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Seleta: Um mundo de brevidades
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Seleta: Um mundo de brevidades
E-book263 páginas3 horas

Seleta: Um mundo de brevidades

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Sobre este e-book

Um mundo de brevidades, nas palavras de João Anzanello Carrascoza. Nesta Seleta estão reunidos contos e fragmentos de romances do premiado escritor.
Uma pequena amostra da vasta produção literária deste autor que elegeu as histórias breves como forma privilegiada de expressão – mesmo quando falamos de seus romances. Cada trecho aqui é um efêmero episódio de alma própria, um recorte de vida.
Carrascoza é um escritor das miudezas cotidianas, das pequenas ternuras e angústias que são ao fim do dia as grandes formadoras das subjetividades. Esse olhar perspicaz permite esmiuçar a intimidade com uma prosa lírica, mas precisa. Os instantes simples da memória infantil, dos laços familiares, dos silêncios doces ou das ausências amargas são fonte para narrativas que deságuam em epifanias e transfigurações.
Esta Seleta reúne contos de livros premiados como O vaso azul, Aquela água toda, Tempo justo e Catálogo de perdas, além de fragmentos de romances como o Caderno de um ausente, Menina escrevendo com o pai e A pele da terra, da recente e elogiada Trilogia do Adeus. A seleção foi feita pelo próprio autor, a pedido da editora. O que para Carrascoza foi um minucioso exercício de visitação, para o leitor e a leitora é uma forma resumida de acesso a grandes histórias de um dos nossos maiores prosadores.
 
"Pela finura com que fixam vislumbres da condição humana, os melhores contos de O vaso azul merecem ser chamados epifânicos, quando mais não fosse por a 'súbita manifestação espiritual' a que dão voz tácita ocorrer sempre na 'vulgaridade' da vida cotidiana." - José Paulo Paes, Jornal de Resenhas/Folha de S.Paulo
"Com que arte sutil e compassiva o narrador sabe dizer os silêncios que unem pais e filhos." - Alfredo Bosi, em apresentação de O volume do silêncio
"Em sua contensão, alguns contos se aproximam de poemas, sem pudor de construções que alisam a beleza das palavras, dos sons, das imagens." - Beatriz Resende, crítica literária e professora universitária, para O Estado de S. Paulo.
"Carrascoza escreve, entre outras coisas, sobre a angústia do pequeno, de desejar pouco e de ser torturado pela rotina, apesar de que em cada movimento sutil existe um destino transformado." - Marcelo Rubens Paiva, Folha de S.Paulo
"Disso é feita a escrita de Carrascoza, de poesia que se quer silêncio, de miudezas que constroem o cotidiano, de melancolia, de lirismo."- Luiz Ruffato, escritor.
 
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de mar. de 2023
ISBN9786558471257
Seleta: Um mundo de brevidades

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    Seleta - João Anzanello Carrascoza

    Copyright © João Anzanello Carrascoza, 2023

    Ilustração e designer de capa: Raquel Matsushita

    Diagramação: Abreu’s System

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    C299s

    Carrascoza, João Anzanello, 1962-

    Seleta : um mundo de brevidades [recurso eletrônico] / João Anzanello Carrascoza. - 1. ed. - Rio de Janeiro : José Olympio, 2023.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-65-5847-125-7 (recurso eletrônico)

    1. Contos brasileiros. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    23-82261

    CDD: 869.3

    CDU: 82-34(81)

    Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB -7/6643

    Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    Reservam-se os direitos desta edição à

    EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.

    Rua Argentina, 171 – 3º andar – São Cristóvão

    20921-380 – Rio de Janeiro, RJ

    Tel.: (21) 2585–2000.

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    Atendimento e venda direta ao leitor:

    sac@record.com.br

    ISBN 978-65-5847-125-7

    Produzido no Brasil

    2023

    Para meus filhos.

    E vem a vida.

    guimarães rosa

    SUMÁRIO

    Nota da editora

    Abertura brevíssima

    FUTURO DO PRESENTE

    Primeiras letras

    Quem?

    Travessia

    As coisas mudam as coisas

    Só uma corrida

    Piedade

    Umbilical

    Dias raros

    Escolha

    Conto para uma só voz

    CAMPO DE SONHOS

    Palavra-vida

    Círculo-sonho

    Poesia

    Oceano e gota

    Homem-prisão

    rosebud

    Bilhete

    Sinal destes tempos

    Psicografia

    A pele da terra

    ÁREA DE LEMBRANÇAS

    Balão

    Chá de camomila

    CONTAS

    Jogo da memória

    Signo

    Mãe e praia

    Pobreza

    Gêmeos

    Caderno de um ausente

    CORREDOR DE SILÊNCIOS

    O vaso azul

    Moldura

    Senhora e raiz

    Aquela água toda

    Leitura

    Avó-olhos

    Infância

    Menina escrevendo com pai (fragmentos)

    QUADRA DE AMORES

    Cerâmica

    Ruínas

    Cristina

    Cansaço

    Espinho

    Mulher

    Astro-apagado

    Fases

    Elegia do irmão (fragmentos)

    RESERVA DE VAZIOS

    Veneno

    Chamada

    Mar

    Mundo justo

    Pedaços

    Sapatos

    Vai e vem

    Piercing

    Trigo

    Inventário do azul (fragmentos)

    Obras nas quais os contos e fragmentos de romances presentes neste livro foram originalmente publicados

    Nota da editora

    A Editora José Olympio, a mais tradicional do Brasil, teve papel fundamental na constituição da literatura nacional. Mais do que ter publicado os maiores escritores de nossa história, a editora atuou como um celeiro de novos nomes, além de ter funcionado como um local de célebres encontros ao ser também uma livraria.

    João Anzanello Carrascoza, um dos escritores mais relevantes da atual literatura brasileira, é dono de uma extensa e consistente obra. Um escritor premiado e celebrado, que explora o íntimo da subjetividade de todos e todas com ferramentas de linguagem tão delicadas que extrapolam amores, angústias e memórias. Como não se identificar com o universo onírico e aconchegante da infância, os primeiros medos em Dias raros, as primeiras perdas, em Gêmeos, e as pequenas grandes descobertas, em Avó-olhos? Ou ainda, como não se espantar diante das revelações que apenas o tempo e a experiência podem trazer, na série Trilogia do Adeus? João é fundamental para pensar a literatura nacional contemporânea. Sua obra merece ser estudada e reverenciada.

    Entre as várias coleções lançadas pela José Olympio ao longo de sua história, merece destaque a Coleção Brasil Moço, dirigida por Paulo Rónai nos anos 1970. A coleção era composta de seletas dos maiores nomes do momento, visando ao público estudantil ao reunir o melhor de cada autor ou autora em um só livro. A capa dos livros da coleção destacava o nome do escritor selecionado, um desenho que evocava o universo ali retratado, e como título indicava apenas "Seleta". Com essa inspiração, convidamos a artista visual Raquel Matsushita para compor o universo sonhador de Carrascoza.

    A ideia de publicar a Seleta de João Anzanello Carrascoza vem não só da vontade de revisitar a história da editora, mas principalmente de homenagear a trajetória desse importante autor. Carrascoza possui um estilo singular, uma prosa recheada de lirismo, sem que com isso se perca a precisão. Suas breves narrativas são pequenos olhares ao efêmero da vida — aquilo mesmo que deságua em epifanias e transfigurações. A expe­riência de seu texto ressoa nos leitores e leitoras mesmo após o fim da leitura. Se cada um dos tantos títulos publicados por Carrascoza tem sua notável relevância, publicar uma Seleta que reúna o melhor de sua obra é dimensionar sua importância. E é de impressionar ver tudo assim reunido. Fica evidente que João é um dos maiores prosadores de nosso tempo.

    A convite da José Olympio, o próprio autor selecionou os textos da Seleta. O resultado é um livro-recorte, um retrato íntimo, profundo, de João Anzanello Carrascoza e, por que não?, de todos nós. Ao enviar a coletânea para a editora, ­Carrascoza, com seu ar azul, decidiu-se: Aqui está um mundo de brevidades.

    E assim sua Seleta ganhou título, Um mundo de brevidades.

    Editora José Olympio,

    janeiro de 2023

    Abertura brevíssima

    Desde menino, espanta-me que, mesmo os dias de cauda longa, as tardes compridas e as noites de extensa duração sejam tão breves. Esta percepção definitiva — da fugacidade de nossas vivências — pauta a minha escrita, materializada quase sempre em narrativas curtas. Como se me dedicando a uma história maior, me faltasse, a qualquer instante, tempo de terminá-la, já que a finitude nos rodeia sem cessar, e está a cada minuto mais próxima.

    Estas páginas contêm um conjunto de textos selecionados de toda a prosa de ficção que produzi em trinta anos de trajetória literária. São, portanto, contos de tamanho médio, minicontos, microcontos (de uma linha só), além de trechos de romances — fragmentos com vida própria, ainda que dissociados de suas nascentes.

    A pinça usada em tal recolha tem numa de suas hastes o gosto do escritor por ter gerado estes textos, e, na outra haste, as preferências advindas dos leitores. Agrupei-os em nichos que, de certa forma, representam minhas inquietações e também meus limites como ficcionista. É o punhado de água que me coube apanhar do mar no qual estamos todos flutuando, como náufragos. Obediente à nossa efemeridade, esta poça guarda, contudo, um (o meu) mundo de brevidades.

    Que haja tempo para, juntos, revivermos o seu evanescente conteúdo.

    João Anzanello Carrascoza

    FUTURO DO PRESENTE

    PRIMEIRAS LETRAS

    Desculpe se eu me intrometo, mas o que você está lendo? Ah, eu já li, é uma história muito bonita, o final, então, você nem imagina… não, não se preocupe, eu não vou contar, logo você vai descobrir, faltam poucas páginas pra terminar, não é? Eu sempre fico inquieto quando estou no fim de um livro, me dá um alívio e ao mesmo tempo tristeza, eu gosto muito de ler, desde menino, em Barra do Pontal… Não, fica a trezentos quilômetros de Belém, é uma vila de pescadores, não é fácil chegar, se bem que já foi mais difícil, quando eu saí de lá não tinha ponte, agora vão inaugurar uma, eu soube pela minha irmã, quero só ver, estou indo justamente pra lá, visitar essa minha irmã, foi ela quem me ensinou a ler e escrever… Faz mais de vinte de anos que a gente não se vê, estou viajando há dois dias e ainda tenho umas seis horas de viagem, meu corpo dói todo, mas hoje, hoje eu vou encontrar com ela… Na semana passada, eu lembrei muito da minha irmã, parecia que ela me chamava, que precisava me ver, aí arranjei uma folga na firma e avisei lá em casa, Vou visitar a Maria; minha mulher ficou muda, à beira do fogão, como se olhasse além da água fervendo na panela, mas, de repente, ela disse, Vai, vai, sim… É que do nada eu senti saudades da minha irmã, daqueles dias em que a gente dormia no mesmo quarto, criança ainda, e conversávamos um tempão na cama, coisas sem importância, mas que pra nós era tudo, a nossa vida naquela hora; a gente pode esquecer as palavras, mas não o que sentimos, pelo menos é o que acontece comigo, eu só lembro das coisas que eu fiz com as pessoas, quando quero me recordar delas, eu fecho os olhos e busco na memória uma cena que vivemos juntos, eu não sei explicar direito, talvez por isso eu goste de ler tanto, eu vivo procurando histórias que digam o que eu sinto, é uma limitação minha, não saber expressar o que está aqui dentro, é como se a coisa fosse feita pra não ser dita, só pra ser experimentada, igual a uma fruta. Uma fruta a gente não explica, quer dizer, a gente até explica, que ela veio de uma árvore, uma árvore que antes foi semente, mas isso não tem graça, uma fruta é pra gente provar, uma fruta é pra gente se lambuzar, carregar o cheiro na ponta dos dedos, não é? Ou talvez seja igual a uma história que nos contam, você logo esquece as palavras, você fica só com a história, com o que ela despertou em você, as palavras são como roupas, estão ali só pra contornar o corpo das coisas, a gente quer o que está por trás delas, a gente quer é o miolo, aquilo que nós somos, lá no fundo… Eu aprendi com a minha irmã, quando a gente não sabe o que dizer pra uma pessoa (porque tudo o que poderíamos dizer seria ainda menor do que sentimos), é melhor darmos um abraço nela, isso mesmo, um abraço, um abraço é como uma história, diz por si, diz por nós. Quando eu fui embora de Barra do Pontal, ela me disse uma porção de coisas, mas eu esqueci tudo, daquele dia só lembro de seu abraço, eu esqueci até o que eu disse a ela, quando, pra disfarçar minha comoção, fiz um carinho em seus cabelos, só pra dizer o quanto eu gostava dela, e tudo o que falamos se perdeu, e se se perdeu é porque não era mais importante do que dissemos com aquele abraço… Não, ela não é professora, assim, formada, mas tem uma delicadeza pra ensinar, uma calma, eu lembro quando me mostrava as figuras na cartilha, um sol, um gato, uma xícara, essas coisas simples, e eu ia entendendo como é que se escrevia o que já estava na minha vida, o sol que nascia na beira do rio, o gato da vizinha, a xícara da mãe, e ali, da minha mão, que ela segurava, me ajudando no contorno das letras, nascia o sol, o sol que na folha de papel era um sol-sol, porque era o sol na palavra sol, e o gato era um gato-gato, e a xícara era a xícara-xícara, e eu lembro de sua voz, eu ainda menino, ela um pouco maior do que eu, três anos de diferença, e era uma coisa de muito cuidado o que ela me ensinava, lembro que eu senti como se estivesse abrindo os olhos para o mundo, novamente, pela primeira vez… Outro dia vi a cartilha de um dos meus meninos, é bem diferente daquela do meu tempo, mas lá encontrei também um sol, uma árvore, uma bola, um dado, um elefante, essas coisas, e acho que não tem outro jeito de aprender, não, a gente sempre começa do simples, do que já está em nós (e ainda não entendemos). Eu tenho muita saudade da minha irmã, e a saudade é como a fome, só acalma quando a gente come, não importa se temos talheres, se estamos sentados, se lavamos as mãos, a saudade, ou a gente devora, ou ela vai mastigando a gente, devagarinho, até ficarmos tão fracos que nem percebemos o que se passa diante de nós, igual um livro que estamos lendo e, de repente, nos distraímos, e aí quando nos damos conta, estamos umas páginas adiante, deslizamos de uma palavra a outra, mas sem notar os seus sentidos, só escorrendo pelo papel, sem a gente se molhar, sem penetrar na sua pele, sem se enfiar todo no seu rio, e eu gosto daquilo que tira o fôlego, da vida que exige o mergulho, que arrasta tudo pra luz com o seu anzol, da vida que dá saudade do próprio instante que estamos vivendo… Sempre no fim do ano, eu mando uma foto dos meninos pra minha irmã, presente de Natal, é uma maneira de dizer que estamos bem, seguindo a nossa rotina, e ela também me envia seu retrato, mas não é a mesma coisa que ver uma pessoa de perto, vivendo, diante da gente, igual eu e você agora, principalmente uma pessoa que conhece o nosso livro sem precisar abrir, é uma coisa tão grande, é um milagre, não é? A vida é tão silenciosa, a gente nem percebe direito que está nela, pelo menos não o tempo todo, mas, se estamos atentos, se sentimos essa dor (sim, é uma dor, uma dor que dói aos poucos), aí descobrimos toda a sua intensidade… Outro dia mesmo eu peguei a última foto dela, minha irmã não se casou, é uma pena, merecia um homem bom, pra seguir com ela até o fim, e olhando essa foto eu procurei naquela mulher a menina que me ensinou a ler, e aí, como se tivesse aberto uma represa, tudo voltou, e de repente ela estava ali, e parecia que esses anos todos não tinham se passado, e lá estava eu ao pé dela, feito um menino à sombra de uma árvore, ela sempre antes de mim no mundo, cuidando pra eu sofrer menos, pra aprender logo, e eu recordei todos os dias que vivemos juntos, num só instante, um instante que era como uma enchente, e a sua imagem, como um punhado de areia, ia escorregando pelos meus dedos, escorregando, mas consegui reter um grão, e aquele grão era um tesouro, e aí me deu vontade de dizer tudo o que eu sentia por ela, essa vontade que só temos quando estamos longe, e eu pensei, Por que esperar mais? Daqui a pouco vou encontrar ela, com essa seca vai ser difícil cruzar o rio, tem muitos bancos de areia, às vezes, em alguns trechos, é preciso carregar a canoa nos ombros até onde as águas voltam a ser profundas, mas não importa com quantas barreiras eu vou me deparar, a maior eu já passei, quer dizer, quero só ver quando eu estiver diante da minha irmã, nós dois, frente a frente, depois de tantos anos, cheios de tempo em nosso corpo, lembranças em nosso olhar, histórias em nossas mãos… Pois eu vou dizer isso a ela, vou dizer tudo com um abraço, e aí vou ficar olhando pra ela como um pescador que mira as ondas, sabendo que pode ser a sua última saída ao mar, e aí vou esperar ela dizer o que sente por mim, usando outras palavras, Senta aqui, vou coar um café, não repare a bagunça, sem saber o que fazer com a sua felicidade (e eu com a minha). E eu vou entender tudo, vou entender o que cada um de seus gestos quer dizer — afinal, eu aprendi a ler com ela.

    QUEM?

    Os quatro

    … não, não podia ser, se as lembranças vinham em pedacinhos, misturadas como sol e sombra, as boas e as más, aquela ia ser uma que não fazia parte desse mundo, a notícia chegava, na voz do policial rodoviário, de um território de fábulas, uma hipótese impensável pra qualquer um da família, tanto que ele, o celular colado à orelha, ouvia as perguntas e as respondia como se falassem com outra pessoa, não, não era verdade, tinham saí­do os quatro ainda há pouco, iam ao pico do Selado, só pra ver lá de cima a cidade, tão lindo o dia sem a cortina das nuvens, e o vento trazendo o cheiro de ervas, e ele, não, a mente rebobinando, podia vê-los à mesa, ainda agora, vimos, o pai na cabeceira, bebericando o copo de limonada, a sorrir, o pai, começo de todos, e o tio, o tio ao lado dele, quase sósia, não fosse a cicatriz na testa, o coice de um potro nos tempos de peão, e a irmã, que era antes de tudo aqueles olhos azul-turquesa, e só depois era o rosto a cintura o corpo inteiro, e o menino, estômago em redemoinho, o menino, o seu menino, meu Deus, só nove anos, não, não podia ser, a realidade tremia inteira nele, não se ajustava ao vaivém de sua respiração, não podia ser, o pai, o tio, a mana, o filho, eram e não eram eles, sim, confirmo, mas deve ser um engano, domingo, a vida total, fechada pra maldades, era domingo e não segunda-feira, como se o destino atuasse apenas durante a semana, coisas ruins só a partir de amanhã, e o policial não, desculpe, senhor, é isso mesmo, desossando-lhe a razão, e, pior, destripando-lhe a esperança, não podia ser, domingo, a mãe tinha ido dar um cochilo, só pra aquietar o coração às tampas de alegria, os filhos e as noras e os netos estavam ali, haviam chegado ontem, pro aniversário dela, a mãe, a mãe, podia já ouvir os gritos dela, de parto às avessas, quando a avisassem, fosse quem fosse, porque dali em diante a memória iria arder inteiramente, a qualquer hora, até quando aspirassem o ar fresco da manhã, até quando estivessem felizes por um instante, enganando sem querer a realidade, não, ninguém mais, entre todos, espalhados pela casa, ninguém, os ventres pesados de macarronada e pernil, teria paz na vigília dos dias, iriam todos desejar visceralmente a noite pra cair logo no sono, só aí poderiam esquecer o pesadelo que, a partir dali, se iniciaria todas as manhãs, ao abrirem os olhos, aquela notícia, não fossem eles tão demasiadamente unidos, deceparia, como um machado, a grossa vontade que possuíam de seguir vivendo…

    O pai

    … o pai, o pai era o tronco onde todos vinham se escorar, a mãe a

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