobre o cotidiano dos himba. Estamos no Kunene, inóspito, selvagem e relativamente subdesenvolvido graças à geografia montanhosa, à aridez do deserto e às consequentes dificuldades para viver.

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    FIGURA .1 - NATUREZA E CULTURA

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    A Figura 1.1 revela alguns aspectos bastante característicos do campo, isto é, a presença de elementos representativos de culturas distintas garantindo a sobrevivência numa região remota e desértica. Trata-se de uma tomada da entrada da aldeia onde se vê um pedaço de cerca e grande parte de uma edificação construída com técnicas ancestrais (paredes armadas com trançado de galhos e coberta com argamassa de barro, estrume e cinzas) e materiais industrializados (telhado de flandres) onde funciona a Otjikandero School, em contraste com a savana de gramíneas, arbustos e árvores de pequeno porte. Também se pode notar uma mulher. Seu nome é Ripurireko e ela atua como professora para crianças da aldeia. Numa pequena exposição, a professora fala aos turistas sobre aspectos da cultura himba e do trabalho pedagógico realizado dentro dos limites do orfanato.

    Toda tentativa de garantir às crianças himba acesso a uma educação universal esbarra na dificuldade do ensino do inglês, língua oficial da Namíbia, em relação à língua nativa dos himba, o otjihimba, dialeto herero⁶. Outra tensão pedagógica é a nítida transmissão de representações e signos ocidentais, como é o caso do vestuário e da própria identidade visual como um todo. Ainda segundo a professora, muitos pais hesitam em enviar os filhos para a escola. Ao final da apresentação, Ripurireko sugere que o funcionamento da escola depende dos donativos deixados pelos turistas, o que representa um convite à doação de qualquer espécie.

    Assim como já esclarecemos no início deste texto, os himba são uma etnia de origem bantu vivendo entre Angola, Namíbia e Botsuana. São identificados como sociedade matriarcal, pastoril, seminômade e poligâmica. As mulheres trazem em seus corpos a marca da maternidade compartilhada. Os seios grandes, aos nossos olhos disformes, por vezes, fartos e sempre à mostra não servem à exibição e estão sempre disponíveis para que qualquer criança da aldeia os suguem como alimento e como tranquilizante. Os seios, seus usos e sua aparência simbolizam cuidados maternos e a função feminina por excelência na divisão social de trabalho. As himba cuidam das novas gerações com zelo e atenção, alimentando, hidratando e acalmando num ambiente escasso de água e outros recursos. Ao longo do tempo a cultura himba vem mantendo algumas tradições ancestrais, ainda que sejam percebidas, pelo contato cada vez maior com os modos de vida ocidentais, transformações em relação a sua representação do sistema matrimonial, a poligamia se atualizando como monogamia, por exemplo. Dentre as tradições ancestrais que sustentam parte da identidade de grupo, destacamos o banho sem água, o hábito das mulheres cobrirem o corpo com uma espécie de manteiga vermelha, o trato com os cabelos e o estilo indumentário.

    A seguir falamos da higiene das mulheres himba a partir do banho e dos cuidados com a pele.

    Banho e cuidados com a pele

    Não raro, informações na internet dão conta de que as mulheres himba não tomam banho. Nessas situações a dificuldade de pensar a diferença noutros planos faz lembrar Rocha (1988, p. 5):

    Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas.

    Presume-se, então, que diante da diferença, sem fazer generalizações, o observador ingênuo pode construir a ideia etnocêntrica de pobreza e sujidade, chegando, por vezes, à expressão de sentimentos de nojo e evitação. De modo relativo, conforme nos lembra Roy Wagner (2010, p. 29, grifo do autor):

    Um antropólogo experiencia, de um modo ou de outro, seu objeto de estudo; ele o faz através do universo de seus próprios significados, e então se vale dessa experiência carregada de significados para comunicar uma compreensão aos membros de sua própria cultura.

    Dito isso, as mulheres himba fazem a sua higiene em sintonia com o contexto Kalahari e a escassez de água. A prática guarda importante oposição à forma como nós, comumente, concebemos e representamos o nosso banho.

    Ocorre que, assim como banho, higiene e limpeza são conceitos relativos, tudo o que se pode dizer sobre eles deve ser desnaturalizado. É a provocação a que está submetido o turista, muitas vezes incapaz do descentramento imprescindível quando se quer ou se busca compreender o outro em seus próprios termos.

    Num exemplo, o que chamamos de higiene é relativamente universal. Entretanto essa categoria do asseio e cuidado com o corpo toma feições distintas e inventa-se em práticas culturais diversas, em função dos modos de vida e sistemas de interpretações cotidianas, das relações sociais vis-à-vis das condições materiais de existência. Segundo Rodrigues (1983, p. 113, grifo nosso):

    A noção de higiene parece estar presente, de uma ou de outra forma, em todas as culturas. A abundância ou a escassez de água não significa necessariamente a medida de limpeza a que as tradições sociais deverão se limitar: há grande preocupação com a higiene em locais onde a água não é o único instrumento utilizado para a limpeza nos diferentes povos.

    Adiante abordamos o banho, um dos maiores atrativos turísticos e responsáveis pela divulgação e propagação da cultura himba na perspectiva cada vez mais explorada da visita guiada, do etnoturismo.

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    FIGURA 1.2 - NA OZONDJUWO

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    Em determinado momento nosso guia, um himba de referências multiculturais, encaminha-nos a uma cabana. Na cabana, chamada de ozondjuwo, o guia se senta ao lado de uma mulher prestes a exibir o seu banho, conforme se pode observar na Figura 1.2, diante de uma parede ornada com peças de couro curtido, sob tapetes de pele animal no chão.

    Sem poderem contar com água, as mulheres se banham com a fumaça obtida da queima de galhos secos de um arbusto da região e ervas aromáticas. Essa forma de adaptação à paisagem forjou a prática entre os povos ancestrais e vem se prolongando pelos séculos, de geração em geração. A Figura 1.3 mostra o início do banho diante de nós, uma criança da aldeia e o guia. Na sequência, ela se reclinará para banhar os seios e depois colocará um pouco das cinzas em brasa num pote menor feito de couro e com tampa. O recipiente será levado a axilas, pescoço, braços e pernas, até que o banho chegue ao fim.

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    FIGURA 1.3 - INICIANDO O BANHO

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    Enquanto uma partícula de comportamento, um sinal de cultura (GEERTZ, 1989, p. 16), o que se presencia ali naquela casa construída de modo ancestral, que guarda as técnicas de curtume, impregnada de cheiro defumado e adornada por tapetes de pele, não deixa de ser uma demonstração de práticas corporais de higiene, porém o propósito não é banhar-se para o asseio, mas para atrair/saciar a demanda dos turistas pelo exótico. Ao explorar o símbolo ritual (TURNER, 1974, p. 25), a encenação não apenas reproduz uma prática, mas, certamente, revive uma tecnologia ancestral, o que já é fascinante. O corpo em ação diante da câmera revela técnicas, movimentos e expressões que supostamente remetem ao passado, mas são parte do cotidiano. Contudo, pelas condições de observação, faltou-nos o ponto de vista dos atores, suas categorias de pensamento, seus sistemas classificatórios e organizadores, a compreensão da visão interior, do modo como os himba sentem seu próprio ritual e o que pensam sobre ele. É uma fronteira.

    Na situação de contato presenciamos uma representação de banho nativo, uma mise en scène⁷ apresentada aos turistas, dado o caráter dramatúrgico⁸ da experiência.

    Isso nos leva a pensar em processos de transformação social e econômica no interior desse universo, já que inventam uma forma de comunicação que tanto agrada ao turista, pela exposição do fator social, quanto movimenta a economia da aldeia. Assim, aos poucos, os himba vão tecendo relações com o mundo à volta, sendo transformados por elas. Mesmo assim, insistimos, fazem parte do modo de vida do grupo e, portanto, são fontes de formação das gerações.

    Outro aspecto dos cuidados com o corpo da mulher, e um dos mais característicos signos da identidade e da representação himba, é o uso do otjize, uma espécie de manteiga de cor avermelhada, como mencionamos, e de variados usos na cultura himba. É obtida da mistura do pó de ocre com ácido butírico e seiva de Commiphora Multijugaas. Sua importância é tamanha que as mulheres o utilizam também nos cabelos, em joias e acessórios. Duas vezes por dia, mesmo num cotidiano de trabalhos pesados, cuidados com as crianças e artesanato, as mulheres se cobrem com a mistura, possivelmente para se protegerem do clima e dos insetos, mas supostamente também para atrair a atenção e com finalidade estética.

    Na Figura 1.4 vemos uma himba chegando à aldeia depois de caminhar quilômetros em busca de água. Além de mostrar o cenário árido e a técnica corporal necessária ao tipo de trabalho de responsabilidade das mulheres, ou seja, carregar água por longas distâncias, a imagem mostra também o balde utilizado no transporte da água totalmente besuntado de otjize. Tudo na aldeia fica meio enlameado por causa do uso constante da manteiga vermelha.

    O otjize é um elemento distintivo de gênero e, sem reduzi-lo ao biológico, é importante enquanto elemento da construção cultural da identidade da mulher, uma vez que somente elas usam e seu tom vermelho é um signo da identidade visual do matriarcado himba.

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    FIGURA 1.4 - OTJIZE

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    Cabelos e ciclos da vida

    Na cultura himba ancestral os ciclos da vida (sem reduzi-los ao fator etário ou cronológico, mas ligados a um sistema de classificações culturais), a construção da ideia de gênero e suas distinções, os papéis sociais e grande parte da sociabilidade do grupo, são marcados pelos usos dos cabelos, por aquilo que designamos, em nossa cultura, por penteados.

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    FIGURA 1.5 - MENINA HIMBA

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    Em relação às mulheres, desde a infância, são cultivadas duas tranças voltadas para a face. Seu volume e tamanho marcam a passagem do tempo e delimitam os ciclos da vida. Nas Figuras 1.5 e 1.6, vemos duas fases de um mesmo ciclo representado pelo cabelo em forma de duas tranças para frente. Na primeira uma menina himba na fase da infância. Aqui suas tranças são curtas e finas e os sinais da puberdade ainda não surgiram. Um pouco mais adiante, quando se deixa de ser criança, mas ainda não se está vivendo um mundo adulto, as duas tranças já alcançaram o limite de se transformarem em uma espécie de dreadlock⁹, o período liminar da entrada para a vida adulta. Na Figura 1.6 vê-se uma moça himba com as tranças mais volumosas e sinais da puberdade mais evidentes.

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    FIGURA 1.6 - MOÇA HIMBA

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    Desse ponto em diante as tranças passam a ser usadas para trás, o que dá origem ao cabelo mais característico e representativo dessa cultura. Conforme vão crescendo e engrossando, começam a ser atadas e besuntadas de otjize, da base do cabelo até uns quatro dedos de distância das pontas.

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    FIGURA 1.7 - MULHER HIMBA

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    Entre o fim da atadura e a ponta, o cabelo se abre desfiado, como se pode observar na Figura 1.7. Esse modo de usar o cabelo é indicador de que a moça já é considerada mulher com atributos para casar. Além de estarem relacionadas a uma cronologia, essas práticas e esses usos dos cabelos representam o ciclo da vida de uma himba e fazem parte das aprendizagens peculiares no processo cultural e social de se tornar mulher.

    No contexto, os usos expressam ações simbólicas, ou seja, emitem significados, que são aprendidos, constroem e representam identidades. Mulheres e homens, da infância à vida adulta, são identificados por tais usos. Podemos dizer que, enquanto práticas corporais, esses modos de apresentação são inerentes à construção cultural das identidades e como tal são parte da educação, da formação e da linguagem social dos integrantes desse universo. Abrindo um parêntese, lembramos que, entre nós, segmentos de mulheres negras usam o chamado cabelo afro e turbantes na construção de suas identidades como forma de contraste com outros setores da sociedade ou como afirmação de uma identidade afrodescendente. Entretanto vemos a diversidade de expressões e linguagens em relação aos penteados uma vez que muitas mulheres negras optam por alisar seus cachos. De qualquer forma, tanto entre os himba quanto entre nós, o trato dos cabelos é ação simbólica, tem significado.

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    FIGURA 1.8 - SIGNO DE IDENTIDADE

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    Indumentária himba

    O modo de vestir himba, em especial o das mulheres, representa um importante signo de identidade do grupo. Seguindo a ancestralidade, elas vivem com os seios nus e fazem uso de sobreposições de saias feitas de couro ou de tecidos. Complementam a indumentária toucados de couro, amarrações, adornos feitos de contas, sementes, metal, osso e, até, policloreto de vinil (PVC). A aparência das mulheres himba é imponente e confere a elas um ar de guerreiras, dados os usos de colares, pulseiras, braceletes, tornozeleiras e caneleiras, lembrando armaduras ou outras roupas de guerra.

    Os acessórios utilizados pelos himba trazem a assinatura de uma estética étnica que embeleza tanto quanto comunica status. Como um exemplo, desde crianças os himba, homens e mulheres, usam colares – e esse uso se estende por toda a vida. Na prática, indicam os ciclos de vida e/ou os papéis sociais: alguns significam infância; outros, virgindade; outros, casamento etc.

    A condição de mulher casada é representada por um adorno do tipo toucado, feito da pele da cabeça de cabra e entrelaçado no cabelo no alto da cabeça chamado erembe. As tornozeleiras e caneleiras têm a função de proteger contra picadas de cobras. Todo o estilo indumentário da cultura himba é composto por elementos que caracterizam os recursos naturais disponíveis ou substitutos artificiais: pulseiras que já foram feitas de chifres hoje são feitas de PVC, porém com a mesma técnica.

    Em contraste ao modo de vestir tradicional, cheio de significados na cultura himba, algumas mulheres, crianças e muitos homens vêm adotando um vestuário ocidentalizado. No caso delas, é possível verificar o uso de vestidos de tecidos finos, como renda e tafetá, além de peças como boleros, casacos de lã e blusas de malha, certamente doados por turistas, o que indica a mistura cultural que os himba estão vivenciando, e cada vez mais, em função do etnoturismo. Aliás, toda a questão envolvendo interferências e/ou influências remete à problemática levantada noutro contexto da desfiguração entre o que seria próprio e alheio (TIBAU, 2012, p. 59).

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    FIGURA 1.9 - MODOS DE VESTIR

    FONTE: foto de Anderson Tibau

    A Figura 1.9 mostra uma cena cotidiana dos himba: mulheres sentadas conversando, sempre com as crianças por perto e homens de pé observando. Nela vemos a mistura nos atuais modos de vestir himba, que, possivelmente, repercutirá cada vez mais na maneira como lidam com seus corpos, na atualização do legado de seus antepassados. Tais momentos de sociabilidade, por exemplo, representam instâncias de educação no sentido alargado do termo. São formativos de modos de agir e sentir. Revelam técnicas corporais, como podem ser observadas igualmente em todas as fotos que construíram a nossa narrativa.

    Considerações, interpretações e referências (anteriores e posteriores ao trabalho de campo)

    Evidentemente, a pesquisa de campo que antecedeu este texto alimenta-se de grandes perguntas iniciais provenientes seja da antropologia, seja da observação etnográfica. Tomando certas liberdades interpretativas ao lembrar Tim Ingold (2008, p. 88-89), a antropologia pergunta pelas condições e possibilidades da vida humana no mundo, pelo modo de vida de outros agrupamentos sociais, seus valores, suas práticas e representações, sua cultura. Enquanto a etnografia é a descrição após a observação, escrita na mesa de trabalho. Temos que ter em vista, ademais, que há várias concepções de etnografia (etimologicamente – escrita da cultura). Ingold fala ainda que a prática antropológica é uma invenção epistemológica e cognitiva. Pelo seu modus operandi, parafraseando esse autor, a antropologia educa no sentido de que leva à construção de um saber do outro, uma experiência da alteridade, envolvendo pessoas e sociedades, transformando nossas formas de perceber o mundo. Nessa perspectiva a etnografia, enquanto um ofício artesanal, por si só, tem significado e é transformadora. O encontro com a diversidade cultural, ou seja, com outros modos de vida, mostra as múltiplas possibilidades de existência, linguagens e simbolizações.

    Neste texto almejamos entrelaçar descrições verbais e imagens. O ato de fotografar, que possui vários significados, emite aqui um ponto de vista, uma história de nossa parceria, uma trajetória teórica e prática de observação, gostos e sensibilidade, um modo de ver que pode produzir outras emoções. Enfim, a motivação de fotografar não diz respeito a criar uma cópia da realidade. Consideramos, ainda, a intencionalidade do ato de fotografar como invenção do olhar do fotógrafo. No nosso caso, um olhar etnográfico. Tratamos as paisagens da Namíbia como sistemas de símbolos e narrativas (ECKERT; ROCHA, 2016, p. 88) estabelecendo relações entre a construção cultural e histórica das identidades de mulheres e o contexto em que vivem. Por isto, uma conjuntura meramente desenhada para turistas transformou-se num contato etnográfico, aqui interpretado com base noutras dimensões e noutros significados. Lembrando, inclusive, que a prática de fotografar pelos antropólogos remonta a uma linhagem na qual ressaltamos a obra de Bronislaw Malinowski e Margareth Mead, entre outros.

    Levando em conta a maneira pela qual um de nós (Tibau) estabeleceu contato delimitado no tempo e no espaço com uma aldeia himba, entrevemos que no roteiro de visitação que explora aspectos como o banho, o otjize, os cabelos e a indumentária exista uma encenação para os estrangeiros do que se imagina ser do interesse dos visitantes em relação à cultura nativa, uma apresentação para inglês ver, nos termos de Peter Fry (1982). Nesse caso, a aldeia se converte num cenário de práticas culturais, interações e fachada pessoal. Para Erving Goffman (2009, p. 31):

    Se tomarmos o termo cenário como referente às partes cênicas de equipamento expressivo, podemos tomar o termo fachada pessoal como relativo aos outros itens de equipamento expressivo, aqueles que de modo mais íntimo identificamos com o próprio ator, e que naturalmente esperamos que o sigam onde quer que vá. Entre as partes da fachada pessoal podemos incluir os distintivos da função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos corporais e coisas semelhantes.

    Essa constatação em nada diminui o significado das interpretações e a descrição das imagens e do que representam, mas as colocam numa rede de mediações, de relações e graus de interpretações, de distâncias e aproximações. Os himba, nesse contexto, são atores de si mesmos encenando um cotidiano, o que estabelece distâncias simbólicas entre o que vivem na sua realidade e o que dramatizam para os de fora. Paradoxalmente eles relativizam seu dia a dia, suas práticas corporais, sua sociabilidade e exploram a perspectiva exótica do olhar estrangeiro. Não deixa de ser um jogo, um teatro imaginário o que se passa nesses momentos, cada um no seu papel. O visitante tende a estranhar algo que foi desnaturalizado pelo próprio nativo e que lhe foi apresentado/vendido como modo de vida himba. Em outras palavras, o nativo sabe/imagina o que é de interesse do estrangeiro e o satisfaz em sua busca pelo inexplícito, pelo diferente, pelo que está fora da ótica. Isso em acordo e coexistência com o relativo cotidiano corriqueiro e real da aldeia. Um pacto mais ou menos inconsciente é estabelecido com engenhosidade por visitados e visitantes.

    Há que frisar, portanto, que o modo de vida ancestral não pode ser entendido como algo referenciado a um passado remoto da humanidade. Algo visto como parte dos primórdios da humanidade, uma etapa a ser superada. Pelo contrário, esse modo de viver é tão contemporâneo quanto qualquer estilo de vida visto como sofisticado. A tecnologia observada in loco e demonstrada nas fotos é tão complexa quanto qualquer expressão digital e robótica atual. Valem como exemplo, reconhecendo toda a engenharia relacionada, os penteados. A estética da mesma forma deve ser interpretada. Afinal, tecnologia e estética são expressões da diversidade, das diferenças culturais e, por isso, estão entre as escolhas possíveis inventadas pela humanidade. Podemos falar que representam gostos adquiridos e aprendidos informalmente.

    As representações das práticas corporais e sociabilidades das mulheres vermelhas do deserto da Namíbia, se por um lado reproduzem sua cultura e mantêm tradições ancestrais, por outro criam e produzem formas sociais de relacionamento no mundo globalizado baseadas no etnoturismo por meio de visitas guiadas e roteiros de semi-imersão. Desse modo, geram e operam mudanças e transformações na própria sociedade, usando os corpos e suas propriedades enquanto fonte de existência e experiência no mundo (CZORDAS apud DAUSTER, 2016, p. 292). Note-se que, ao lado de objetos nativos usados no dia a dia, o celular se faz presente significando e trazendo a globalização para o interior da aldeia. Só aparentemente um paradoxo. Contudo é símbolo, marca e clara manifestação da contemporaneidade e da internacionalização do mercado de produção e consumo naquele contexto. Sinal da gramática planetária. Ao mesmo tempo, as situações do cotidiano descritas, as práticas corporais, as relações estabelecidas são circunstâncias de aprendizagem e ensinamento da cultura independentemente de qualquer formalização escolar. Instância de educação no sentido alargado do termo, gostamos sempre de enfatizar.

    Vale insistir que este texto se situa, portanto, no âmbito da antropologia e da educação, que no sentido lato do termo não se reduz a situações de aprendizagem/ensino formais, e hoje amplia seus focos a fim de abranger formações, sociabilidades, socializações, interações, formas de convivência, rituais, festas, técnicas sociais e corporais e suas aprendizagens, modos de conceber e realizar, maneiras de sentir, fazer e agir. Em outras palavras a educação como cultura (BRANDÃO, 2017, p. 380). Nesse sentido, abre-se à interdisciplinaridade. Por outro lado, numa interpretação livre, almejamos partilhar a ideia de Christoph Wulf (2017) de que, na atualidade, a finalidade da pesquisa antropológica seria contribuir para a maior compreensão e melhores explicações sobre o fenômeno humano e seus problemas num mundo globalizado.

    Ao pensarmos nas práticas e representações do corpo entre mulheres himba, exploramos tanto a ideia de ancestralidade quanto de reprodução e invenção cultural. Mais que isso, tratamos de interpretá-las como ações simbólicas e processos de aprendizagem na cultura, aspectos de uma sociabilidade que, de geração em geração, continua mantendo e transformando a identidade étnica de uma cultura que há 30 anos, pelo menos, vem se abrindo ao Ocidente.

    Referências

    ABATI, Francisco Giner. La religión de los himba. Kaokoland (Namibia). Cultura y religión de un pueblo ganadero del Sudoeste de Africa. Revista de Antropología Social, Madrid, Complutense, n. 1, 1992.

    BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Memórias dos anos setenta. In: ECKERT et al. (Org.). Antropologia, Etnografia e Educação. Horizontes Antropológicos, ano 23, n. 49, p. 377-407, set./dez. 2017.

    DAUSTER, Tania. Corpo e Antropologia. In: NOVAES, Joana de Vilhena; VILHENA, Junia (Org.). Que corpo é este que anda sempre comigo? – corpo, imagem e sofrimento psíquico. Curitiba: Appris, 2016.

    FRY, Peter. Para inglês ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

    GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

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    Como criar para si um corpo pleno de alegria? A ética de uma filosofia menor

    Auterives Maciel Jr.

    Introdução: as questões

    Como criar, com prudência, um plano de consistência do desejo? Um plano de imanência que faça o desejo consistir? E como fazer com que esse plano consista na produção de um corpo intenso preenchido por afetos de alegria? Essas são as questões que inauguram a nossa provocação, pois há sempre a possibilidade de traçarmos planos com consistências precárias, preenchidos por intensidades frigoríficas, histéricas, masoquistas e anômalas, que resultam em experiências afetivamente limitadas. Por outro lado, na ética de uma filosofia do desejo, não é possível o traçado de um plano de consistência sem a construção de um corpo intenso, isto é, sem a textura de uma matriz que sirva de superfície geofísica por meio da qual flui a libido do experimentador. Nesse caso, existe a possibilidade de efetuação do desejo pela criação de um corpo afetivo pleno de alegria? E em tal desejo não se exige alguma dose empírica de prudência? Ora, é com tal possibilidade que construiremos este estudo, mostrando como o traçado desse plano de consistência vai criar a oportunidade para a definição real de um tipo peculiar de filosofia que deveremos, no devido momento, analisar.

    Mas, antes disso, é preciso perguntar: qual a natureza desse corpo? Trata-se, segundo Deleuze e Guattari (1996), de um corpo sem órgãos preenchido por afetos resultantes de experimentos que derivam dos contornos anatômicos do organismo. Um corpo produzido pelas relações de movimentos e repouso, velocidades e lentidões entre partículas, que exprimem um grau de potência que será efetuado por afetos que pervertem os destinos do organismo¹⁰. Um corpo inorgânico que prova pela experiência que o destino anatômico fixado pelo organismo é, quando muito, um obstáculo que só existe para ser ultrapassado. Se tomarmos de empréstimo o conceito de libido – tão caro e importante na construção freudiana –,diremos que o corpo sem órgãos é, na verdade, a produção libidinosa de um plano de consistência construído por investimentos intensivos de desejos.

    Mas como definir um corpo sem órgãos? Qual o sentido exato dessa nomeação? A ideia de corpo sem órgãos Deleuze e Guattari foram buscar em Artaud. Segundo eles:

    [...] no dia 28 de novembro de 1947, Artaud declara guerra aos órgãos: Para acabar com o juízo de Deus, porque atem-me se quiserem, mas nada há de mais inútil do que um órgão. É uma experimentação não somente radiofônica, mas biológica, atraindo sobre si censura e repressão. Corpus e Socius, política e experimentação. Não deixarão você experimentar em seu canto. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 10).

    Na realidade, a guerra é declarada contra o organismo e o plano de organização. A existência de um corpo sem órgãos é a possibilidade de um corpo com órgãos libertos das funções anatômicas, órgãos não mais predestinados a uma anatomia orgânica que fixa a sua função a um realismo biológico. Ou seja, no CsO os órgãos são polivalentes, pois entram em valências temporárias válidas pelos investimentos de libido e pela disposição afetiva da experimentação em curso. Sendo assim,

    Percebemos pouco a pouco que o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seu inimigo não são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo. É verdade que Artaud desenvolve sua luta contra os órgãos, mas, ao mesmo tempo, contra o organismo que ele tem: o corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são inimigos do corpo (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 21).

    O organismo é um estrato que sedimenta o corpo, que faz sobre ele uma organização, subordinando-o ao sistema do juízo de Deus, ou seja, ao sistema teológico, do qual os médicos se aproveitam e retiram o seu poder. O organismo é a imposição de um destino anatômico que sabota a produção intensiva do desejo. Mas um corpo sem órgãos é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado,

    [...] povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam... O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso...Ele é matéria intensa e não formada, a matriz intensiva, a intensidade= 0. Mas nada há de negativo nesse zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. Matéria igual a energia. Produção do real como grandeza intensiva a partir do zero (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 13).

    Por isso Deleuze e Guattari vão tratar o corpo sem órgãos como o plano de consistência anterior à extensão do organismo, à formação dos estratos¹¹. Trata-se – como eles nomeiam – do ovo intenso, onde os órgãos aparecem e funcionam como intensidades puras. Órgãos que transpõem um limiar, mudando de gradiente. Ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos órgãos, antes das formações dos estratos(p.14), ovo intenso que se define por tendências dinâmicas com mutações de energia, movimentos cinemáticos com deslocamentos de grupos(p. 14) e mutações de todo tipo. Sendo assim, com os órgãos provisórios de uma matriz intensa tal corpo será, enfim, nomeado como um ovo tântrico.

    Entretanto ninguém subverte um destino anatômico sem correr o risco de cair em uma experimentação volúvel, às vezes por esvaziamento, outras por monotonia da intensidade produzida, outras até mesmo pelo enlouquecimento celular que desagrega a organização produzindo um corpo sem órgãos canceroso. É assim, por exemplo, que Deleuze e Guattari inauguram a série de corpos sem órgãos na apresentação do platô que avaliamos neste trabalho. Há, para eles um corpo hipocondríaco – cujos órgãos são destruídos, cuja destruição está concluída, mas nada acontece. Há um corpo paranoico – cujos órgãos não cessam de ser atacados por influências, mas também restaurados por energias externas. Há um corpo drogado – acometido de intensidades frigoríficas que desfazem a organização tirânica do organismo. E há, também, um corpo masoquista – que busca por meio da dor intensidades indispensáveis para a validação erótica de um desejo¹². Ou seja, Deleuze e Guattari tratam das experiências masoquistas, das drogas, das sexualidades nômades – sem fins orgânicos, nem destinos narcísicos – das experiências transexuais, das anomalias libidinosas que banham as experiências sádicas e paranoicas, dos enlouquecimentos celulares que produzem corpos cancerosos, como tipos de corpos sem órgãos do desejo.

    Longe de um julgamento moral – que deturpa a compreensão do desejo em proveito de uma suposta organização normal –, há uma apreciação ética e materialista que convém colocar em análise, pois em todos os casos apresentados, teremos testemunhos inquestionáveis de corpos-sem-órgãos construídos como planos de consistência de desejos. Sendo assim – como já insinuamos no início deste estudo –, existe a possibilidade da produção de corpos sem órgãos preenchidos por intensidades lúgubres, de dor, por delírios persecutórios, por ondas frigoríficas e por meios nem sempre traçados com os cuidados éticos devidos. E quando falta o cuidado para a produção de um corpo sem órgãos, não há, de fato, o duplo esforço indispensável para a sua produção potente, que é 1) traçar o plano de consistência em condições afirmativas e experimentais e 2) preenchê-lo com intensidades de alegria. É aqui que a prudência torna-se necessária na nossa inflexão. Como dizem Deleuze e Guattari:

    Mas por que este desfile lúgubre de corpos costurados, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto que o CsO é também pleno de alegria, de êxtase, de dança? Então, por que estes exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de corpos plenos. Que aconteceu? Você agiu com a prudência necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nesta batalha. Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love, Experimentação. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 11).

    Ora, é a evocação da prudência que configura o problema dos tipos de corpos sem órgãos no terreno da filosofia, situando-o no campo da experiência ética. Nesse caso, poderíamos confirmar a possibilidade de uma avaliação filosófica dos corpos sem órgãos pela perspectiva de um plano de consistência do desejo. Ou seja, é pela filosofia que uma ética do corpo sem órgãos é devidamente consolidada, estando o avaliador empenhado na tarefa de construir, pela sua avaliação, um corpo pleno sem órgãos imanente à criação conceitual. Assim, retomamos nossa questão inicial e, de imediato, impomos a ela outras questões: Existe um corpo sem órgãos traçado pela filosofia? E qual é a sua condição de possibilidade? Além disso, podem filosofias colocar em análise corpos sem órgãos de experiências plurais? Essas questões conferem à filosofia a tarefa de avaliar os tipos de corpos sem órgãos com critérios éticos condizentes com a prática filosófica.

    Afinal, é pela avaliação filosófica que se atesta – por um lado – a existência de um corpo vazio, desorganizado pelas precipitações orgânicas, produzido em circunstâncias experimentais, onde nele só ocorrem afetos decorrentes de impasses morais ou racionais; mas se atesta, também, a produção de um corpo pleno de alegria, visto como a matriz de um desejo em puro movimento imanente e processual de expansão. Será tal avaliação uma investigação plausível de um gozo secreto de uma certa filosofia? Sim, e além disso uma maneira de avaliar a produção de intensidade seguindo o vetor de uma prudência ética e materialista do processo do desejo. Ora, é com tais possibilidades que buscamos a matriz de um corpo sem órgãos na experiência filosófica; que avaliamos o amor cortês e o Tao oriental na perspectiva intensiva de um puro desejo processual; que buscamos nas reivindicações das experiências queers corpos intensos produzidos por discursos plurais e que alinhamos todas essas experiências pela articulação curiosa da filosofia de Spinoza com o teatro de Antonin Artaud, por meio do estudo realizado por Gilles Deleuze e Félix Guattari.

    E assim confirmamos as questões que norteiam nosso estudo: há desejo na experiência potente que transborda os limites fixados pela anatomia; há perigos imanentes aos traçados frugais de corpos sem órgãos lúgubres e há éticas plurais de desejos que se habilitam na contramão de obstáculos impostos pela arrogância moral. Entre as éticas plurais delimitadas no estudo, é a ética de Spinoza que nos autoriza a pensarmos em um corpo sem órgãos da filosofia; validando a diferença de um corpo pleno de alegria, construído na matriz de um plano de imanência traçado como a terra dos conceitos. Se em tal contexto o corpo sem órgãos é o plano de imanência de um desejo concebido como um grau de potência – grau esse que se efetua nos encontros dos corpos enlaçados por afetos e relações entre partículas –, há, com relativa evidência, um corpo sem órgãos da filosofia quando esta se traça no vetor não anatômico de experimentos imorais.

    Dessa inspiração, buscamos as condições de possibilidade de experiências éticas plurais, estabelecidas como construções de diferenças afirmadas por minorias que resistem aos poderes opressores e majoritários que orquestram

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