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O que Pode um Corpo? Diálogos Interdisciplinares
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O que Pode um Corpo? Diálogos Interdisciplinares
E-book347 páginas4 horas

O que Pode um Corpo? Diálogos Interdisciplinares

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Sobre este e-book

Este é o quarto volume de coletâneas dedicadas aos estudos do corpo, em uma perspectiva interdisciplinar, que tenho o prazer de apresentar. Fruto de investigações que vêm sendo desenvolvidas no Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – Lipis, da PUC-Rio, vinculado a esta vice-reitoria em parceria com diferentes universidades, O QUE PODE UM CORPO? nos conduz ao instigante território da corporeidade na sociedade contemporânea. Mapeando o trajeto do corpo na filosofia desde os tempos antigos, discutindo fenômenos contemporâneos tais como o transsexualismo, os suicídios ordálicos, a obesidade, os corpos silenciados pela violência do racismo e pela tortura até as produções culturais que fazem do corpo uma forma de comunicação, as organizadoras nos conduzem, mais uma vez, a um diálogo instigante acerca das múltiplas possibilidades dos usos dos corpos na sociedade atual.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de set. de 2022
ISBN9788547336370
O que Pode um Corpo? Diálogos Interdisciplinares

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    O que Pode um Corpo? Diálogos Interdisciplinares - Joana de Vilhena Novaes

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI

    APRESENTAÇÃO

    O que pode um corpo? Pergunta sem resposta...

    Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial.

    (Nietzsche, Fragmento Póstumo)

    Desde o nascimento da psicanálise, passando pelo desenvolvimento da sua teorização, o corpo foi objeto de numerosos debates e divergências teóricas. A posição freudiana, contudo, sempre foi clara: o corpo não se reduz ao puramente orgânico nem se desfaz de seus engajamentos como propõe a psicossomática. Nesse sentido, o corpo pulsional psicanalítico difere, em grande medida, do corpo funcional do qual trata a medicina. Para Freud o corpo é o lugar do qual emerge o pulsional e o seu meio de chegar à satisfação, seja ela no prazer ou no desprazer, daí advindo a sua capacidade de se transformar em um teatro, como nos fala McDougall, colocando em cena os conflitos inconscientes mais variados.

    O corpo assume diversas formas ao longo da obra freudiana. Observado mediante a conversão histérica, no corpo erógeno, na sua condição pulsional, de objeto ou alteridade radical; no narcisismo e também no Eu corporal. O corpo testemunha, assim, sua função central na elaboração do aparelho psíquico. Em todas as suas configurações, o corpo encena uma coreografia que evolui ao longo da sua elaboração teórica, tornando, portanto, incontestável o seu lugar na teorização freudiana.

    Na atualidade, o corpo entrou em cena enquanto moeda de troca, palco de investimentos variados e, da mesma forma, enquanto objeto de debates interdisciplinares.

    E, sendo assim, tomamos como ponto de partida de nossas reflexões algumas perguntas norteadoras acerca da sua condição. O que é um corpo? Qual a sua potência e os seus limites?

    Para responder a essas indagações, Nietzsche utiliza-se de uma das suas belas metáforas, afirmando ser o corpo equivalente a um grande estômago que digere experiências. Segue em sua analogia empregando termos fisiológicos para tratar da existência humana. Em sua descrição, o filósofo afirma mastigarmos experiências enquanto ruminamos pensamentos, ao mesmo tempo que digerimos vivências e excretamos o que não nos interessa...

    Em um movimento contínuo de assimilação da realidade que o cerca, o corpo busca selecionar o que lhe é vital e importa, descartando o seu contrário. Algumas coisas retêm, outras tantas vão embora. Por fim, o corpo incorpora o mundo sob suas próprias regras, medidas e determinações. Sua incorporação servirá: à sua autorregulação, nutrição, expansão, extravasamento, dominação, triunfo e tudo mais que constituia a sua manutenção.

    Logo, temos, no corpo, fundamentos para pensar o ser e suas tessituras sociais.

    O que pode então um corpo? Perguntamo-nos com o título desta obra. O corpo que fora outrora esquecido, reaparece, agora, como o centro das atenções. O que encontramos depois de cruzar os seus limites?

    Nietzsche chamara de Vontade de Potência. O corpo se move, é dinâmico e assim se divide, multiplica-se, espalhando-se de diferentes formas. O corpo é a capacidade de se tornar outro corpo, tudo isso sem se desfazer no processo. Ao atingir seu limite, ele se transforma!

    Se o corpo será cenário para o controle, também cumprirá função de resistência. Resistências que podem ser observadas no cotidiano, em que as fissuras dão espaço a novas práticas de existência mais conectadas com as demandas dos sujeitos que a cidade não responde. Resistir é afirmar, criar e produzir diferenças. Pensemos, pois, a criação como puro desejo, processo e necessidade de experimentações incessantes.

    Corpos que ocupam um lugar inesperado e lançam-se à desterritorialização, à criação de mundos. Corpos para os quais as fronteiras não são limites, mas espaços para potenciais encontros e trocas, como antecipado por Certeau (2008).

    A partir da noção do corpo enquanto um espaço de trocas e também de criação, pensamo-no em todas as suas múltiplas formas expressivas, bem como na dimensão de singularidade que o mesmo empresta ao sujeito.

    Mais ainda, por meio da investigação sobre o campo enunciativo próprio aos sujeitos que realizam modificações corporais extremas (construção da imagem corporal com uso de técnicas como a tatuagem, piercing e cirurgia plástica), é possível problematizar a singularidade, tomando-a como uma formação mítico-imaginária, na qual a unicidade do ser seria não somente um ancoradouro identitário, como também uma das vias de acesso que tornaria possível o desejo do sujeito assumir um lugar protagônico e de autoralidade, na narrativa de si.

    Nesse sentido, reconhecer a relevância de investigar a relação entre os processos subjetivos envolvidos nas práticas de modificação corporal extrema e manipulação da imagem corporal, significa, em última análise, refletir sobre uma corporeidade contemporânea e as novas formações subjetivas que daí advém como um reflexo da dialética sujeito-cultura, na qual é possível observar um projeto corporal e estetizante de si. Desse modo, salienta-se, igualmente, o lugar de proeminência que a questão da singularidade ocupa em nosso imaginário social, bem como no cenário discursivo atual – em sua interface com a privilegiada função que a corporeidade parece assumir nos processos identitários da nossa época.

    Mais uma vez, nesta nova coletânea, convidamos diversos autores que vêm pensando o corpo em diferentes campos do saber, estabelecendo um diálogo que acreditamos ser bastante instigante.

    Auterives Maciel Jr, em seu texto Como criar para si um corpo pleno de alegria? A ética de uma filosofia menor, tratará do corpo sem órgãos como o plano de consistência do desejo, procurando explicitar uma experiência ética mediante um vetor de avaliação de certos corpos construídos com prudência e avaliados por intensidades que circulam no âmbito da sua produção. Buscando nos gêneros de corpos sem órgãos – tais como corpos vazios, lúgubres e corpos plenos de alegria – as condições experimentais de uma filosofia menor, apresenta uma curiosa intercessão entre Artaud e Spinoza, para entendermos a ética de um pensamento que clama por um corpo pleno de alegria.

    Em Cartografia de uma dor, Maria de Fatima Amim trata do nascedouro do psiquismo humano e os efeitos na subjetividade de não termos nossas necessidades básicas atendidas. Quais os prejuízos emocionais quando é constatada uma falha básica? Por onde se perderá o olhar, quais as ressonâncias psíquicas e também as vicissitudes da pulsão se a função especular não fora bem desempenhada? Se é correto afirmar a necessidade que legitima a nossa existência e que tal fato é estruturante para a nossa formação identitária, o que dizer de um eu faminto, não saciado em sua fome de afeto? E as dores da existência? Quando nos apropriamos delas? A mídia cunhou a expressão geração analgésico para chamar atenção, nos tempos atuais, para o uso excessivo de medicação, na resolução de problemas extremamente complexos, de forma linear. Essas são algumas das reflexões que nortearão a leitura desse artigo.

    O texto Resistir com arte: inscrições da dor em corpos de mulheres, de Franciana Di Fátima Cardoso e Carlos Mendes Rosa, propõe uma narrativa histórica e crítica acerca do feminino, com ênfase no corpo da mulher como lócus de objetificação, resistência e enfrentamento. Imersos no machismo estrutural que perdura desde o início dos tempos e se expressa tanto na caça às bruxas do medievo quanto no altíssimo índice de violência doméstica que assistimos atualmente, os corpos assujeitados são também instrumentos, principalmente, por meio da arte, de afirmação da potência e poder das mulheres ao falarem por si e se expressarem sem intermediários. Nesse contexto, os Direitos Humanos só ganham concretude se entendidos de forma contrária.

    Em Abundância no deserto: notas sobre obesidade feminina e devastação, Joana Novaes tem como propósito a elaboração de algumas vivências, memórias e atravessamentos corporais. Esses são fruto de duas décadas do atendimento de pacientes obesas mórbidas. A autora toma como ponto de partida vinhetas clínicas, colecionadas por intermédio da escuta de pacientes frequentadoras do Núcleo de Doenças da Beleza. Ancora-se em reflexões teóricas feitas a partir de histórias de vida, cuja tônica revela a dificuldade nos processos psíquicos de construção e introjeção da imagem corporal e suas ressonâncias subjetivas. Sua escrita mergulha no ousado universo da licença poética, na intenção de traduzir, na forma de algumas prosas, versos e crônicas, um pouco do sofrimento psíquico dos sujeitos da sua clínica.

    O corpo é de ordem biológica? Indaga Joel Birman em O que pode um corpo: sobre o transsexualismo e a identidade de gênero. Sustentado e direcionado pelo desejo, a lógica do corpo ultrapassa o imperativo do estrito determinismo biológico, disseminando-se, assim, para outros territórios da existência, pela ultrapassagem permanente de novas fronteiras e bordas. Segundo o autor, a problemática do transsexualismo impõe-se como questão crucial e surpreendente na contemporaneidade, para que se possa indagar devidamente sobre o que pode o corpo na atualidade, pois os transgêneros pretendem realizar a transformação radical de sua condição de gênero, incidindo para isso de forma cortante nas formas corporais, nos diferentes registros da anatomia, da fisiologia e da endocrinologia do organismo.

    Em Corpos sitiados... palavras silenciadas, Junia de Vilhena vai descrever como a privatização do espaço público, por uma doutrina de segurança, que instala grades, cercas e outras barreiras, aponta para a colonização de nosso imaginário. Segundo a autora, a exclusão de um imenso contingente da população implica na perda da capacidade de se fazer ouvir, no fechamento de todos os veículos de expressão de anseios, demandas, aprisionando seus corpos em espaços de confinamento, o que não raro desencadeia formas violentas de reação. A restrição da circulação pela cidade, a desconfiança mútua entre os territórios da favela e do asfalto são analisadas como fatores de influência nas formações subjetivas.

    Em A pele que me envelopa: psicossomática, corpo e sensação na perspectiva psicanalítica, Katia Tarouquella Brasil e Francisco Martins privilegiam o corpo e a sensação no processo do adoecimento na perspectiva psicanalítica, circunscrevendo brevemente o percurso das ideias sobre o adoecimento do ponto de vista psicossomático, tendo a psoríase no centro dessa discussão e o lugar do corpo na economia psíquica, a partir do conceito teórico de Eu-pele proposto por Anzieu.

    Em Do corpo disciplinado ao corpo da hodiernidade: pistas e indícios para o debate, Marcelo Henrique da Costa e Giovanna Carneiro partem da premissa de não estarmos mais diante de um corpo eminentemente docilizado da sociedade disciplinar. Outros processos de assujeitamento e distintas estratégias de dominação dos corpos e da vida parecem, no entanto, estar em curso. Na atualidade, sob a influência das sociedades de controle, espetáculo e consumo, o corpo ganha uma centralidade inédita e se torna um elemento de consumo. Como pensar os processos de intensificação da vida e do corpo para além da cultura somática da hodiernidade é a questão central do artigo.

    Maria da Glória Sadala, em artigo intitulado: O corpo e o mal-estar na adolescência, analisa o mal-estar na adolescência, considerando as principais formulações psicanalíticas a respeito do sujeito adolescente, assim como as indicações freudianas sobre as três formas permanentes de mal-estar, em especial o corpo e as relações humanas.

    A partir de textos de base antropológica sobre estranheza e familiaridade na vivência entre culturas, sobre viagens, alteridade e corpo, Maria Helena Zamora, em "Tunisian Blue(s)" praias, estranheza e familiaridade, elaborou a própria experiência de viagem e permanência na Tunísia, país africano, árabe, muçulmano e de cultura bem diversa da brasileira. Tratou também da relação com o corpo nos dois países, partindo do exemplo da ida à praia. O título do trabalho remete ao blues antropológico, da saudade e também à cor azul dos mares da Tunísia e à fruição do novo nesta estadia.

    O texto de Nelia Mendes, Monica Vianna, Natalia Iencarelli. Bruna Madureira e Junia de Vilhena, Corpos em riscos e condutas ordálicas: viver ou morrer?, Parte de uma indagação acerca do comportamento de risco de adolescentes que praticam o que as autoras vão nomear de rituais ordálicos. Segundo elas, o desamparo, gerador do sentimento de vazio, seria uma das possíveis causas que induziria muitos jovens a buscar nos rituais ordálicos saídas, ainda que letais e da ordem da compulsão à repetição, para o desespero de verem suas vidas sem sentido.

    Trate-me como uma página de um livro: corpo, escrita e sexualidade é uma interpretação, entre tantas possíveis, do filme O livro de cabeceira, de Peter Greenaway, segundo Pedro Benjamim Garcia e Tania Dauster. O título do artigo foi extraído de uma frase da protagonista principal dessa história, Nagiko, que extrai prazer sexual de inscrições em seu corpo, ao mesmo tempo que ela mesma inscreve, em outros corpos, frases em troca de sexo. O corpo como suporte, para texto e prazer, é o que torna curiosa e fascinante essa história narrada de forma criativa pelo cineasta que a dirigiu baseado em um texto milenar.

    Pedro Duarte, em seu artigo O corpo e a filosofia, nos conduz à relação entre a filosofia e o corpo. O autor chama a atenção para como o corpo é uma estranha familiaridade e uma familiaridade estranha para nós. Por isso, nunca sabemos o que ele pode. Busca explicar, a partir daí, como, tradicionalmente, a relação da filosofia com o corpo foi de inimizade: a filosofia queria ser toda espírito, sem corpo. Da antiguidade com Platão até a modernidade com Descartes, o corpo foi subordinado à alma ou à mente. Isso só se transformaria decisivamente na filosofia contemporânea, a partir do pensamento de Nietzsche, ao fim do século XIX. O artigo, então, descreve a inimizade tradicional da filosofia em relação ao corpo e destaca a exceção a essa regra que foi Spinoza, explicitando, assim, que a pergunta sobre o que pode um corpo não tem uma resposta, mas tem uma história – e nessa história grita o nome de Spinoza.

    Corpo petrificado é um depoimento da viúva de um ex-preso político torturado durante a ditadura militar. Rosangela Vieira Rocha faz um inventário das doenças que acometeram seu marido em 35 anos de casamento, relacionando-as às formas de tortura as quais foi submetido. Por meio do corpo, ele, que nunca falou sobre o período de sua prisão, contou o que lhe sucedeu. Esse entendimento, contudo, só foi possível após sua morte, aos 66 anos, por meio das pesquisas que a autora empreendeu e do testemunho de um companheiro de prisão. O texto mostra que palavras podem ser dispensáveis diante da violência física e psicológica, pois o corpo tem a capacidade de, sozinho, mostrar o quão violado e maltratado foi, de maneira clara e veemente.

    Fragmento de uma pesquisa etnográfica realizada entre os anos de 2017 e 2018 na cidade do Rio de Janeiro, "Sexo ‘sem capa’: notas etnográficas sobre o corpo na experiência bareback entre homens, de Vladimir Bezerra e Sonia Maria Giacomini, vai abordar grupos específicos de homens que se relacionam sexualmente com outros homens sem o uso do preservativo, com o objetivo de refletir sobre sentidos e valores conferidos por esses homens ao corpo em que tem posição nuclear a valorização do que chamam de sexo sem capa. Os dados oriundos de um trabalho de observação direta das interações sexuais e de conversas informais em diferentes contextos de homossociabilidade revelaram um corpo que ultrapassa as dimensões sexual e biológica, e que é marcado pela intensidade, fluidez e transitoriedade. Afinal, no contexto dos riscos que envolvem a prática do sexo sem capa", que corpo é esse que se lança à experiência bareback, indagam os autores?

    Não buscamos nenhuma resposta à pergunta que dá título a este livro. Mas se a pergunta vai permanecer sem resposta, esperamos que o leitor possa encontrar novas perguntas a partir dos textos aqui reunidos.

    As Organizadoras

    Referência

    CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.

    Sumário

    Como criar para si um corpo pleno de alegria? A ética de uma filosofia menor

    Auterives Maciel Jr.

    Cartografia de uma dor

    Maria de Fatima Amin

    Resistir com arte: inscrições da dor em corpos de mulheres

    Franciana Di Fátima Cardoso e Carlos Mendes Rosa

    Abundância do deserto: notas sobre obesidade feminina e devastação

    Joana De Vilhena Novaes

    O QUE PODE UM CORPO? Sobre o transsexualismo e a

    identidade de gênero

    Joel Birman

    corpos aprisionados... palavras silenciadas

    Junia de Vilhena

    A PELE QUE ME ENVELOPA: PSICOSSOMÁTICA, CORPO E SENSAÇÃO NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

    Katia Tarouquella Brasil e Francisco Martins

    DO CORPO DISCIPLINADO AO CORPO DA HODIERNIDADE: PISTAS E INDÍCIOS PARA O DEBATE

    Marcelo Henrique da Costa e Giovanna Carneiro

    O CORPO E O MAL-ESTAR NA ADOLESCÊNCIA

    Maria da Glória Sadala

    "Tunisian Blue(s)": Praias, estranheza e familiaridade

    Maria Helena Zamora

    Corpos em riscos e condutas ordálicas: viver ou morrer?

    Nelia Mendes, Monica Vianna, Natalia Iencarelli, Bruna Madureira e Junia de Vilhena

    Trate-me como a página de um livro – corpo, escrita e sexualidade

    Pedro Benjamim Garcia e Tania Dauster

    O corpo e a filosofia

    Pedro Duarte

    Corpo petrificado

    Rosangela Vieira Rocha

    SEXO SEM CAPA: NOTAS ETNOGRÁFICAS SOBRE O CORPO NA EXPERIÊNCIA BAREBACK ENTRE HOMENS

    Vladimir Bezerra e Sonia Maria Giacomini

    SOBRE OS AUTORES

    Como criar para si um corpo pleno de alegria? A ética de uma filosofia menor

    Auterives Maciel Jr.

    INTRODUÇÃO: AS QUESTÕES

    Como criar, com prudência, um plano de consistência do desejo? E como fazer com que esse plano consista na produção de um corpo intenso preenchido por afetos de alegria? Essas são as questões que inauguram a nossa provocação, pois há sempre a possibilidadede traçarmos planos com consistências precárias, preenchidos por intensidades frigoríficas, histéricas, masoquistas e anômalas, que resultam em experiências afetivamente limitadas. Por outro lado, na ética de uma filosofia do desejo, não é possível o traçado de um plano de consistências em a construção de um corpo intenso, isto é, sem a textura de uma matriz que sirva de superfície geofísica por meio da qual flui a libido do experimentador. Nesse caso, existe a possibilidade de efetuação do desejo pela criação de um corpo afetivo pleno de alegria? E em tal desejo não se exige alguma dose empírica de prudência? Ora, é com tal possibilidade que construiremos este estudo, mostrando como o traçado desse plano de consistência vai criar a oportunidade para a definição real de um tipo peculiar de filosofia que deveremos, no devido momento, analisar.

    Mas, antes disso, é preciso perguntar: qual a natureza desse corpo? Trata-se, segundo Deleuze e Guattari (1996 p.10),de um corpo sem órgãos preenchido por afetos resultantes de experimentos que derivam dos contornos anatômicos do organismo. Um corpo produzido pelas relações de movimentos e repouso, velocidades e lentidões entre partículas, que exprimem um grau de potência que será efetuado por afetos que pervertem os destinos do organismo¹. Um corpo inorgânico que prova pela experiência que o destino anatômico fixado pelo organismo é, quando muito, um obstáculo que só existe para ser ultrapassado. Se tomarmos de empréstimo o conceito de libido – tão caro e importante na construção freudiana –, diremos que o corpo sem órgãos é, na verdade, a produção libidinosa de um plano de consistência construído por investimentos intensivos de desejos. Mas como definir um corpo sem órgãos? Qual o sentido exato dessa nomeação? A ideia de corpo sem órgãos Deleuze e Guattari foram buscar em Artaud. Segundo eles,

    [...] no dia 28 de novembro de 1947, Artaud declara guerra aos órgãos: Para acabar com o juízo de Deus, "porque atem-me se quiserem, mas nada há de mais inútil do que um órgão. É uma experimentação não somente radiofônica, mas biológica, atraindo sobre si censura e repressão. Corpus e Socius, política e experimentação. Não deixarão você experimentar em seu canto." (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 10).

    Na realidade, a guerra é declarada contra o organismo e o plano de organização. A existência de um corpo sem órgãos é a possibilidade de um corpo com órgãos libertos das funções anatômicas, órgãos não mais predestinados a uma anatomia orgânica que fixa a sua função a um realismo biológico. Ou seja, no CsO, os órgãos são polivalentes, pois entram em valências temporárias válidas pelos investimentos de libido e pela disposição afetiva da experimentação em curso. Sendo assim,

    Percebemos pouco a pouco que o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seu inimigo não são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo. É verdade que Artaud desenvolve sua luta contra os órgãos, mas, ao mesmo tempo, contra o organismo que ele tem: o corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são inimigos do corpo(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 21).

    O organismo é um estrato que sedimenta o corpo, que faz sobre ele uma organização, subordinando-o ao sistema do juízo de Deus, ou seja, ao sistema teológico, do qual os médicos se aproveitam e retiram o seu poder. O organismo é a imposição de um destino anatômico que sabota a produção intensiva do desejo. Mas um corpo sem órgãos é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado,

    [...] povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam... O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso...Ele é matéria intensa e não formada, a matriz intensiva, a intensidade= 0. Mas nada há de negativo nesse zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. Matéria igual a energia. Produção do real como grandeza intensiva a partir do zero (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 13).

    Por isso Deleuze e Guattari vão tratar o corpo sem órgãos como o plano de consistência anterior à extensão do organismo, à formação dos estratos². Trata-se – como eles nomeiam – do ovo intenso, no qual os órgãos aparecem e funcionam como intensidades puras. Órgãos que transpõem um limiar, mudando de gradiente. Ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos órgãos, antes das formações dos estratos (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 14), ovo intenso que se define por tendências dinâmicas com mutações de energia, movimentos cinemáticos com deslocamentos de grupos (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 14) e mutações de todo tipo. Sendo assim, com os órgãos provisórios de uma matriz intensa, tal corpo será, enfim, nomeado como um ovo tântrico.

    Entretanto ninguém subverte um destino anatômico sem correr o risco de cair em uma experimentação volúvel, às vezes por esvaziamento, outras por monotonia da intensidade produzida, outras, até mesmo, pelo enlouquecimento celular que desagrega a organização produzindo um corpo sem órgãos canceroso. É assim, por exemplo, que Deleuze e Guattari(١٩٩٦)inauguram a série de corpos sem órgãos na apresentação do platô que avaliamos neste capítulo. Há, para eles, um corpo hipocondríaco – cujos órgãos são destruídos, cuja destruição está concluída, mas nada acontece –; há um corpo paranoico – cujos órgãos não cessam

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