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Madame Bovary
Madame Bovary
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E-book486 páginas7 horas

Madame Bovary

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Sobre este e-book

Emma Bovary é uma leitora ávida. Criada no campo e educada em um convento, nutre sonhos ambiciosos, inspirados pela burguesia e romance dos livros. Decidida a buscar novos horizontes, se casa com Charles, um médico interiorano apaixonado pela esposa, mas carecido de ambições. O casal acaba se mudando para outra província, a nova rotina não atinge as expectativas de Emma, tornando-a cada dia mais infeliz e a passividade do marido a entedia. Desejando aventuras requintadas, ela começa a procurar sua satisfação em outras personalidades.
IdiomaPortuguês
EditoraPrincipis
Data de lançamento29 de jul. de 2020
ISBN9786555520842
Madame Bovary
Autor

Gustave Flaubert

Gustave Flaubert (1821–1880) was a French novelist who was best known for exploring realism in his work. Hailing from an upper-class family, Flaubert was exposed to literature at an early age. He received a formal education at Lycée Pierre-Corneille, before venturing to Paris to study law. A serious illness forced him to change his career path, reigniting his passion for writing. He completed his first novella, November, in 1842, launching a decade-spanning career. His most notable work, Madame Bovary was published in 1856 and is considered a literary masterpiece.

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    Madame Bovary - Gustave Flaubert

    Esta é uma publicação Principis, selo exclusivo da Ciranda Cultural

    © 2020 Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

    Traduzido do original em francês

    Madame Bovary

    Texto

    Gustave Flaubert

    Tradução

    Frank de Oliveira

    Preparação

    Beluga Editorial

    Revisão

    Sueli Gutierrez Angles

    Produção e projeto gráfico

    Ciranda Cultural

    Ebook

    Jarbas C. Cerino

    Imagens

    Cattallina/Shutterstock.com; Croisy/Shutterstock.com

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    F587m Flaubert, Gustave, 1821-1880

    Madame Bovary [recurso eletrônico] / Gustave Flaubert ; traduzido por Frank de Oliveira. - Jandira, SP : Principis, 2020.

    368 p. ; ePUB ; 1,6 MB. – (Literatura Clássica Mundial)

    Tradução de: Madame Bovary

    Inclui índice. ISBN: 978-65-5552-084-2 (Ebook)

    1. Literatura francesa. 2. Romance. I. Oliveira, Frank de. II. Título. III. Série.

    Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Literatura brasileira : Poesia 869.1

    2. Literatura brasileira : Poesia 821.134.3(81)-1

    1a edição em 2020

    www.cirandacultural.com.br

    Todos os direitos reservados.

    Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta daquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.

    Capítulo 1

    Estávamos na sala de aula, quando o diretor entrou, seguido de um novato vestido de burguês e de um servente que carregava uma carteira grande. Os que estavam dormindo acordaram e cada um se levantou como se tivesse sido surpreendido em sua atividade.

    O diretor fez sinal para que nos sentássemos; depois, voltando-se para o professor:

    – Senhor Roger – disse ele em voz baixa –, aqui está um aluno que lhe recomendo, ele entra no quinto ano. Se seu trabalho e sua conduta forem merecedores, passará para os grandes, para onde sua idade o destina.

    Parado no canto, atrás da porta, de modo que mal se podia percebê-lo, o novato era um tipo do interior, com cerca de quinze anos e mais alto que qualquer um de nós. Tinha o cabelo cortado rente na testa, como um integrante de um coral de vilarejo, com jeito comportado e bastante envergonhado. Embora seus ombros não fossem largos, o casaco de tecido verde com botões pretos devia incomodá-lo na cava das mangas e deixava entrever, pela fenda destas, pulsos vermelhos habituados a ficarem nus. Suas pernas, em meias azuis, saíam de uma calça amarelada excessivamente puxada pelos suspensórios. Ele usava sapatos resistentes, reforçados com pregos.

    A recitação das lições começou. Ele as ouviu totalmente concentrado, atento como se fora um sermão, nem mesmo ousando cruzar as pernas, nem se apoiar no cotovelo e, às duas horas, quando o sinal tocou, o professor foi obrigado a avisá-lo, para que pudesse se juntar a nós nas filas.

    Tínhamos o costume de, ao entrar na sala de aula, jogar nossos bonés no chão, a fim de em seguida ficarmos com as mãos mais livres; era necessário, do umbral da porta, lançá-los embaixo do banco, de modo a baterem contra a parede, fazendo muita poeira. Essa era a graça.

    Mas, seja porque não tivesse notado essa manobra ou porque não ousasse se submeter a ela, a oração terminou e ele ainda mantinha o boné sobre os joelhos. Era um daqueles barretes compostos, em que encontramos os elementos da barretina de pele, da chapska, do chapéu arredondado, do barrete de lontra e do gorro de algodão, uma daquelas pobres coisas, enfim, cuja feiura silenciosa apresenta tanta profundidade de expressão quanto o rosto de um tolo. Ovoide e armado com barbatanas, ele começava com três rolos circulares; depois se alternavam, separados por uma faixa vermelha, losangos de veludo e de pelos de coelho; vinha então uma espécie de saco que terminava em um polígono cartonado, coberto com intricados bordados de sutache, e do qual, no final de um cordão longo e muito fino, pendia uma pequena cruz de fios de ouro, como se fosse um pompom. Ele era novo; a viseira brilhava.

    – Levante-se – disse o professor.

    Ele se levantou; o boné caiu. Toda a turma começou a rir.

    Ele se inclinou para pegá-lo. Um aluno próximo derrubou o boné de novo com uma cotovelada, ele o apanhou novamente.

    – Livre-se do seu boné – disse o professor, que era um homem com certo humor.

    Houve uma gargalhada dos alunos, o que deixou o pobre garoto perturbado, de modo que ele não sabia se devia ficar com o boné na mão, jogá-lo no chão ou colocá-lo na cabeça. Ele sentou-se e o colocou sobre os joelhos.

    – Levante-se – disse o professor – e me diga seu nome.

    O novato articulou, com uma voz gaguejante, um nome ininteligível.

    – Repita!

    O mesmo murmúrio de sílabas se fez ouvir, encoberto pelos apupos da classe.

    – Mais alto! – gritou o mestre. – Mais alto!

    O novato, tomando então uma resolução extrema, abriu a boca de forma desproporcional e lançou a plenos pulmões, como se quisesse chamar alguém, esta palavra: Charbovari. Uma algazarra surgiu a um só tempo, e foi aumentando, com rajadas altas de voz (gritava-se, latia-se, pés eram batidos no chão, repetia-se: Charbovari! Charbovari!), até arrefecer-se em notas isoladas, acalmando-se com grande dificuldade, e às vezes recomeçando repentinamente numa fileira de bancos onde ainda surgiam aqui e ali, como fogos de artifício extintos, algumas risadas abafadas.

    No entanto, sob a chuva dos castigos, a ordem gradualmente se restabeleceu na sala de aula, e o professor, após ter conseguido apreender o nome de Charles Bovary, depois de fazer com que ele fosse ditado, soletrado e relido, mandou imediatamente que o pobre diabo fosse se sentar no banco do castigo, junto a sua cátedra. Ele se colocou em movimento, mas, antes de avançar, hesitou.

    – O que está procurando? – perguntou o professor.

    – Meu bo… – disse o novato timidamente, lançando olhares preocupados ao redor.

    – Quinhentos versos para toda a classe! – A frase, dita com voz furiosa, estancou, como um Quos ego, uma nova rajada. – Fiquem calmos, portanto! – continuou o professor indignado, limpando a testa com o lenço que acabara de tirar do gorro. – Quanto a você, novato, vai me copiar vinte vezes o verbo ridiculus sum. – Então, com voz mais suave: – Ah, você vai achar seu boné; ele não lhe foi roubado!

    Tudo ficou calmo novamente. As cabeças se debruçaram sobre os cadernos e o novato permaneceu por duas horas numa postura exemplar, embora houvesse, de tempos em tempos, alguma bolinha de papel jogada de um bico de pena que vinha sujar-lhe o rosto. Mas ele se limpava com a mão e permanecia imóvel, com os olhos baixos.

    À noite, na sala de estudo, ele puxou as pontas da carteira, colocou seu material em ordem, riscou cuidadosamente as linhas no papel.

    Nós o vimos trabalhando de forma consciente, pesquisando todas as palavras do dicionário e esforçando-se bastante. Graças, sem dúvida, a essa boa vontade que demonstrou, ele não teve de descer para a classe inferior; pois, embora conhecesse razoavelmente as regras, suas construções não eram nada elegantes. Fora o padre de seu vilarejo que começara a lhe ensinar o latim, já que seus pais, por economia, demoraram o máximo possível para mandá-lo para o colégio.

    O pai, Charles-Denis-Bartholomé Bovary, ex-cirurgião-chefe adjunto, engajado, por volta de 1812, em assuntos de alistamento, e forçado, por essa época, a deixar o serviço, havia então usufruído de suas vantagens pessoais para, de passagem, colocar a mão em um dote de sessenta mil francos, oferecido por meio da filha do dono de uma malharia que se apaixonara por ele. Bonito, bem falante, fazendo barulho com as suas esporas, exibindo suíças que iam até os bigodes, os dedos sempre guarnecidos de anéis e vestido com cores vistosas, ele possuía a aparência de um homem corajoso, com a vivacidade fácil de um caixeiro-viajante. Uma vez casado, viveu dois ou três anos com a fortuna da esposa, jantando bem, acordando tarde, fumando em grandes cachimbos de porcelana, só voltando para casa à noite, após o espetáculo, e frequentando os cafés. O sogro morreu e deixou pouca coisa; ele ficou indignado com isso, lançou-se na fábrica, perdeu ali algum dinheiro e depois se retirou para o interior, onde desejou se firmar. Mas, como entendia menos de agricultura que de chitas, como montava os cavalos em vez de colocá-los para arar, como bebia sua sidra em garrafas em vez de vendê-la em barris, como comia as melhores aves do seu quintal e engraxava os sapatos de caça com a gordura dos porcos, ele não demorou a perceber que era melhor deixar lá toda especulação.

    Por duzentos francos por ano, encontrou um lugar para alugar em um vilarejo, nos confins da região de Caux e da Picardia, uma mistura de fazenda e casa-grande; e, triste, consumido pelo arrependimento, acusando os céus, com ciúmes de todos, ele se fechou aos quarenta e cinco anos, desgostoso dos homens, dizia, e determinado a viver em paz.

    Sua esposa outrora tinha sido louca por ele; o amara com mil servilismos que o haviam afastado ainda mais dela. Antes alegre, expansiva e amorosa, ela foi, à medida que envelhecia, se tornando (à maneira do vinho velho que se transforma em vinagre) de um humor difícil, lamurienta, nervosa. Sofrera muito, sem se queixar, a princípio, quando o via correr atrás de todas as meretrizes do vilarejo e quando vinte lugares de má fama o devolviam a ela à noite, exaurido e cheirando a bebida! Então, o orgulho se revoltou. Ela se calou, engolindo a raiva num estoicismo mudo, que manteve até a morte. Estava o tempo todo envolvida em compromissos, em negócios. Ia aos advogados, ao presidente do tribunal, lembrava-se do vencimento das promissórias, obtinha protelações; e, em casa, passava, costurava, lavava, vigiava os trabalhadores, pagava os ordenados, enquanto, sem se preocupar com nada, o marido se mantinha continuamente entorpecido numa sonolência emburrada da qual só acordava para lhe dizer palavras depreciativas e ficar fumando junto ao fogo, cuspindo nas cinzas.

    Quando ela teve um filho, precisou deixá-lo com uma ama de leite. Ao voltar para casa, o garoto foi mimado como um príncipe. A mãe o alimentava com doces; o pai o deixava correr sem sapatos e, para dar uma de filósofo, até dizia que ele podia muito bem ficar nu, como as crias dos animais. Em oposição às tendências maternas, ele tinha em mente um certo ideal viril da infância, com base no qual tentava formar o filho, querendo que fosse educado severamente, à moda espartana, para que tivesse uma boa constituição. Mandava-o para a cama desprovida de aquecimento, ensinava-o a beber grandes goles de rum e a dirigir insultos às procissões. Mas, de natureza pacífica, o pequeno respondia mal a seus esforços. A mãe sempre o arrastava com ela; recortava-lhe cartolinas, contava-lhe histórias, mantinha com ele monólogos intermináveis, cheios de alegrias melancólicas e de tagarelices pueris. No isolamento de sua vida, ela incutiu no filho todas as suas vaidades dispersas, partidas. Sonhava com altas posições, já o enxergava grande, bonito, espirituoso, estabelecido como engenheiro ou magistrado. Ensinou-o a ler, e até, em um piano antigo que tinha, a cantar duas ou três pequenas romanças. Mas o senhor Bovary, não muito voltado para as letras, dizia que tudo aquilo não valia a pena! Eles teriam o suficiente para mantê-lo nas escolas do governo, comprar-lhe um cargo ou um negócio. Além disso, com audácia, um homem sempre conquista o mundo. A senhora Bovary mordia os lábios e a criança vagava pelo vilarejo.

    Ele seguia os lavradores e atirava torrões de terra nos corvos, que então voavam. Comia amoras ao longo das valas, guardava os perus com uma vara, secava o feno na colheita, corria pelos bosques, brincava de amarelinha sob o pórtico da igreja em dias de chuva e, nas grandes festas, suplicava ao bedel que o deixasse tocar os sinos, para se pendurar totalmente na grande corda e se sentir levado por ela em seu voo.

    Cresceu então como um carvalho. Adquiriu mãos fortes, de co­res bonitas.

    Aos doze anos, a mãe conseguiu que começasse os estudos. O padre foi encarregado disso, mas as lições eram tão curtas e tão esporádicas que não podiam ajudar muito. Era nos momentos vagos que elas aconteciam, na sacristia, de pé, às pressas, entre um batismo e um enterro; ou então o padre mandava chamar seu aluno depois da hora do Ângelus, quando não mais podia sair. Eles iam para seu quarto, se instalavam ali: os mosquitos e as mariposas volteavam em torno da vela. Fazia calor, a criança adormecia; e o velho, cochilando com as mãos na barriga, rapidamente não demorava para roncar, de boca aberta. Outras vezes, quando o cura, voltando de levar o viático para algum doente dos arredores, percebia Charles a fazer travessuras pelo campo, o chamava, passava-lhe um sermão de quinze minutos e aproveitava a ocasião para fazê-lo conjugar seu verbo ao pé de uma árvore. Eram interrompidos pela chuva ou por um conhecido que passava. Afora isso, estava sempre satisfeito com ele, chegando mesmo a dizer que o jovem possuía ótima memória.

    Charles não podia continuar ali. A senhora foi enérgica. Envergonhado, ou melhor, cansado, o homem cedeu sem resistência, e esperou-se ainda um ano para que o menino tivesse feito a primeira comunhão.

    Seis meses se passaram ainda; e, no ano seguinte, Charles foi finalmente enviado para o colégio de Rouen, para onde o próprio pai o levou, no final de outubro, na época da feira de Saint-Romain.

    Seria agora impossível para qualquer um de nós não se lembrar de algo sobre ele. Era um menino de temperamento moderado, que brincava no recreio e dedicava-se ao estudo, ouvindo na aula, dormindo bem no dormitório, comendo bem no refeitório. Ele mantinha contato com um comerciante atacadista de ferragens na Rua Ganterie, que o levava para sair uma vez por mês, no domingo, depois que sua loja era fechada, o conduzia ao porto para observar os barcos e o trazia de volta ao colégio em torno das sete horas, antes do jantar. Toda quinta-feira à noite, ele escrevia uma longa carta para a mãe, com tinta vermelha, e selava-a com três obreias; depois, repassava os livros de história ou então lia um antigo volume de Anacársis que se encontrava na sala de estudos. Quando passeava, conversava com o criado, que também era do interior como ele.

    Por força de se aplicar, ele sempre se mantinha no meio da classe; uma vez, chegou a ganhar um primeiro certificado de mérito em história natural. Mas, ao fim de seu terceiro ano, os pais o tiraram do colégio para fazê-lo estudar medicina, acreditando que ele poderia se preparar sozinho para prestar o exame final.

    A mãe escolheu um dormitório para ele, no quarto andar, no

    Eau-de-Robec, na casa de um tintureiro conhecido seu: concluiu os preparativos para sua pensão, adquiriu móveis, uma mesa e duas cadeiras, fez que trouxessem de sua casa uma velha cama de cerejeira e comprou um pequeno fogão de ferro fundido, com o suprimento de lenha para aquecer o pobre filho. Então, foi embora no final da semana, depois de mil recomendações para que ele se comportasse bem, agora que ficaria abandonado à própria sorte.

    O programa das aulas, que ele leu no cartaz, o deixou aturdido: aulas de anatomia, aulas de patologia, aulas de fisiologia, aulas de farmácia, aulas de química, e de botânica, e de clínica, e de terapêutica, para não mencionar a higiene ou a matéria médica, todos nomes cuja etimologia ele não conhecia e que eram como tantas portas de santuários cheios de augustas trevas.

    Ele não entendeu nada; por mais que escutasse, nada captava. No entanto, se aplicava, tinha as folhas reunidas em cadernos, participava de todas as aulas; não perdia uma única consulta. Fazia sua pequena tarefa diária como o cavalo de circo que gira em torno de si mesmo com os olhos vendados, sem saber do trabalho que está realizando.

    Para poupar as despesas, a mãe lhe enviava toda semana, pelo mensageiro, um pedaço de vitela assada no forno, que ele comia como café da manhã, quando voltava do hospital, enquanto batia a sola dos sapatos contra a parede. Então, precisava correr para as aulas, no anfiteatro, no asilo, e voltar para casa, atravessando toda a cidade. À noite, depois do magro jantar do proprietário, ele voltava para o quarto e se punha de novo a trabalhar, com as roupas molhadas que fumegavam sobre seu corpo, diante do aquecedor em brasa.

    Nas belas noites de verão; no momento em que as ruas mornas estão vazias, quando as criadas jogam peteca na soleira das portas, ele abria a janela e se firmava nos cotovelos. O rio, que faz desse bairro de Rouen uma pequena Veneza ignóbil, corria embaixo, amarelo, violeta ou azul, entre suas pontes e grades. Trabalhadores, agachados na margem, lavavam os braços na água. Em varas que emergiam do alto dos celeiros, novelos de algodão secavam no ar. Em frente, além dos telhados, o grande céu claro se estendia, com o sol vermelho se pondo. Como o tempo devia estar bom por ali! Que frescor sob a floresta de faias! E ele abria as narinas para aspirar os bons odores do campo, que não chegavam até ele.

    Ele emagreceu, seu porte se alongou e seu rosto assumiu uma espécie de expressão dolente que o tornou quase interessante.

    Naturalmente, por desleixo, ele acabou por abandonar todas as resoluções que havia tomado. Uma vez, faltou ao acompanhamento da consulta, no dia seguinte à aula, e, curtindo a preguiça, aos poucos deixou de comparecer.

    Habituou-se a ir ao cabaré, com a paixão pelo dominó. Fechar-

    -se todas as noites em um sujo aposento público, para bater sobre mesas de mármore pequenos ossos de ovelha marcados com pontos pretos parecia-lhe um ato precioso de sua liberdade, que elevava sua autoestima. Era como uma iniciação ao mundo, o acesso a prazeres proibidos; e, quando entrava, colocava a mão no puxador da porta com uma alegria quase sensual. Então muitas coisas nele reprimidas vieram à tona; ele memorizou versos que cantava como boas-vindas, ficou entusiasmado com Béranger, aprendeu a fazer ponche e finalmente conheceu o amor.

    Graças a esses trabalhos preparatórios, falhou completamente em seu exame para oficial de saúde. Ele era esperado em casa naquela noite para comemorar seu sucesso.

    Foi embora a pé e parou na entrada do vilarejo, onde mandou chamar a mãe e lhe contou tudo. Ela o desculpou, atribuindo o fracasso à injustiça dos examinadores, e lhe deu um pouco de apoio, e depressa encarregou-se de arranjar as coisas. Apenas cinco anos depois, o senhor Bovary ficou sabendo da verdade; ela estava velha, ele aceitou, sem imaginar aliás que um homem descendente dele fosse um tolo.

    Charles voltou então ao trabalho e se dedicou sem cessar às matérias de seu exame, dos quais aprendeu de antemão todas as perguntas de cor. Obteve uma nota suficientemente boa. Que dia lindo para sua mãe! Um grande jantar foi organizado.

    Onde ele iria praticar seu ofício? Em Tostes, onde havia apenas um velho médico lá. Já há muito tempo, a senhora Bovary esperava a morte dele, e o infeliz ainda nem havia falecido quando Charles se instalou em frente, como seu sucessor.

    Mas não bastava ter criado o filho, tê-lo feito aprender medicina e ter descoberto Tostes para exercer a profissão: ele precisava de uma mulher. Ela achou uma: a viúva de um funcionário da justiça de Dieppe, que tinha 45 anos e mil e duzentas libras de renda.

    Embora ela fosse feia, seca como uma vara e com o rosto cheio de borbulhas, com certeza não faltavam à senhora Dubuc bons partidos para escolher. Para alcançar seus objetivos, a mãe Bovary foi obrigada a eliminar todos eles, e muito espertamente frustrou as intrigas de um fabricante de salsichas que era apoiado pelos padres.

    Charles vira no casamento o advento de uma condição melhor, imaginando que seria mais livre e que poderia dispor de sua pessoa e de seu dinheiro. Mas era sua mulher quem mandava; diante do mundo ele precisava dizer isso, não falar aquilo, jejuar todas as sextas-feiras, vestir-se como ela queria, perseguir por ordem dela os clientes que não pagavam. Ela abria suas cartas, vigiava seus passos e ouvia suas consultas através da divisória, quando as pacientes eram mulheres.

    Ela precisava do seu chocolate todas as manhãs, assim como de atenções sem fim. Queixava-se constantemente dos nervos, do peito e dos humores. O som de passos a incomodava; quando as pessoas a deixavam, a solidão se tornava odiosa para ela; quando se aproximavam dela, era para vê-la morrer, sem dúvida. À noite, quando Charles chegava em casa, ela tirava de baixo dos lençóis os braços longos e finos, envolvia-lhe o pescoço e, depois de fazê-lo sentar na beira da cama, começava a conversar com ele sobre seus dramas: que ele a esquecia, que amava outra! Bem que haviam dito a ela que seria infeliz; e ela acabava lhe pedindo algum xarope para sua saúde e um pouco mais de amor.

    Capítulo 2

    Uma noite, por volta das onze horas, foram despertados pelo som de um cavalo que parou bem na porta. A empregada abriu o postigo do sótão e conversou por algum tempo com um homem que estava embaixo, na rua. Ele vinha buscar o médico; trazia uma carta. Nastasie desceu os degraus, tremendo de frio, e foi abrir a fechadura e os ferrolhos, um após o outro. O homem deixou o cavalo e, seguindo a criada, entrou imediatamente atrás dela. Ele tirou de dentro da boina de lã com borlas cinzentas uma carta embrulhada em um pano velho e a entregou delicadamente a Charles, que se apoiou no travesseiro para lê-la. Nastasie, perto da cama, segurava a lamparina. A senhora, por pudor, permanecia virada para a ruazinha, de costas.

    A carta, selada com um pequeno carimbo de cera azul, implorava ao senhor Bovary que fosse imediatamente à fazenda dos Bertaux, para tratar de uma perna quebrada. Ora, existem, de Tostes a Bertaux, seis boas léguas de travessia, passando por Longueville e Saint-Victor. A noite estava negra. A senhora Bovary temia que o marido sofresse um acidente. Por isso, foi decidido que o cavalariço iria adiante. Charles partiria três horas depois, ao nascer da lua. Um garoto seria enviado ao seu encontro a fim de mostrar-lhe o caminho para a fazenda e abrir as porteiras para ele.

    Por volta das quatro horas da manhã, Charles, bem embrulhado em sua capa, se pôs a caminho rumo à casa dos Bertaux. Ainda adormecido pelo calor do sono, deixou-se embalar pelo trote pacífico de seu animal. Quando este parava por si mesmo diante daqueles buracos cercados por espinhos que se costuma cavar na beira dos campos cultivados, Charles, acordando sobressaltado, lembrava-se rapidamente de sua perna quebrada e tentava repassar de memória todas as fraturas que conhecia. A chuva não caía mais; o dia começava a raiar e, nos galhos das macieiras sem folhas, os pássaros se mantinham imóveis, eriçando suas pequenas penas ao vento frio da manhã. A paisagem plana se estendia a perder de vista, e os amontoados de árvores ao redor das fazendas desenhavam, a longos intervalos, manchas de um violeta-preto naquela grande superfície cinzenta, que se perdia no horizonte no tom morno do céu. Charles, de tempos em tempos, abria os olhos; então, com sua mente ficando cansada e o sono voltando logo, ele entrava em uma espécie de entorpecimento em que, com suas recentes sensações se misturando a memórias, ele se via em dobro, ao mesmo tempo estudante e homem casado, deitado em sua cama como havia pouco, atravessando uma sala de cirurgia como outrora. O cheiro quente dos cataplasmas se misturava em sua cabeça com o odor verde do orvalho; ele ouvia rolar no varão os anéis de ferro das camas e sua esposa a dormir… Ao passar por Vassonville, viu, na beira de uma vala, um menino sentado na grama.

    – O senhor é o médico? – perguntou a criança.

    E, com a resposta de Charles, pegou os tamancos nas mãos e correu à frente dele.

    O oficial de saúde, ao percorrer o caminho, entendeu pela conversa de seu guia que o velho Rouault devia ser um agricultor dos mais abastados. Ele havia quebrado a perna na noite anterior, voltando da festa dos Reis Magos, na casa de um vizinho. Sua esposa morrera havia dois anos. Vivia apenas com a filha, que o ajudava a manter a casa.

    Os sulcos na terra se tornaram mais profundos. Eles já se aproximavam da casa dos Bertaux. O menino, deslizando por um buraco da cerca viva, desapareceu, para depois voltar no fundo de um pátio, a fim de abrir a porteira. O cavalo escorregava na grama molhada; Charles se inclinava para passar por baixo dos galhos. Os cães de guarda no canil latiam puxando sua corrente. Quando ele entrou na propriedade dos Bertaux, o cavalo se assustou e empinou-se.

    Era uma fazenda de boa aparência. Nos estábulos, pela parte aberta por cima das portas, viam-se grandes cavalos destinados ao arado, que comiam tranquilamente em cochos novos. Ao longo dos prédios,

    estendia-se uma grande estrumeira, cujo vapor subia, e, entre galinhas e perus, ciscavam aqui e ali cinco ou seis pavões, um luxo dos galinheiros da região de Caux. O curral era extenso, o celeiro, alto, com paredes lisas como a mão. Havia no barracão duas carroças grandes e quatro arados, com seus chicotes, seus cabrestos, seus equipamentos completos, entre os quais pelegos de lã azul, que ficavam sujos com a poeira fina que caía dos celeiros. O pátio encontrava-se numa subida; era coberto de árvores espaçadas simetricamente, e o barulho alegre de um bando de gansos ressoava perto da lagoa.

    Uma jovem, com um vestido azul de merino enfeitado com três babados, foi até a soleira da casa para receber o senhor Bovary, a quem fez entrar na cozinha, onde um grande fogo estava aceso. O café da manhã das pessoas borbulhava em volta, em pequenos potes de tamanho desigual. Roupas úmidas secavam no interior da lareira. A pá, as pinças e o bico do fole, todos de proporções colossais, brilhavam como aço polido, enquanto ao longo das paredes estendia-se uma abundante bateria de cozinha, em que se refletia desigualmente a chama clara da lareira, unida aos primeiros raios do sol que chegavam pelas vidraças.

    Charles subiu ao primeiro andar para ver o doente. Encontrou-o em sua cama, suando sob os cobertores e tendo jogado bem longe a touca de algodão. Era um homenzinho gordo de cinquenta anos, de pele branca, olhos azuis, careca na parte da frente da cabeça e que usava brincos. Conservava ao seu lado, em uma cadeira, uma grande garrafa de aguardente, da qual se servia de quando em quando para se armar de coragem, mas assim que viu o médico, seu ânimo desapareceu e, em vez de blasfemar como havia feito por doze horas, começou a gemer fracamente.

    A fratura era simples, sem complicações de nenhuma espécie. Charles não ousaria desejar algo mais fácil. Então, lembrando-se dos modos de seus professores junto à cama dos feridos, confortou o paciente com todo tipo de boas palavras; carícias cirúrgicas que são como o óleo com o qual se lubrificam os bisturis. Para usar como talas, pegaram um lote de ripas na cocheira, debaixo das carroças. Charles escolheu uma, cortou-a em pedaços e poliu-a com um caco de vidro, enquanto a criada rasgava lençóis para fazer tiras e a senhorita Emma se ocupava em costurar almofadas. Como ela gastou muito tempo para encontrar seu estojo, o pai ficou impaciente; ela nada respondeu; mas, enquanto costurava, espetou os dedos, os quais levou em seguida à boca para chupá-los.

    Charles ficou surpreso com a brancura de suas unhas. Elas eram brilhantes, finas na ponta, mais limpas que os marfins de Dieppe e cortadas em forma de amêndoa. A mão, no entanto, não era bonita, talvez um pouco pálida e seca nas falanges; também era muito longa e sem flexões suaves de linhas nos contornos. O que ela tinha de bonito eram os olhos; embora fossem castanhos, pareciam negros por causa dos cílios, e seu olhar chegava às pessoas de maneira franca com uma cândida ousadia.

    Feito o curativo, o médico foi convidado pelo senhor Rouault a comer algo antes de sair.

    Charles desceu para a sala, no térreo. A mesa para duas pessoas, com baixelas de prata, havia sido posta em uma mesinha, aos pés de um grande baldaquim revestido de um tecido de chita com personagens que representavam turcos. Havia um cheiro de íris e de lençóis úmidos, que escapava do alto armário de carvalho em frente à janela. Nos cantos do chão, estavam dispostos sacos de trigo. Era o excedente do celeiro, ao qual se tinha acesso por três degraus de pedra. Para decorar o aposento havia, pendurada em um prego, no meio da parede cuja tinta verde estava descascando devido ao salitre, uma cabeça de Minerva feita com lápis preto, em uma moldura dourada, e havia embaixo, escrito em letras góticas: Ao meu querido papai.

    A princípio, falou-se do paciente, depois do tempo que estava fazendo, do frio intenso, dos lobos que corriam pelos campos à noite.

    A senhorita Rouault não se divertia muito no interior, sobretudo agora que estava encarregada de cuidar quase sozinha da fazenda. Como o quarto estava fresco, ela tremia de frio enquanto comia, o que expunha um pouco seus lábios carnudos, que tinha o costume de mordiscar em seus momentos de silêncio.

    Seu pescoço emergia de um colarinho branco, virado. Os cabelos, cujos dois bandos negros se mostravam tão lisos que pareciam formados de uma única faixa, eram repartidos no meio da cabeça por uma linha fina, que afundava ligeiramente de acordo com a curva do crânio; e, mal deixando ver a ponta das orelhas, iam se confundir por trás em um coque abundante, com um movimento de ondulação em direção às têmporas, que o médico do interior notou pela primeira vez na vida. Suas maçãs do rosto eram rosadas. Ela usava, como um homem, passado entre dois botões de seu corpete, um lornhão de tartaruga.

    Quando Charles, depois de ter subido para se despedir do velho Rouault, entrou na sala antes de partir, encontrou-a em pé, a testa contra a janela, olhando para o jardim, onde as estacas dos pés de feijão haviam sido derrubadas pelo vento. Ela se virou.

    – Está procurando algo? – perguntou.

    – Meu chicote, por favor – respondeu.

    E ele começou a procurar na cama, atrás das portas, debaixo das cadeiras; havia caído no chão, entre os sacos e a parede. A senhorita Emma o percebeu; ela se inclinou sobre os sacos de trigo. Charles, querendo ser cavalheiro, correu para a frente e, como também estendeu o braço no mesmo movimento, sentiu o peito roçar as costas da moça, curvada sob ele. Ela se endireitou ruborizada e olhou para ele por cima do ombro, estendendo-lhe em sua direção o nervo de boi.

    Em vez de retornar aos Bertaux três dias depois, como prometera, voltou já no dia seguinte, depois duas vezes por semana regularmente, sem contar as visitas inesperadas que fazia de tempos em tempos, como que por acaso.

    Afora isso, tudo correu bem; a cura se deu de acordo com as regras e quando, ao cabo de quarenta e seis dias, o velho Rouault passou a fazer tentativas de andar sozinho pela casa, as pessoas começaram a enxergar o senhor Bovary como um homem de grande capacidade. O velho Rouault dizia que não teria sido mais bem tratado pelos principais médicos de Yvetot ou mesmo de Rouen.

    Quanto a Charles, não buscou indagar a si mesmo por que ia com tanto prazer à propriedade dos Bertaux. Se tivesse pensado nisso teria sem dúvida atribuído seu zelo à gravidade do caso, ou talvez aos ganhos que esperava obter com ele. Seria por isso, no entanto, que suas visitas à fazenda constituíam, entre as pobres ocupações de sua vida, uma exceção encantadora? Naqueles dias, ele se levantava cedo, partia a galope, instigando o animal, depois descia para limpar os pés na grama e calçava as luvas pretas antes de entrar. Gostava de se ver chegando ao pátio, sentindo contra o ombro a porteira que girava e o galo que cantava sobre o muro, os meninos que vinham encontrá-lo. Ele amava o celeiro e os estábulos; amava o velho Rouault, que, chamando-o de seu salvador, batia-lhe na mão; amava os tamancos da senhorita Emma sobre as lajes lavadas da cozinha; os saltos altos a deixavam um pouco maior e, quando ela caminhava à frente dele, as solas de madeira, subindo rapidamente, batiam com um ruído seco contra o couro da botina.

    Ela sempre o levava ao primeiro degrau da escada. Ficava ali até que seu cavalo fosse trazido. Feita a despedida, não se falava mais; o ar livre

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