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Por trás da farda
Por trás da farda
Por trás da farda
E-book274 páginas3 horas

Por trás da farda

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Sobre este e-book

"Por Trás da Farda" articula conexões humanas entre dez militares e um mesmo narrador, praticamente observador. Com um olhar atiçado pela alteridade e pela humildade, um servidor civil aproveita-se da posição privilegiada de interação dentro do âmbito militar para passear pelas vivências, debruçar-se nas revelações e compreender os sentimentos de um grupo de praças da Polícia Militar. Diante de cada situação, ele capta e expõe detalhes, características, singularidades e sensações que culminam num processo de individuação, pois os militares, em diversos momentos cotidianos, se tornam esquecidos ou invisíveis ao cidadão. As narrativas revelam essências e marcas que moldam cada policial, apesar de sobrepostas pelo pesado fardamento. Passado o distanciamento inicial, os personagens e o leitor se afluem num descobrimento e, por conseguinte, numa junção, porque os laços humanos, sociais e íntimos abordados nas tramas descortinam mais que as configurações sobre a vivência policial. Nessa atmosfera de cumplicidade, irrompem-se descobertas sobre a humanidade interna que, no caso, correlaciona-se com a vasta atividade inerente à Polícia Militar. "Por Trás da Farda", vive um indivíduo como qualquer outro que sofre, sente, se importa e batalha, com opiniões e sentimentos, muitos deles velados e desconhecidos, mas sempre pulsantes.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento1 de mar. de 2019
ISBN9788530003883
Por trás da farda

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    Pré-visualização do livro

    Por trás da farda - E. J. Pereira

    www.eviseu.com

    Dedicatória

    Dedico aos sonhadores, sofredores e buscadores. As curvas também são caminhos. Apesar de apontarem o desconhecido, deságuam em descobertas, mudanças e afetos. Continuem marchando.

    E por trás desses pormenores literários, presto meu respeito a todos que aceitaram a tarefa de se viver uma farda.

    Agradecimentos

    À minha mãe, pelo que me imbuiu na pele, pois cada dia eu me sinto mais igual a ela, e pelo incentivo indiscutível em me publicar, aliado à preocupação, mesmo sem saber qual papel que ela desempenharia (esquece-se de que tem feito bastante por mim).

    Ao meu pai, pelo apoio logístico nas impressões de diversos contos, histórias, roteiros, fichas de inscrição, e pela ajuda, por menor que seja, que é capaz de transmitir admiração.

    À Margareth, por me colocar em movimento e cobrar o lançamento desse livro de maneira a combater minhas dúvidas, receios e angústias. Com o Eneagrama, pude me descobrir com gratidão.

    Aos amigos que leram em primeira mão e se deslumbraram, Luís Felipe, Patrícia, Renata, Jéssica, Fabiane, Scheila e Mayara. Como leitores pioneiros, geraram impulsos valiosos que não me deixaram fraquejar.

    Nos olhos alheios, me enxerguei. Na bondade e partilha, pude florescer meus escritos.

    Prefácio

    Caro leitor,

    Prepare-se para desconstruir!

    Esqueça tudo que você sabe sobre a Polícia Militar, sobre homens de farda, sobre truculências, sobre palavras e gírias estranhas que só o militar entende. Esqueça as formalidades. Esse livro mergulha no universo de homens e mulheres por trás das fardas e revela o ser humano fraco, medroso, traumatizado, abusado.

    A cada capítulo, personagens fictícios encarnam histórias reais que foram encenadas, às escondidas dos holofotes, nos Batalhões do Brasil e, nesse livro, encontraram a profundidade que mereciam. Soldados, cabos, sargentos e subtenentes têm aflições sobre o peso da carga de trabalho na vida pessoal, renúncias, família e filhos. Mas é mais. Situações corriqueiras do dia a dia de um policial viram cenário para falar sobre a sexualidade, o preconceito, a hierarquia, a intolerância.

    Apenas praças. Nenhum oficial. Aqueles que são a massa da Polícia Militar, que representam números, efetivo, ou estatísticas, agora, também são humanos. E, nessas páginas a seguir, fica a impressão de que dentro do universo militar, todas as angústias do ser humano são elevadas à décima potência e reprimidas até o último buraco da imponente farda caqui, cinza bandeirante ou azul petróleo.

    Ah, e caso você aí seja um policial... calma! Esse livro não vai desnudar você. Esse livro é seu empoderamento. Foi bom lhe descobrir homem de verdade. É mais fácil respeitar a autoridade agora.

    Patrícia Rocha Magalhães – jornalista

    @patriciarocha_

    patriciarochamag@gmail.com

    Cb Bragança

    Uma atípica manhã de névoa arrebatava, para baixo, o vigor, a minha expectativa de chegar à Polícia. O constante falatório a respeito do homicídio na Exposição, durante o final de semana, contribuía para o mal-estar. No ônibus, fulgurava como o assunto caloroso do momento. Até eu contribuía com a discussão, fazendo caretas de indignação e de revolta. Os trabalhadores e passageiros pareciam ter presenciado todo o desenrolar do fato na madrugada de sábado. O jeito como falavam transparecia que tinham sido presenças oculares. Éramos meros debatedores inconformados, incorrigíveis. Nós arrancávamos um prazer malicioso em nossa troca de opiniões. Discutíamos se havia sido maldade ou legítima defesa diante da briga. Uns indagaram covardia, sangue ruim. No fundo, destacavam que a Polícia não fez nada. Como sempre, o autor estava solto, sem punição. Com vergonha de transparecer ser discordante, eu meneava a cabeça afirmativamente de maneira ligeira, despreocupada.

    Ao descer do ônibus, eu estava certo de que, na semana seguinte, ignoraríamos. Talvez nem amanhã versaríamos sobre a incomum pancada na testa, ou na cara, ou no queixo, fadada a cair no esquecimento. Com descrença elevada, a jornada começava desanimada, como se as batalhas futuras por prosperidade e justiça estivessem totalmente perdidas para todos. O mundo continuava, mesmo com nossos esforços, de maneira inevitável. Sempre haveria um crime a ser reportado. Vira e mexe, um acontecimento criminal nos traria certo impacto. O clamor social brota todo dia, em intensidades distintas. Cobra-se sempre no momento. O tempo passa, cai no pretérito mais que esquecido. Ninguém sabe o fim que levou, muito menos o que motivou. O dolo é raramente provado ou compreendido.

    Passei pelo sentinela, anos e anos naquele posto, no piloto automático. Trocamos apenas cumprimentos com a cabeça. Até que ele quebrou o protocolo. Levantou, pelo vidro, o jornal local com a manchete escandalosa sobre o incidente funesto. Era mais uma vítima que tinha perdido a vida e ganhado as páginas da notícia. Eu vinha caminhando com as mãos nos bolsos. Permaneci com elas fechadas, sem desejar aceitar a oferta jornalística e a ânsia em debater o caso. O soldado transpareceu desaprovação, no semblante de ar vexatório, pela atuação dos irmãos de farda:

    - Esse está lascado, no sal! Não sabe a confusão que se meteu.

    - É complicado. – ousei aderir.

    - Temos de tomar muito cuidado hoje em dia. Tem câmera pra tudo quanto é lado. Dizem que tem um vídeo da briga, e a Polícia está segurando pra não vazar.

    Me sentia, de repente, armado, retesado. Embora descontente, para me tornar participante, mais uma vez, do sentimento de reprovação coletivo, levantei minhas sobrancelhas, dei um sorriso amarelo. Recolhi-me. Cabia a nós, civis e militares, falar tanto e acabar julgando?

    Por um instante, observei as dependências do Batalhão. O telhado, recém-trocado, não tirava o aspecto antiquado, corriqueiro. O espaço me lembrava um castelo medieval, repleto de mistérios. O vapor do frio gerava a certeza de que muito ainda estava encoberto. Como todos, me remeti à recente morte diante de uma multidão, no meio de uma rixa. A vítima estava brigando, dentro e fora da Exposição, antes de ser atingida fatalmente. No entanto, com tanto falatório real e virtual, qual seria a força das palavras das testemunhas? Onde estavam? O que viram? Num mundo de hipócritas, falar ocultamente era tranquilo. Ficar protegido no anonimato, cercado por barreiras, dava impulso para todo o tipo de confissão, julgamento. Dar as caras sem anonimato traz vulnerabilidades, abre as pessoas para ataques. Ninguém quer ser abatido ou diminuído. Buscamos ser elevados, destacados dentro de um grupo, nem que seja opinando.

    Em contrapartida às novas reformas, a tinta descascada das paredes do Batalhão atestava a força do tempo. Tudo se revela. A densidão da verdade se resvala. Nada impede a chegada do esclarecimento. Ou seria do aprendizado? Vala alguma poderia deter as interferências precisas da vida em acertar, corrigir, ajustar. Virei minha mochila pra frente. As pessoas gostavam de serem árbitras umas das outras. Decidir pelo outro não traz soluções tão concretas. Teoria sempre é mais fácil que prática.

    Vasculhei pela chave enquanto passava pelo corredor central. Só o farfalhar do molho, em minhas mãos, ressoava-se presente, ao contrário de minhas maquinações. O resto era apenas calmaria aparente.

    Ao dobrar o corredor, me assustei. Derrubei as chaves. Tinha alguém, um invasor. Naquela hora, bem cedo, sempre só havia eu a rondar pelas dependências do Batalhão. Aquele sujeito, vestido como civil, não poderia estar ali. Quem teria permitido a entrada dele? O sentinela teria dormido?

    Quando se virou, percebi, de cara, que era um militar. O porte, o olhar e a rigidez entregavam. A mão jogada rapidamente para o coldre velado completava a figura. Por outro lado, não parecia um policial pela vestimenta. Lembrava mais um recruta, com o cabelinho crescido, caído na testa. Os olhos carregados contrastavam com o ar de moleque. A calça jeans azul, mesmo com rasgos, com uma camisa branca reforçava a imagem de soldado aluno. Só a barba por fazer destoava:

    - Bom dia, senhor. – respondi maquinalmente, assim que recolhi as chaves do chão.

    - Você chegou cedo demais. – constatou.

    - Eu pego meia hora antes que os demais servidores civis.

    No caminho para minha porta, ele parou na minha frente e me cumprimentou. As mãos estavam quentes, apesar do frio e da falta de um agasalho:

    - Esqueci seu nome, senhor.

    - Cabo Bragança.

    Com o esclarecimento, me lembrei. Ele pertencia à motopatrulha, recém-implantada. Por diversas vezes, havia me ligado pedindo orientações sobre procedimentos. Tinha uma voz simpática, alegre, que agregava a todos. Hoje, pelo contrário, retumbava cansado, introspectivo.

    Meu momento mais apreciado no trabalho era chegar e saber que estava sozinho, sem chefe, sem ninguém para me espionar. Com o Cabo Bragança do lado de fora, me sentia constrangido, embora ele não pudesse me ver.

    Liguei o computador e a cafeteira. Já tinha comido pão e tomado leite:

    - Aceita um café, senhor? – convidei do parapeito.

    Ele se assustou, de pé, em frente ao mural com a lista de médicos conveniados:

    - Claro.

    Enquanto eu digitava a senha, Cabo Bragança parou, assim que entrou, praticamente em posição de sentido com as duas mãos coladas às coxas:

    - Licença. – disse, antes de adentrar.

    Achei o pedido educado, mas inusitado. Não respondi. Ele era meu superior, sempre. Talvez não tenha perdido o hábito da cortesia. Apesar dessa polidez, a sua presença funcionava como uma invasão. Pelo canto de olho, eu o espiei a observar a sala, tentando ler o que as arrumações queriam dizer. A profissão teria desenvolvido alguma semiótica? Ou era ela natural?

    O Cabo adquiriu uma postura mais infantil, ao se sentar em cima das próprias mãos. Não consegui evitar pensar que o jeito corporal dizia que ele tinha aprontado e esperava um castigo:

    - Você foi na Exposição no final de semana? – puxou o fatídico assunto. Bem que poderia ter comentado sobre o tempo estranho e frio que nos assolava.

    - Não. Viajei. – respondi.

    - Soube do ocorrido?

    - Sim. – menti.

    Nas folgas, eu evitava ler e saber de Polícia. Eu trabalhava pra PM, não era um PM audaz, pronto e preparado 24 horas. Forçava-me a desligar de vários contatos policiais:

    - Açúcar ou adoçante?

    - Puro. – Cabo Bragança respondeu como se fosse óbvio.

    Peguei uma xícara e um pires no armário:

    - Deixa de frescura. Pode ser no copo de plástico.

    O Cabo se levantou e parou do meu lado. Ficamos observando e ouvindo a cafeteira terminar de jorrar o líquido escuro, esfumaçado. Ele se serviu de um copo cheio. Eu me satisfiz com dois dedos.

    Voltamos para nossas posições, um longe do outro. Enquanto eu lia as mensagens acumuladas da caixa de entrada, tive a impressão de que o Cabo buscava se aproximar. A solidão, no militarismo, apresentava-se como intrínseca. Fazia com que muitos rondassem o quartel fora do horário de serviço, iguais a cachorros de rua sem dono que adoram as dependências de um Batalhão. Assim como cavaleiros errantes, muitos chegavam mais cedo ou saíam depois do horário do turno. Agiam como verdadeiros satélites necessitando de uma órbita certa e definida, a todo momento. Eu não saberia ser um PM.

    Escrevendo uma lista de tarefas do dia, peguei-o fitando a mim. Ficou sem graça. Parecia que, no fundo, o Cabo Bragança, um militar formado com, pelo menos, mais de oito anos de casa, gostaria de trocar posições, tornando-se um reles civil:

    - O senhor trabalhou na Exposição? – retomei ao tópico do momento, com objetivo de mostrar que eu era como os demais, ansiando por esclarecimentos.

    - Infelizmente. – de uma golada, virou o resto do café. O Cabo tentou esconder a careta pela língua ou céu da boca queimados. – Posso servir mais?

    - Claro. Fique à vontade.

    Ao passar atrás de mim, esbarrou a coronha da arma na minha cadeira. Ocasionou um barulho seco, alto. Me remexi na hora:

    - Desculpa.

    Me virei e passei as mãos pelas costas do assento por uma banal conferência:

    - Só me faltava essa! Vou ser acusado também de dano ao erário? – retiniu de maneira ríspida.

    - Não foi nada. – justifiquei. – Nem arranhou.

    Ambos ficamos sem graça. Calmamente, ele voltou ao lugar. Sentou-se. Esticou as pernas. Cruzou um pé sob o outro. Fechou os olhos:

    - Você não estende muito o assunto.

    Parei de digitar. Coloquei-me em silêncio:

    - Todo mundo quer saber o que realmente aconteceu na Exposição, quem é o culpado. – completou.

    Retirei as mãos de cima do teclado. Fiquei de lado para a tela, de frente para ele. Eu não compreendia a que ponto o Cabo queria chegar. Não gostei de estar sob a mira dele.

    Mesmo evitando me informar, meu celular foi inundado de mensagens, notícias, desabafos, provas, opiniões e revoltas pelo infame incidente. De repente, me senti errante por não me interessar. Mais tarde, todo mundo da sessão chegaria comentando. Eu teria de interagir, dar meu parecer:

    - Um homem morreu. – falei. – Por causa da atuação da Polícia. Pelo que aprendi aqui dentro, não devemos discutir lá fora a forma de agir dos militares. – mostrei que eu tinha sido bem adestrado no posicionamento da Corporação.

    - Não é tão simples assim. – retrucou.

    De repente, o Cabo Bragança abriu os olhos e me encarou. A aparência imatura deu lugar a uma feição de doido, malvado. O movimento do pescoço fez o queixo quase colar no peito. As meninas dos olhos sumiram. Foi a minha vez de torcer as mãos debaixo da mesa, por receio:

    - Deve ter biscoito Magia. Aceita? – resolvi fugir, mais uma vez, da trágica ocorrência.

    Abri todas as portas de armário da sessão, remexi em caixas. Procurei. Não obtive êxito. Ao me virar para voltar à mesa, o Cabo Bragança se materializara na minha frente. A mão direita repousava na coronha da arma, como de costume, preparada para o ataque. Senti que eu tinha virado um suspeito a ser abordado, pois desencadeei um potencial risco:

    - Ainda teimam que a arma é o objeto mais perigoso na prática policial. – o Cabo disse mais para si mesmo. – Até as palavras derrubam.

    Me arrependi de ter oferecido um café, deixando-o tão próximo. Ele tinha ar de transtornado, alterado. Oscilava nas fisionomias. Às vezes, aquele era o semblante ideal ao vestir a farda e se colocar a frente do dever:

    - Será que a tonfa teria dado o mesmo resultado? – o Cabo ainda dialogava com seu interior. – Por anos, não carregava nada, nem a tonfa eu levava. Ou melhor, o tonfa. É o bastão tonfa. Resolvia tudo na mão.

    Balancei a cabeça como se a constatação fosse óbvia. Havia muitos detalhes policias que eu não fazia questão de compreender.

    Resolvi voltar para meu lugar. Passei e trombei no braço dele. O Cabo nem se moveu, treinado a se manter firme. Apesar de incomodado, me sentei e fiquei de costas. Desejava que ele se fosse. Para se aliviar e me irritar, passou a tamborilar nos armários de ferro:

    - O senhor sabe se o cara morreu na hora? Ou deu tempo de socorrer? – por provocação, fiz questão de retomar ao assunto do dia. O batuque cessou. – Ele chegou com vida ao hospital?

    Aguardei a resposta. Não veio. Virei o pescoço. O Cabo Bragança parecia ter sido atingido, prestes a desmoronar. Estava congelado, os dedos recostados na porta de metal. Eu tinha, enfim, entendido. Ele sabia do incidente. Tinha visto, presenciado. Era uma real testemunha. Estava na fase de expurgação, querendo falar a respeito, quem sabe por nervosismo. Sei que os militares são instruídos a debater todas as ocorrências, como forma de aprimoramento, apontando erros e acertos:

    - O senhor vai ser ouvido agora cedo, não é? No Cartório? Eles irão colher o seu depoimento... – deixei no ar.

    O Cabo parecia reviver o trágico incidente. Era palpável a desconfortável abertura diante da fachada:

    - O cara que morreu era ou não era um vagabundo? – desviei o tema para longe da atuação policial.

    - O que importa? Depois de morto pela Polícia, o pila passou a ser um coitado, que não fez mal a ninguém. Você leu os comentários na internet? Estamos sendo execrados. Nos chamam de culpados, enquanto o marginal sai como mocinho. Todo mundo quando morre e vai preso vira trabalhador ou pai de família. Ele estava transtornado, chapado, cheio de pó no nariz. Tinha brigado antes, estava caçando briga do lado de fora. – soltou as frases como se fosse num fôlego só.

    - Não vejo problema se o golpe de bastão de madeira que ele levou na cabeça foi por causa de uma briga. – externei meu ponto de vista, treinado a defender a Polícia. – Estavam separando ele de uma confusão. Se foi assim, a ação do policial está justificada.

    Quase numa perfeita meia-volta militar, ele voltou a me encarar. Percebeu que, como testemunha, não deveria tratar do assunto comigo. Despertou. Tinha que guardar as palavras para o momento de ser ouvido num inquérito. Calmamente, atravessou a sala e ficou de pé, defronte à vidraça transparente da seção. Podia passar o Coronel lá fora, que ele não perceberia. Pelo reflexo, notei que estava enfeitiçado pela própria imagem. Desconcertado, eu mirei a janela, na direção contrária. Apesar de prospectos distintos, o ambiente lá fora, anuviado e carregado, era igual ao espírito do Cabo Bragança:

    - Sabe uma coisa que não entendo? – com o desabafo escutado, eu quis esclarecer, me deixar a par. – Nenhuma mensagem aponta qual equipe pertencia o militar.

    - Como assim? – ele voltou a se sentar, intrigado.

    - Eu recebi mensagens de diversas origens, informando sobre a morte do garoto. Uma que li não explica quem estava patrulhando fora da festa e teve de agir. Não sei se foi a equipe da moto, do Comando, do Tático, da Base Comunitária, sei lá. Falam que a viatura do Comando Interno da Exposição pegou a vítima, e os militares a levaram para o hospital. Só que não apontam qual grupo de policiais atuou antes na briga para separar.

    - Diante de todos os detalhes, é isso que mais te chamou atenção?

    Não sabia dizer se aquela pergunta era uma decepção ou uma exaltação quanto à minha perspicácia. Deveria ter me calado:

    - É.

    Peguei meu celular. Entrei num grupo de conversa:

    - Oficialmente fala-se que a Polícia socorreu um homem, de 18 anos, que se encontrava caído no passeio, e foi conduzido ao hospital. Lá, foi socorrido, vindo a óbito. O laudo médico é inconclusivo, sem lesões aparentes na vítima.

    - Já chegaram a inventar que havia marca de coturno no peito dele, acredita?

    - Diz que tem um vídeo do ataque sendo abafado.

    - Não tem. – disse categórico.

    - O povo gosta muito de falar.

    - De inventar. – corrigiu-me. – A verdade é que o pila tinha cardiopatia. Ia morrer de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde. – esclareceu como se fosse a título de defesa. – A pancada só fez o gatilho dentro dele acionar e explodir o coração. Bum! Bem feito!

    - Essa perícia já é oficial? – alarmei-me.

    - Ainda não. – O Cabo sorriu, como se fôssemos conspiradores. – Eu tinha de saber. Não conseguiria chegar aqui hoje sem essa informação.

    - Aí, na ocorrência, apenas falam que testemunhas viram a vítima brigar, o que ocasionou na chegada do policial. – continuei. – Parece que o PM apareceu lá sozinho, de repente, do nada.

    Arrematei com incredulidade, esperando que ele me achasse esperto por pontuar que um policial desacompanhado, numa Exposição ou quase sempre, era uma situação a ser quase evitada. A Polícia atua buscando a supremacia de forças.

    O Cabo Bragança ficou quieto, o rosto impassível. Comigo, naquela sala, ele estava sem parceiro:

    - Você leu os comentários nos sites? – novamente desviou do fato para os impactos – A sociedade é hipócrita. Não merece a Polícia que tem.

    - Quando descobrirem quem foi, vão pegar o militar pra Cristo. – dei continuidade à repercussão futura. – Vão perseguir nas redes sociais para servir de exemplo e aplacar a fúria da sociedade.

    No

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