Que corpo é este que anda sempre comigo? corpo, imagem e sofrimento psíquico
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Sobre este e-book
Augusto Sampaio
Vice-Reitor Comunitário da PUC-Rio
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Que corpo é este que anda sempre comigo? corpo, imagem e sofrimento psíquico - Joana de Vilhena Novaes
Vilhena
Sumário
CAPÍTULO 1
Trauma: entre o corpo e o psiquismo
Ana Maria de Toledo Piza Rudge
capítulo 2
A POTÊNCIA DO BELO
Auterives Maciel Júnior
capítulo 3
A invenção da noção biológica de corpo e o sofrimento psíquico de mulheres
Barbara Sordi
Ana Cleide Guedes Moreira
capítulo 4
O FENÔMENO DO BODY ART, DO THIGH GAP E DOS SELFIES SEXTOS: EXPOSIÇÃO DO CORPO – EXIBIÇÃO DO EU
Catherine Desprats - Péquignot
capítulo 5
O corpo transformado por uma morte exposta: Gunther Von Hagens e a máquina de fabricar ilusão de ótica
Celine Masson
capítulo 6
No escurinho do cinema: novos corpos e outras imagens
Ieda Tucherman
capítulo 7
A automutilação e a dimensão da alteridade
Isabel Fortes
capítulo 8
Empanturrados de afeto, envergonhados da fome: CORPO, MATERNIDADE E OBESIDADE INFANTIL
Joana V. Novaes
capítulo 9
SOBRE PALAVRAS ENGOLIDAS E CORPOS INFLAMADOS: PENSANDO ALGUMAS NARRATIVAS DO CORPO NA CONTEMPORANEIDADE
Junia de Vilhena | Alessandro Melo Bacchini
Bruna Madureira | Carlos Mendes Rosa
Igor Francês | Monica Vianna
Nélia Mendes | Rebecca Alcici
capítulo 10
Tempos do envelhecer: corpo, memÓria e transitoriedade
Junia de Vilhena
Joana V. Novaes
Carlos Mendes Rosa
capítulo 11
ENTRELAÇAMENTOS PSÍQUICOS E CORPORAIS NA PSICOSSOMÁTICA
Katia Tarouquella Brasil
Francisco Moacir Catunda Martins
capítulo 12
Corpo, Beleza e Angústia
Maria Anita Carneiro Ribeiro
Elisabeth da Rocha Miranda
capítulo 13
NÃO QUISESTE SACRIFÍCIOS NEM OBLAÇÕES. DESTE-ME UM CORPO
Maria Clara Lucchetti Bingemer
capítulo 14
A CONSTRUÇÃO DO CORPO NA ANOREXIA DAS MENINAS
Maria Helena Fernandes
capítulo 15
De Tatuagens, Peles, Corpos e Cores
Maria Helena Zamora
Capítulo 16
Corpo: natureza e expressão
Monah Winograd
capítulo 17
NO VENTRE DA CADEIA: CORPOS POSSÍVEIS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO FEMININO DO RIO DE JANEIRO
Neilza Barreto
Capítulo 18
SOLIDÃO – QUANDO O CORPO ENTRA EM SILÊNCIO: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE IDOSOS COM APOIO DOMICILIÁRIO E INSTITUCIONALIZADO
Ricardo Pocinho | Joao Pedro Gaspar
Pedro Belo | Natalia Leandro
capítulo 19
SABERES, SABORES E PODERES FUNCIONAIS FEMININOS: MIDIATIZAÇÃO, REGRAS E PRAZERES ALIMENTARES NA MATURIDADE
Selma Peleias Felerico Garrini
capítulo 20
CORPO E ANTROLOGIA: UM PONTO DE VISTA
Tania Dauster
SOBRE OS AUTORES
Capítulo 1
Trauma: entre o corpo e o psiquismo
Ana Maria de Toledo Piza Rudge
Um histórico do papel do trauma e do quadro clínico da neurose traumática na psicanálise tem sua pertinência. Sem que se pense que existem sintomas e estruturas clínicas inteiramente inéditos, criados pelas novas condições da contemporaneidade, e que tornariam a psicanálise datada e não mais relevante, não há como duvidar que os acontecimentos de cada época concorrem para a determinação dos quadros psicopatológicos. O próprio histórico proposto já nos revelará como os horrores da Primeira Guerra Mundial ocasionaram uma leva de neuroses traumáticas de guerra, com sintomas bem diversos dos que vinham caracterizando a maioria das neuroses até então, o que veio a impor grandes reformulações à teoria psicanalítica. Porque, como bem observou Lacan, no trabalho que considerou inaugural do seu ensino, deveria renunciar ao trabalho de psicanalista [...] quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época
(Lacan, 1953/1998, p. 322).
Nos dias atuais a atenção à teoria da neurose traumática tem recuperado lugar. Além dos fatores traumáticos sempre presentes, em qualquer tempo ou cultura, surgiram alguns inéditos. A evolução tecnológica nos ameaça com guerras dotadas de alto poder destrutivo, a globalização da criminalidade e do terrorismo apoiado pelas redes se expande (Rouanet, 2004), populações pobres e desvalidas, massacradas pelas guerras e buscando refúgio em lugares mais seguros e, morrendo em suas tentativas de fuga, e os meios de comunicação que nos confrontam com essas desgraças em tempo real, são condições vêm a gerar uma expectativa ansiosa mesmo nos afortunados que escaparam até agora à violência direta. Não há a menor dúvida de que o trauma está a todo o tempo no horizonte do homem.
Na época dos sistemas classificatórios estatísticos, não mais se fala tanto em neurose traumática, mas sim em stress pós-traumático
, transtorno que foi reconhecido pela American Psyquiatric Association em 1980, englobando todos os sintomas que já eram conhecidos como característicos da neurose traumática. Embora sem menção à psicanálise, sua contribuição foi amplamente utilizada na descrição do novo
transtorno.
A palavra trauma
vem do grego, língua na qual significa ferida
, e remete diretamente ao corpo. No primeiro domínio em que o termo trauma foi empregado, na medicina, significa uma lesão no organismo provocada por um estímulo externo. Por analogia, sua significação ampliou-se, e atualmente significa formas de sofrimento e mal-estar provocados por um acontecimento que nos surpreende, e do qual não podemos ser tomados como responsáveis, cuja determinação nos é externa, como ciclones ou terremotos. O sujeito é excluído na experiência do trauma, mas não deixa de experimentar suas consequências e, no campo da psicopatologia, as marcas que são seus resíduos, tanto as corporais quanto as psíquicas, têm sido estudadas desde o século XIX.
O século XIX foi palco de frequentes acidentes férreos, e o problema do tratamento das injúrias resultantes assumiu grandes proporções. Nesses casos, surgiam frequentemente sintomas patológicos dos quais nenhuma causa orgânica era identificada pelos médicos. Esses transtornos foram batizados por Erichsen, em 1866, como railway spine, e mereceram muita atenção. O âmbito em que surgiram foi o da perplexidade provocada pelos que sofreram acidentes de trem, e, embora sem causas orgânicas apresentavam surpreendentes sintomas de deterioração física e psíquica, algumas vezes levando à morte.
Uma questão legal trouxe à baila o interesse e as discussões sobre a natureza desses casos: a necessidade de estabelecer critérios para decidir se as companhias férreas seriam ou não responsáveis legalmente pelos danos sofridos pelos passageiros, quando causas orgânicas não fossem encontradas pelos médicos. Seriam casos de simulação, oriundos do intuito de receber uma compensação financeira, ou uma nova síndrome ainda não conhecida? Os fenômenos físicos, como exaustão, tremores e dor crônica, desencadeados pelo choque do trem, sugeriam origem neurológica. O próprio termo railway spine surgiu a partir da suposição de que o choque mecânico do acidente teria provocado alterações microscópicas na espinha dorsal. Presumia-se que os nervos são estruturas tão delicadas, que nem todos os danos a eles seriam identificáveis.
As teorias da época localizavam no corpo as causas do sofrimento pós-traumático. O novo termo para designar a síndrome consequente a um evento traumático, neurose traumática
, foi concebido por Hermann Oppenheim (1858-1919), abrangendo os sintomas pós-traumáticos concebidos como resultantes de reações físicas ao medo, e provocados por mudanças moleculares
No século XIX começaram a se assentar as bases para uma teoria do trauma psíquico, e o trabalho de Sigmund Freud foi fundamental nessa empresa. No período em que Freud visitou a Salpêtrière, Charcot começava a destacar a importância da histeria traumática
, quadro que se apoiava na ideia de que as neuroses traumáticas seriam casos de histeria. Foi o grande neurologista francês o primeiro a questionar que a histeria fosse exclusivamente feminina. Ao estudar casos do que considerou histeria masculina, Charcot se impressionou com a frequência com que tais sintomas eram desencadeados por traumas, como acidentes de trabalho, brigas ou acidentes. Os sintomas característicos desse quadro, como pesadelos recorrentes que reproduzem a catástrofe, recordações vívidas sensorialmente, distúrbios motores e outros, pareceram a Charcot sintomas histéricos. Os próprios sintomas somáticos (tais como a natureza do ataque, as anestesias, os distúrbios da visão etc.), lhe pareceram indicar que se tratava de casos de histeria. O fato é que, em suas demonstrações, Charcot obtinha, usando a sugestão pós-hipnótica, sintomas idênticos aos da histeria, o que sugeria que paralisias, convulsões e outros sintomas corporais eram influenciáveis por fatores psíquicos, visto que podiam ser produzidos por uma ideia induzida por Charcot
Freud (1894/1975) observa que a posição de considerar as neuroses provenientes de trauma como sendo histéricas encontrou a discordância de autoridades alemãs como Thomsen e do Oppenheim, médicos que trabalhavam no Charité, de Berlim, e que ele havia conhecido pessoalmente. Quanto à sua posição nessa polêmica, Freud considerou, em 1894, a questão ainda não estava madura para uma decisão (Freud, 1894/1975), embora tenha adotado a ideia de uma origem traumática para a histeria e as demais neuroses (Breuer & Freud, 1893). Seguindo o pressuposto de Janet, de que haveria uma cisão da consciência na histeria, considera que a memória do acontecimento traumático, carregado de afeto, foi dissociada da consciência. Para Breuer, isso se deveria a uma tendência à dissociação prévia. Freud se inclinava a pensar que a dissociação ocorria como defesa contra a memória da experiência dolorosa. O resultado seria que o intenso afeto ligado a essa memória dissociada, ficaria incapaz de ab-reação, ou seja, não poderia ser descarregado fosse pela expressão de emoções, fosse pela associação com outras ideias. Ela constituiria assim um corpo estranho no psiquismo, que se manifestaria pelos sintomas histéricos, e que seria tratada pelo método catártico. Por efeito da sugestão hipnótica, o paciente poderia recordar a experiência traumática, e o afeto a ela ligado seria então descarregado por meio do choro, de expressões de raiva ou medo, ou simplesmente pela oportunidade de associação que o relato proporcionava.
Freud, a partir de 1894, já lida com a noção de trauma psíquico, e por alguns anos passa a atribuir a um trauma de sedução sexual a gênese de todas as neuroses. Ao abandonar essa teoria, em 1897, o que passa a primeiro plano em suas elaborações são as fantasias de ordem sexual que se enraízam na infância e no Complexo de Édipo, e a neurose traumática é esquecida por longos anos, em que serão elaborados os conceitos básicos da psicanálise em torno dos conflitos psíquicos, a fantasia, os sintomas neuróticos e as formações do inconsciente.
O tema do trauma foi por muito tempo, e até recentemente, suplantado pelos da fantasia e a sexualidade. Na medida em que a psicanálise acentua a implicação subjetiva nos sintomas neuróticos, haveria certa desconfiança, por parte dos psicanalistas, de que valorizar o trauma esvaziaria a questão da responsabilidade do sujeito (Soller, 2004).
A oposição entre trauma e fantasia de desejo, entretanto, deve ser relativizada, visto que a fantasia não é, para Freud, apenas uma cena que proporciona a realização de desejos inconscientes, mas é tomada também como uma tentativa de embelezar o real naquilo que ele tem de traumático. A articulação entre fantasia e trauma percorre a elaboração teórica da psicanálise desde seus primórdios.
A Primeira Guerra Mundial teve grande impacto na vida dos psicanalistas e na própria estrutura da teoria psicanalítica. Houve, em 1918, o 5º Congresso Internacional de Psicanálise em Budapest a que compareceram, demonstrando inédito interesse pela psicanálise, representantes dos governos alemão, austríaco e húngaro, mobilizados pelos inúmeros casos de neuroses de guerra entre os combatentes. O interesse pelo que a psicanálise teria a dizer sobre as neuroses de guerra deveu-se a que essas neuroses precisavam ser levadas em conta nos cálculos militares, de vez que interferiam no desempenho dos soldados.
Os analistas se voltaram para o estudo das neuroses de guerra, que foram consideradas por Freud como neuroses traumáticas como as outras. Os sintomas da neurose traumática, segundo Freud em 1916, sugerem uma fixação no momento do acidente traumático. Este passará a ser reeditado repetidamente em sonhos, ou na vigília, em ataques histeriformes
, como se a situação do trauma fosse de impossível metabolização. O sintoma central é o reviver quase alucinatório do evento traumático hoje chamado de flashback. Quase porque, apesar de ser uma experiência vívida, e que é acompanhada por angústia intensa, o sujeito sabe que se trata de apenas de uma estranha forma rememoração à sua revelia.
A nova atenção que as neuroses traumáticas passaram a merecer por parte da comunidade psicanalítica ocasionaram a virada teórica efetuada após 1920, que envolveu a introdução do conceito de pulsão de morte na psicanálise. Inaugurou-se uma fase de grandes inovações na teoria psicanalítica ocasionadas pelas questões emergentes. As novas construções conceituais resultaram de uma situação de impasse: Freud confessou não ser possível integrar a fenomenologia da neurose traumática com nossos conhecimentos atuais
(Freud, 1916-1917, 1975, p. 274).
É importante frisar que Freud não a considerou como uma neurose como as outras, ainda que essa tenha sido a posição de muitos pós-freudianos, e que ainda tem adeptos hoje em dia. Muitos autores, dentre os quais Fairbairn, Kardiner e Brenner (apud Rapapport, 1968), defendiam que não haveria uma especificidade da neurose traumática. Essa seria uma neurose como qualquer outra, tendo como sua única particularidade a presença de um fator desencadeante especialmente intenso.
Ignorando a diretriz freudiana de que histeria, histeria de angústia e neurose obsessiva têm sua gênese ligada às pulsões e à sexualidade, enquanto a neurose traumática resulta de acontecimentos externos inesperados e mal vindos, muitos valorizam os conflitos infantis e as fixações em vulnerabilidades que se estabeleceram na infância, também na determinação da neurose traumática. Bettelheim (1943) é um exemplo dessa interpretação. Depois de ter estado preso nos campos de concentração de Buchenwald e Dachau, em 1938-1939, considerou que certos sintomas de que veio a padecer indicariam que seu tratamento psicanalítico havia sido insuficiente. O que parece estar contido nessa crítica é a ideia de que a psicanálise deveria funcionar como um antídoto contra catástrofes e impactos inerentes à natureza e à cultura. Uma panaceia universal, isto é, um remédio contra o inesperado, sempre inquietante!
Em artigo apresentado no 5º Congresso Internacional, Freud já opinara que a etiologia sexual está ausente nas neuroses de guerra, e que estas são desencadeadas por uma situação externa de perigo, enquanto nas neuroses de transferência o perigo provém das próprias pulsões. Reforçando essa oposição, afirma, na Conferência XVIII (Freud, 1916-1917/1975), que, por um lado, há neuroses espontâneas cujo peso da etiologia é atribuído à sexualidade infantil e que a psicanálise vinha estudando desde seus primórdios – histeria, neurose obsessiva e histeria de angústia – e, por outro lado, as neuroses traumáticas. Certamente não se trata de rebaixar o papel da sexualidade no psiquismo, posição a que Freud sempre se recusou, mas de discriminar as causas de ambas as neuroses. O fato de que a neurose traumática se estabeleça por uma violência ao psiquismo e ao corpo não descarta a sexualidade em seu tratamento. O trauma, como o acidente que invade e aniquila as fantasias do sujeito que lhe tornam a vida tolerável, exigem uma reestruturação dessa realidade psíquica, na qual a fantasia é componente fundamental.
A posição freudiana sobre a irredutibilidade entre os dois tipos de neurose é ainda reforçada pelo fato de, em seu último trabalho, Freud reafirmar a diversidade entre neuroses chamadas de transferência e a neurose traumática. Além da posição já defendida de que a etiologia da neurose traumática não é, como a das neuroses espontâneas, ligada à sexualidade infantil, mas a um evento perturbador de ordem externa, Freud vai acrescentar que até aquela data, ou seja, 1939, a neurose traumática não lhe havia demonstrado manter os mesmos laços privilegiados com a infância que as espontâneas entretêm.
Parece que as neuroses são adquiridas somente na tenra infância (até a idade de 6 anos), ainda que seus sintomas possam não aparecer até muito mais tarde. A neurose da infância pode tornar-se manifesta por um curto tempo ou pode mesmo nem ser notada. Em todo caso, a doença neurótica posterior se liga ao prelúdio na infância. É possível que aquelas que são conhecidas como neuroses traumáticas (devido a um susto excessivo ou graves choques somáticos, tais como desastres ferroviários, soterramentos etc.) constituam exceção a isso; suas relações com determinantes na infância até aqui fugiram à investigação (Freud, 1939/1975, p. 184).
A neurose traumática foi o principal móvel da grande reformulação teórica da psicanálise a partir de 1920, com o advento de uma nova teoria pulsional que divide as pulsões entre pulsões sexuais e pulsões de morte. A ideia, fundamental até então, de que o psiquismo é regido pelo princípio do prazer, ou seja, que sempre busca alcançar o prazer e se afastar de situações que causam desprazer, é questionada. Efetivamente, como compatibilizar esses sintomas traumáticos, constituídos pela repetição de situações extremamente dolorosas, tanto em sonhos quanto em recordações quase alucinatórias, com a tendência do psiquismo para buscar o prazer e evitar o desprazer? As neuroses traumáticas impressionaram não apenas pela repetição compulsiva, em sonhos ou rememorações, de fatos muito dolorosos, como também pela tonalidade depressiva do estado de ânimo que as caracteriza, traço que as distingue da histeria, em cujos sintomas a sedução e a sexualidade são marcantes
Neuroses traumáticas passam a entreter importantes relações com os estados depressivos. Na verdade, Freud considerou a neurose de guerra como um conflito narcísico, o que permite aproximá-la da melancolia, que classificou como uma neurose narcísica
(Freud, 1924[1923]/1975),Freud insiste em que as neuroses traumáticas são ocasionadas pelo conflito entre partes do eu. É a mesma situação com a qual Freud virá a caracterizar a melancolia, que diferencia das outras psicoses, visto que nela o conflito se dá entre partes do eu, ou seja, eu e supereu, e não entre o isso e a realidade, como nas outras psicoses (Freud, 1924[1923]/1975, p. 152). Quanto às neuroses traumáticas de guerra, Freud conclui que resultam de conflitos entre o antigo Eu pacífico do soldado e seu novo ego guerreiro
(Freud, 1919/1975, p. 209) exigido pela situação de combate.
Embora a literatura sobre as depressões e perdas refira-se tão pouco ao conceito de trauma (Bose, 1995),não há dúvida de que há laços entre neurose traumática e melancolia. A teorias sobre o luto e a melancolia, processos que são deslanchados por uma perda e que desembocam, respectivamente, no sucesso em finalmente aceitar a perda, no caso do luto, e em seu insucesso, no caso da melancolia, seguramente poderão nos ajudar na compreensão das patologias consequentes a um trauma, já que este também representa uma experiência de perda, um acontecimento na vida de alguém que o priva das referências que costumava tomar como esteio de sua vida, e das ilusões e fantasias que a tornavam suportável.
Como a introdução do supereu nas teorias freudianas foi relativamente tardia (1923), o mestre de Viena chegou a determinar o papel fundamental dessa instância nas melancolias, mas as neuroses traumáticas não foram revisitadas com esse objetivo. Repensá-las à luz da segunda tópica é uma tarefa que ficou para os psicanalistas posteriores, e realmente a literatura atual enfatiza o papel da culpa na neurose traumática.
Trauma e perda
A melancolia ingressou na psicanálise a partir dos trabalhos de Abraham e Freud, e a ordem em que apresento os nomes dos autores se deve a que, nesse tópico específico, Abraham antecipou alguns dos principais achados teóricos que são atribuídos ao fundador da psicanálise, de uma forma que não foi devidamente reconhecida na obra deste. Um exemplo é a própria relação entre luto e melancolia, um achado de tal importância que mereceu constar no título do primeiro trabalho em que Freud (1917) efetivamente se debruça sobre essa questão.
Como comparar a neurose traumática à melancolia, se esta era tomada como uma psicose, a psicose maníaco-depressiva (atualmente, transtorno bipolar) Freud não recusou a ideia de que haja uma contrapartida dos ciclos entre melancolia e mania em estados não psicóticos. Em Psicologia das massas, ele afirma existirem pessoas cujo estado de ânimo oscila entre a depressão intensa e uma alegria e bem estar exaltados, e toma a oscilação entre melancolia e mania como o exemplo mais extremo de um dinamismo que se pode se apresentar em graus muito variáveis, inclusive bastante sutis (Freud, 1921/ 1975, p. 132). A tonalidade depressiva do estado de ânimo dos traumatizados não constitui muitas vezes um quadro melancólico, mas a depressão é uma constante e o suicídio não é incomum.
Ainda há mais um argumento que apoia o projeto de cotejar as patologias traumáticas com a melancolia. Na verdade, a introdução da pulsão de morte na teoria psicanalítica dotou a teoria da melancolia de uma nova dimensão. Distanciando-se de uma categoria nosográfica, a melancolia passou a ser entendida como um elemento estrutural (Hassoun, 2002, pp. 13-14). O supereu também é tributário desse movimento de amplificação dos mecanismos envolvidos na melancolia para o psíquico em geral.
O fracasso no trabalho de luto é sempre acompanhado por um desintrincar das pulsões, e por um incremento na atividade da pulsão de morte, que tem como mediador o supereu (Rudge, 2006). A crueldade melancólica voltada para o Eu ou o objeto e a atração pelo sacrifício têm parentescos com a vocação do homem de se colocar a serviço do mal. Submetido a um supereu que é lugar de uma cultura da pulsão de morte, este pode levar o sujeito à morte, ou promover o compromisso com a destruição.
O luto é um trabalho ao qual estamos todos convocados permanentemente pela vida, e que constitui um dos temas fundamentais da psicanálise, já que perpassa o próprio processo analítico. O traumatismo, como aquele acontecimento ao qual incessantemente retornamos, não será aquele que infringe perdas com as quais o trabalho de luto não consegue arcar?
O sintoma da neurose traumática não faz metáfora
Na teoria psicanalítica sobre as neuroses – histeria, histeria de angústia (fobia) e neurose obsessiva – com as quais a psicanálise esteve comprometida desde o início, os sintomas neuróticos têm, como outras formações do inconsciente, a estrutura de formações de compromisso. Construídos pelo deslocamento e a condensação, segundo Freud, esses sintomas implicam a transferência da pulsão de uma ideia recalcada para outra. Assim, o sintoma permite satisfazer a pulsão, ao mesmo tempo em que essa satisfação, que geraria angústia caso fosse reconhecida, é cifrada. Essa estrutura é a mesma dos sonhos dos atos falhos, e das formações do inconsciente
Essas formações implicam também a transferência de uma pulsão originária da infância para eventos da vida atual. É só pela transferência para objetos ou circunstâncias atuais que as pulsões soterradas pelo recalque têm condições de se manifestar. A transferência para o analista é apenas mais uma instância dessa vocação para a transferência do recalcado que está permanentemente em ação. Não foi por outro motivo que histeria, histeria de angústia (fobia) e neurose obsessiva, objetos principais das pesquisas psicanalíticas iniciais, foram agrupadas sob o rótulo de neuroses de transferência.
Sabemos que ao propor um modelo linguístico para a psicanálise, Lacan, ao invés de deslocamento e condensação, termos do modelo energético freudiano, passou a chamar de metáfora
o processo pelo qual se constroem as formações de compromisso, como os sintomas. O papel da decifração, da interpretação, que acompanhou a história do processo psicanalítico já aponta para o valor metafórico das formações do inconsciente.
É nesse ponto que os sintomas das neuroses traumáticas mais se opõem aos das neuroses espontâneas ou de transferência. O sintoma traumático mais característico - a repetição da experiência traumática em sonhos ou em rememorações não desejadas, mal vindas - não evoca uma operação metafórica, é repetição literal, e não é de índole a se prestar à decifração: Sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas têm a característica de repetidamente trazer o paciente de volta à situação de seu acidente, uma situação da qual ele acorda novamente aterrorizado
(Freud, 1920/1975, p. 13).
Para esse fenômeno, a expressão corpo estranho
incrustado no psiquismo, com que Freud referia-se à memória do acontecimento traumático, em seus primeiros trabalhos, mantem toda sua propriedade, pois figura com felicidade o impacto de longa duração que uma realidade intolerável impõe ao psiquismo, e a repetição literal que caracteriza os sintomas consequentes.
Podemos concluir que um erro em que Freud não incorreu foi o de homogeneizar neuroses espontâneas e traumáticas, como fazem tantos autores que recorrem à avassaladora pressão das pulsões como uma explicação econômica para as neuroses traumáticas, e consideram que o evento traumático foi apenas um fator desencadeante de especial intensidade. Uma consequência indesejável desse ponto de vista é debilitar a potência da psicanálise como instrumento para a crítica da cultura. Assim como as histerias do século XIX permitiram à psicanálise a apreensão e crítica aos malefícios causados pela repressão sexual a que estavam sujeitas as mulheres, as neuroses consequentes às Grandes Guerras evidenciaram o ambiente disfuncional representado pela violência generalizada nos campos de batalha, e, fora deles, no tratamento dos prisioneiros e das populações atingidas.
Por outro lado, há os autores que estudam o trauma, tema interdisciplinar por natureza, seja no campo da literatura, da arte, da história e dos estudos da cultura, com o foco na história e nos eventos catastróficos coletivos que precipitam as patologias traumáticas. Em Caruth (1995), por exemplo, pode-se encontrar a ideia de que a neurose traumática não seria uma patologia ou um sintoma do sujeito, do inconsciente, mas sim um sintoma da história que o sujeito carrega sem poder compreender e introjetar. Seu principal livro "Unclaimed experience – trauma, narrative and history" (1996) desenvolve sua concepção do trauma como uma experiência que não foi reclamada, não foi completamente reconhecida e nem se articula ao conhecimento do qual se dispõe. Assim, a neurose traumática não seria efetivamente uma neurose, mas uma invasão, por imagens ou pensamentos, de um terrível evento do passado que não foi inteiramente experimentado quando ocorreu, e no qual se evita pensar. O flashback representa a reedição traumática tanto da verdade do evento quanto da verdade de sua incompreensibilidade
(Caruth, 1995b, p. 153).
Muito embora os estudos sobre o trauma na área da literatura e estudos culturais sejam de grande valia, o campo em que trabalham é específico e tem funções irredutíveis à abordagem psicanalítica. Para os primeiros o foco é a tentativa de ganhar acesso à história traumática, Além do sofrimento individual, visa à realidade da história que está obscurecida nas repetições sintomáticas, valorizando eticamente o testemunho por seu significado político como instrumento de construção de uma memória contra o esquecimento e de um
trabalho de memória com relação aos traumas sociais
(Seligmann-Silva, 2010, p. 3).
Na psicanálise, o que está em questão é a possibilidade da retificação subjetiva frente ao trauma. Na clínica do um a um trata-se do sujeito, e da significação do evento traumático para aquele psiquismo. Lembremos da expressiva imagem freudiana de que, se a guerra representasse um trauma para todos, não haveria mercenários. O pai da psicanálise esclarece que o trauma é definido como sendo o efeito no sujeito de um acontecimento catastrófico, e não o acontecimento em si.
É importante, portanto, esclarecer que o valor ético do testemunho sobre barbáries e a cura dos sintomas traumáticos por meio da fala e da simbolização não são caminhos equivalentes, embora esse equívoco seja comum. Isso porque o psicanalista não encaminha a conversa para o tema dos sintomas, mas procura respeitar a livre associação do analisando O que a prática clínica nos ensina é que, quanto mais certo sonho ou sintoma é memória invasiva de um trauma, menos ele dará margem a associações, e esse silêncio deve ser respeitado porque resguarda corpos estranhos geradores de intensa angústia. Com o prosseguir do tratamento, um certo caminho, no sentido da simbolização do trauma, pode, por linhas sinuosas, ser trilhado, sempre por iniciativa do analisando e a seu tempo. sem que nos esqueçamos de que há sempre um limite para a simbolização e para a rememoração em todo tratamento.
Se os grandes traumas de massa impulsionaram novas elaborações da psicanálise sobre a neurose traumática, essas elaborações apontaram para a grande vulnerabilidade do homem aos traumas, acontecimentos que desorganizam suas referências afetivas e identificatórias, e que o alienam de sua vida até então. Faz-se necessário ao traumatizado, muitas vezes, intenso esforço para não ser tomado pelo desejo de morrer As perdas envolvem uma quebra com sua vida anterior e com as ilusões e fantasias que anteriormente lhe suavizavam o viver. A reconstrução da realidade psíquica, que é tecida de fatos e de fantasias, e que atenua o impacto do real, é o alvo do trabalho sob transferência.
Referências
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capítulo 2
A POTÊNCIA DO BELO
Auterives Maciel Júnior
O ideal de beleza – que institui o belo como modelo puramente formal – impõe-se no mundo contemporâneo de maneira imperativa aos seres humanos que pretendem alcançar a perfeição moldada da fôrma. Quando, por exemplo, o ser humano se deixa tiranizar por um modelo que define o modo ou a maneira de ser o mais belo, é provável que uma dívida subjetiva nele se configure; sendo determinada na pretensão daquilo que ele deseja ser para atingir o ideal ao qual aderiu com o propósito de ser reconhecido e enaltecido socialmente. Quando isso vem a se consolidar como uma tendência social, cria-se uma tirania da beleza exaltada como um padrão exemplar de normatização de condutas.
Temos aqui a impressão de que estamos retornando, com a nossa suspeita, a ideia de beleza construída, pelos antigos, como coisa em si. Na antiguidade grega, o belo era posto como essência objetiva e apresentado como modelo exemplar condicionante das avaliações das coisas mais ou menos belas segundo os seus graus de semelhança. Por exemplo, para Platão (Platão, 1950, Hipias Maior) o belo em si concebido como ideia é a condição da avaliação das coisas sensíveis que são belas na medida em que imitam, ou melhor, participam – como cópias mais ou menos perfeitas – de alguma qualidade do protótipo original.
Entretanto, embora não se professe na atualidade a existência de um mundo de essências inteligíveis posto como mundo eterno das ideias, o ideal de beleza ostenta, não obstante, a verdade de uma bela forma que irá outorgar ao melhor pretendente o estatuto de ser o mais belo. Por isso, o que retomamos em uma nova escala é a idealização que subjuga todos os humanos, criando modelos de beleza e instituindo o belo como um dever moral travestido de características artísticas.
No mundo contemporâneo, esse ideal é expresso por regras codificadas, viabilizadas por mídias, aparatos tecnológicos, dispositivos cosméticos, cirúrgicos, medicinais, sexuais, que padronizam condutas e impõem deveres. Assim, a assunção de uma dívida pela obrigação de ser mais belo segundo as normas vigentes, coloca em evidencia um sofrimento causado pela negação de um aspecto inevitável da vida: a impossibilidade de afirmar a vida na sua transitoriedade fomenta a ilusão da eternidade da forma como advento de um belo puramente vazio, pretendido como a contrapartida de um desejo que se insurge contra o devir.
Assim, denunciamos a padronização da beleza – também chamada no contemporâneo de moralização do belo – por percebemos, com clareza, que esse movimento de imposição de um ideal é inseparável de uma vontade de negar que se afirma construindo ficções com o intuito de fazer da vida um objeto de julgamento. Entretanto, compreenderemos melhor as condições dessa vontade de negar se elucidarmos, primeiramente, o ponto de vista estético que pretendemos valorizar.
E com isso, devemos perguntar: é possível, contra a tendência que erige a beleza como padrão moral,