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Corporeidades Deslizantes: A Cena Explorada Para Além do Sujeito
Corporeidades Deslizantes: A Cena Explorada Para Além do Sujeito
Corporeidades Deslizantes: A Cena Explorada Para Além do Sujeito
E-book244 páginas6 horas

Corporeidades Deslizantes: A Cena Explorada Para Além do Sujeito

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Sobre este e-book

Comecemos pelo palpável. Ao observarmos tudo o que é vivo, e nesse caso, mais especificamente, os seres humanos, somos colocados diante de um feixe de semelhanças e diferenças, tensões e convergências. Entre as vulnerabilidades mais aparentes, que permeiam o início e o fim dos percursos de vida, há processualidades que se sobrepõem em nossos organismos de modos surpreendentemente variáveis, e que nos fazem perceber que, para muito além do que chamamos genericamente de corpo, há, na verdade, a emergência de infinitas corporeidades. Somos seres sensíveis, expressivos, energéticos... As escritas presentes nessa obra buscam caminhar por lugares menos palpáveis, mais pueris e fragmentados a fim de refletir sobre as corporeidades do sujeito na cena contemporânea.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de set. de 2019
ISBN9788546211968
Corporeidades Deslizantes: A Cena Explorada Para Além do Sujeito

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    Corporeidades Deslizantes - Gabriela Pereira Fregoneis

    Bonfitto

    INTRODUÇÃO

    DO CORPO ÀS CORPOREIDADES

    Durante o processo de escrita da dissertação no mestrado, em que me dediquei a estudar e analisar as possíveis relações existentes entre teatro e cinema por meio dos filmes de teatro, deparei-me com a poética singular e intrigante do ciclo de filmes nomeados como Tragédia Endogonídia, da companhia italiana Societas Raffaello Sanzio. Ao pensar sobre o campo de pesquisa a ser abordado no projeto de doutorado, busquei abrir as gavetas que foram acessadas durante os dois anos de pesquisa do mestrado, mas que, devido à falta de tempo e a amplitude do tema, não puderam ser reviradas e problematizadas. Uma dessas gavetas diz respeito às corporeidades cênicas, seus modelos e desvios. A primeira questão que aparece nesse momento é: por que a escolha do tema Corpo? De que maneira uma pesquisa realizada no Brasil, no século XXI, pode contribuir para as linhas de pensamento e ideias que abrangem este tema, já que muito se tem falado e publicado?

    Ao ver o ciclo da Tragédia Endogonídia #Cesena, logo na primeira cena é apresentado um corpo estranho, aparentemente meio homem meio animal. Um corpo humano ereto, com muitos pelos pelo corpo e com próteses nos seios. Ao estudar as poéticas cênicas do diretor Romeo Castellucci, e as experiências que ele busca, como a hibridação entre homem e animal, por meio dos seus seres inumanos, uma faísca surgiu e o que era estranho aos meus olhos passou a ser o agente estimulador para minha pesquisa, seja como pesquisadora/docente ou atriz/performer. A partir deste estranhamento, comecei a pesquisar outros grupos e artistas que se debruçaram sobre as hibridações e suas possíveis temáticas acerca do corpo e do pós-humano: Oriza Hirata, Denis Marleau, Marcellí Antunez, Strelarc, La Fura dels Baus, Heiner Goebbles, dentre inúmeros outros artistas. Juntamente com o levantamento videográfico das obras realizadas por esses artistas, confrontei-me com uma citação do Hans-Thies Lehmann sobre a fala do diretor norte-americano Robert Wilson, que dizia que o teatro está se encaminhando para o pós-antropocênico. A inquietação frente a tal afirmação, juntamente com os vídeos assistidos, guiou-me para o universo de investigação acerca do corpo e suas experiências cênicas dentro das novas linguagens do pós-humanos, pós-antropocênico, pós-orgânico, etc. Proponho, assim, a pensar o corpo como primeira mídia, já que a arte humana se dá no corpo e por meio do corpo.

    Foi no decorrer da trajetória destas questões que comecei a refletir e estar no campo de pesquisa, buscando detectar uma diferença importante entre o eu sei e o que se sabe. Ao propor uma pesquisa acadêmica, sou imersa em inúmeros campos do saber que se entrelaçam, como zonas rizomáticas deleuzianas: filosofia, ciência, arte, antropologia, sociologia, etc. A ideia de experiência acabou se tornando o fio norteador de toda investigação que tange o pensamento e escrita dessa tese, como uma potência de agir de Espinosa, que se coloca na relação direta em afetar e ser afetado pelo campo de estudo. Fui/estou afetando e sendo afetada por essa escrita e pelos pensamentos/vivências devires. Coloco-me na ânsia de buscar uma escrita esburacada, fraturada, corroída que tenta dar nome ao indizível que se passa pelo corpo volátil da experiência, compartilhando, assim, os pensamentos de Foucault sobre como dar nome às palavras e às coisas, brincando, aqui, com um dos títulos de sua obra. Pensar o corpo pode ser uma das maneiras de pensar o mundo. Busco a tentativa de uma escrita fluída, líquida, em que as palavras sejam absorvidas pela porosidade do papel e que, por fim, possam servir como um lugar de (com)partilhamento de experiências entre artistas e pesquisadores. Gostaria de deixar claro que escrevo aqui pelos poros da Gabriela: as palavras decantam, sentidos congelam e significações evaporam! Esforço-me em tatear o impalpável, em perceber o invisível. Escrevo pelo anseio de um corpo desejante de saber-se e descobrir-se.

    É necessário pensar, no decorrer da escrita desta tese, que os capítulos são estações em que paramos, problematizamos e refletimos questões, dentro deste grande mar – corpo fluido – que se chama corpo. Trago a ideia de fluidez da água por se buscar uma escrita líquida em que se hibridizam temáticas; busco uma escrita rizomática, em que os capítulos não apresentam um início e um fim de pensamentos fechados, mas escrevo como possíveis caminhos/entradas ao universo da pesquisa, como possíveis agentes estimuladores. Decido olhar o corpo pelo viés do universal, e não simplesmente como algo que é delimitado por uma superfície chamada pele, ou a pele que habito, parafraseando o filme de Almodóvar. Em História do Corpo, Roy Porter ressalta que a busca pela história do corpo não se limita à busca de informações sobre o físico, nem apenas sobre as representações, mas da compreensão da ação recíproca entre os dois – corpo e representação¹. A pesquisa é situada pela retroalimentação entre os olhares do corpo e suas maneiras e formas de se estar no mundo, seja por meio da construção de identidades ou representações de si. A escrita é submersa nesse território, alicerçada entre o corpo e suas representações, no decorrer das principais transformações do século XX, até os dias de hoje. O primeiro capítulo dedica-se a investigar questões acerca deste grande tema, repensando nas modificações e metamorfoses em que o corpo humano foi embebido no decorrer dos olhares transversais do século XX. Proponho, para este capítulo, que o leitor visualize uma imagem líquida de superfície; um corpo que é exposto e boia, que é construído levado pelas ondas e ventos da história.

    Uma inquietação constante que tem me acompanhado no decorrer deste estudo de doutorado e também no meu fazer artístico enquanto atriz/performer, diz respeito ao que vem a ser o modelo ou padrão de corpo, tanto social quanto cênico, na atualidade. Esse modelo corporal midiático que se impõe em nossa sociedade ocidental não foi criado ao acaso; ele foi resultado de uma gestação histórica que durou mais de um século e que, segundo o livro História do Corpo, foi o século XX que mais sofreu mudanças de olhares frente ao corpo. Jean-Jacques Courtine² chega a afirmar que:

    O século XX é que inventou teoricamente o corpo. Essa invenção surgiu em primeiro lugar na psicanálise, a partir do momento em que Freud, observando a exibição dos corpos que Charcot mostrava na Salpêtrière, decifrou a histeria [...] o inconsciente fala através do corpo.

    Dentro da história do corpo, foi no século XX que o corpo passou por suas maiores transformações, por isso acabei escolhendo o termo metamorfose como título para o primeiro capítulo. O corpo visto como sujeito, como objeto, como matéria de identidade, como corpo social, corpo orgânico, de carne e sangue, corpo agente e instrumento, corpo subjetivo, dentre inúmeros outros. Por meio da leitura dos livros A História do Corpo I – Da Renascença às Luzes, II – Da Revolução à Grande Guerra e III – Mutações do Olhar: O século XX, busquei tecer relações acerca das visões permeadas sobre corpo no decorrer do processo histórico. Considerei importante tecer uma escrita sobre o panorama no corpo no século XX até chegar aos dias atuais, não para ressaltar o caráter informativo histórico pelo viés do corpo, mas para problematizar questões levantadas nas práticas artísticas contemporâneas que estão imbricadas nesse corpo social, político, que foi formado e padronizado em épocas anteriores. O intuito foi de relacionar diretamente as percepções acerca desse corpo artístico contemporâneo com as passagens históricas mais relevantes, buscando realizar uma chamada de consciência para essas possíveis visões acerca das novas corporeidades, pensando o corpo cênico como agente desestabilizador do sujeito e do social, buscando territórios que problematizem essas questões na cena expandida.

    Pensando no desaguar do primeiro capítulo para o segundo, busco, por meio da fricção e do contraste potencializar, olhares frente ao corpo despadronizado, desumano, inumano, feio, grotesco, etc. Aqui, proponho a imagem de um corpo decantado, que existe, mas não é visto; que se coloca na obscuridão do fundo, das profundezas. Coloco em choque duas formas poéticas antagônicas, a fim de compreender, através de forças opostas, suas potências e presenças performativas. O corpo em arte é um corpo em crise, um corpo que convulsiona, que leva choque, que é afogado na existência, assim como busca Romeo Castellucci na construção da estética cênica da Societas Raffaello Sanzio. No segundo capítulo, mergulharei nas corporeidades que ficam à margem, na zona liminal receptora dos olhares desviados, das presenças ignoradas e dos corpos invisíveis. O que acontece com esses corpos quando são expostos em cena? Quando mastectomizados, obesos, anoréxicos, deficientes físicos e mentais são colocados nos papéis dos protagonistas? Castellucci apresenta a potência destes corpos/figuras, em obras como Orestea, Giulio Cesare e Genesis, que serão analisadas e refletidas nessa estação.

    No terceiro capítulo, Corpo e seus duplos, dou continuidade à pesquisa pelo viés da fissura, do olhar subjetivo frente aos duplos de nós mesmos. Disserto brevemente sobre a história do duplo humano artístico no teatro, resgatando as poéticas de Kleist, Maeterlinck, Craig e Kantor, até chegar no duplo na virtualidade tecnológica da relação homem x máquina com a Cia. catalã La Fura dels Baus. Por se tratar de um grupo que se dedica a investigar a cena híbrida entre natural e artificial, homem e máquina, como continuidade desta temática, evaporo minha experiência para chegar no campo expandido e a cena pós-humanista no teatro.

    No quarto e último capítulo, Artistas e a cena pós-humanista no teatro, como um caminho possível para a compreensão do Corpo expandido ou corpos explodidos? Liminaridades deslizantes, destaco alguns encenadores que tem dedicado seus trabalhos dentro do campo da arte tecnológica pós-humana, pós-orgânica ou biológica, trabalhando com robôs, androides, ciborgues, programação informática, etc. A imagem proposta para pensar nesse corpo é a de uma água que evapora, gotículas que se transformam do estado líquido para o vapor, mas que não são visíveis aos olhos. É um corpo miragem, um corpo virtualizado e permeado de novos modos de existência. Para dar concretude para a escrita e relato destas vivências, proponho um olhar verticalizado da experiência por meio dos estudos de caso – obras e artistas – que tem dedicado suas artes dentro do campo expandido para além do humano, não negando sua existência, mas se fazendo presente por meio de sua ausência.

    Faço o convite para que o leitor experimente navegar na escrita dos capítulos como quem adentra em um território desconhecido, almejando descobertas e inquietudes, levantando questionamentos e reflexões e não – de forma alguma – verdades. Não busque voltar seu olhar para as certezas já construídas, mas sim para as incertezas desorganizadas. Assim como eu, tente perceber o que é estrangeiro na pesquisa e ansiando para que o estranho se torne familiar. Faço a transição desta introdução para o primeiro capítulo gritando:

    – Não SOU um corpo... Não TENHO um corpo... somos corpos volatilizados que tocam o mundo e as coisas. O ter e ser já não bastam para certificar e comprovar a existência, como diz William Burroughs Um corpo só existe para ser outros corpos. Somos plurais, somos muitos em um só, somos reais e virtuais; somos naturais e artificiais... somos ciborgues mutantes! Boa leitura e experimente seus C O R P O S.

    Notas

    1. In: Villaça, Nízia; Góes, Fred; Kosovki, Ester. Que corpo é esse? 2. ed. Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.

    2. Courtine, Jean-Jacques. Introdução. In: Corbin, Alain; Courtine, Jean-Jacques; Vigarello, Georges. História do Corpo 3. As mutações do Olhar. O século XX. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011, p. 7-12.

    CAPÍTULO 1

    METAMORFOSES DO CORPO NO SÉCULO XX

    "Quero romper com meu corpo, quero

    enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha

    essência, mas ele sequer me escuta e

    vai pelo rumo oposto."

    (Carlos Drummond de Andrade)

    Alguns olhares transversais sobre o corpo no século XX: apontamentos precisos e/ou preciosos

    O corpo se tornou, no século XX, um objeto de investigação histórica e social. Medicina, filosofia, antropologia, sociologia e engenharias se debruçaram, e continuam se debruçando, incessantemente, sobre esse universo tão intrigante que se chama corpo. Pensando o corpo pelo viés orgânico, considero necessário iniciar a reflexão destacando algumas modificações sofridas pelo corpo devido ao avanço das pesquisas e das investigações médicas. Anne Marie Moulin, em seus escritos sobre a relação entre o corpo e a medicina, parafraseando o filósofo Jean-Claude Beaune, diz que: ‘não se sabe mais estar doente’ [...] Antigamente, a doença se desenrolava em tempo real, e o corpo era nesse caso o teatro de um drama repleto de majestade³. Tendo em vista a citação de Moulin, fica clara a diferença de conduta frente às doenças e enfermidades do século XIX para o XX. Era comum que as enfermidades disseminadas no passado, passassem por um ritual de cura, que sacrificava o corpo com suas febres altas, suas feridas, suas dores extremas e o limite de sua debilidade existencial.

    O corpo do século XX não quer mais admitir que a doença desafie as forças do organismo, primeiramente devido à busca incessante dos químicos pelo elixir da longa vida, e depois pelo fato de a doença retirar o sujeito de sua função social utilitária, ou seja, de seus trabalhos, estudos, etc. É a experiência do corpo em sempre procurar estar em estado de utilidade e nunca de latência. O olhar sobre o corpo do século XXI, pelo viés da medicina, não é mais o de curar uma doença existente, mas de buscar identificar as possibilidades que possam retirar o corpo da zona ameaçada da doença e levantando maneiras de prevenir/remediar a enfermidade, ainda que possa estar em estado de devir, o que ainda está ausente, mas pode vir-a-ser. Caminhando em linhas extremas dentro da ideia de prevenção, o século XX viu desenvolver a medicina predictiva, baseada na codificação dos genomas, realizando estudos entre a sequência dos genes do indivíduo, sua capacidade mutacional e a possibilidade de desenvolvimento de enfermidades – principalmente o grande vilão do século XXI: o câncer⁴. O indivíduo passou, desta maneira, a ter a possibilidade de prever suas falências corporais sem que a doença ainda tenha se manifestado. Segundo Paul Rabinow⁵:

    O corpo genético é então o corpo quadriculado da população, corpo atravessado por normas e regularidades, lugar do controle a da formação do eu. Nestes três sentidos, ao menos, a genética transformou ou contribuiu para transformar, com outras mutações, o nosso olhar sobre o corpo: corpo digitalizado e programado do homem universal, corpo sofredor, exposto e, no entanto, ativo do enfermo, corpo quadriculado e normado da população.

    O corpo, devido ao desenvolvimento genômico, passa a ser uma ciência exata, somado à biológica, e, em consequência disso, deixa de se colocar na zona de risco orgânico e funcional, aumentando suas capacidades fisiológicas. O corpo passa a ser programado, tendo a possibilidade de prever o futuro de suas debilidades. A fala de Rabinow tece associações não só entre o desenvolvimento do projeto genoma, mas também nas relações imbricadas com a construção do sujeito – a formação do eu –, discussão que será aprofundada no subcapítulo Corpo e o Sujeito. Além da previsibilidade antecipada de doenças, podemos prever hoje quando queremos ter filhos, escolher o sexo e selecionar os genes propícios para melhor desenvolvimento dos desejos dos pais, por exemplo, se o filho deve seguir a área das exatas, humanas ou biológicas. Incubadoras artificiais já estão sendo desenvolvidas para que o bebê seja gestado fora do corpo da mãe, por meio da fecundação in vitro e gestação em úteros mecânicos. Já existem discussões acerca dessa polêmica, que retiraria a ideia de gestação unicamente da figura feminina, já que a máquina é que será a progenitora e tudo acontecerá fora do corpo humano.⁶ Temas polêmicos e inquietantes como esses são apresentados nesses corpos em metamorfoses que migraram do século XX para o XXI.

    Retomando o assunto entre o corpo e as enfermidades, é possível associar a ideia de Artaud, escrita em seu livro O teatro e seu duplo, que relaciona o teatro com a peste. Para entender o estado pestilento do corpo frente à enfermidade, é necessário passar pelo processo de contaminação deste ser invisível, já que a peste não se manifesta externamente, mas destrói o corpo internamente, principalmente cérebro e pulmão. Segundo Artaud⁷:

    os dois únicos órgãos realmente atingidos

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