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Rituais da percepção
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E-book334 páginas3 horas

Rituais da percepção

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Sobre este e-book

Este livro é uma síntese das atividades desenvolvidas durante o I Colóquio Sentidos e Tecnologias: Rituais da Percepção, realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF) em julho de 2017, com o apoio do CNPq e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFF. Ao longo de quatro dias, reunimos um grupo interdisciplinar de pesquisadores das áreas de Letras, Filosofia, Comunicação, Artes e Antropologia para discutir sobre as implicações estéticas e políticas dos modos contemporâneos de agenciamento da percepção e construção de subjetividades.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de jan. de 2019
ISBN9788565505871
Rituais da percepção

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    Pré-visualização do livro

    Rituais da percepção - Adalberto Müller

    © Adalberto Müller e Alex Mortoni (orgs.), 2018

    © Oficina Raquel, 2018

    EDITORES

    Raquel Menezes

    REVISÃO

    Alex Mortoni

    FOTO DE CAPA

    Mariana Vilhena

    CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

    Julio Baptista (jcbaptista@gmail.com)

    PRODUÇÃO DE EBOOK

    S2 Books

    CONSELHO EDITORIAL

    Maria de Lourdes Soares

    Rosa Maria Martelo

    Ricardo Pinto de Souza

    Phillip Rothwel

    Gerson Luiz Roani

    www.oficinaraquel.com

    oficina@oficinaraquel.com

    facebook.com/Editora-Oficina-Raquel

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Muller, Adalberto; Mortoni, Alex

    Rituais da percepção. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018.

    240 p.

    ISBN: 978-85-9500-034-6

    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

    Créditos

    Apresentação

    Rituais da percepção: construções políticas do sensível

    Reconfiguraciones de la imagen y la percepción. Notas para explorar la visualidad contemporánea desde el ritual, el dispositivo y el gesto

    Representación y acciones en imágenes: hacia una comprensión performativa de lo icónico

    Acerca del carácter medial de las imágenes. Análisis crítico de los planteos de Hans Belting

    Literatura não é documento: sobre poesia e a percepção do real

    Rituais da poesia: ritmo, imagem, voz

    Formas, fuerzas y transformaciones del poema: (Notas a propósito del Festival Poesía e Música PM)

    Cantigas do Ceilão: as músicas do crioulo-português no sul da Ásia

    Antropologia dos rituais: Imagens do tempo no carnaval e no Boi-Bumbá

    Archivo, memoria e historia en la imagen técnica

    As Imagens Inconstantes: Lendo Ambiências no Cinema

    Políticas da Percepção e Zumbis (um tributo a George Romero)

    Autores

    Notas

    Apresentação

    No primeiro semestre de 2016, por ocasião da publicação de um dossiê da Revista ECO-Pós, do PPGCOM da UFRJ, dedicado ao pensamento do filósofo tcheco Vilém Flusser, publiquei, em coautoria com o filósofo argentino Hernán Ulm, um artigo intitulado O gesto de ouvir música em Vilém Flusser: tecnologias de áudio e os rituais da percepção. Interessava-me, naquele momento, compreender de que modos o desenvolvimento de meios técnicos de registro sonoro, desde o século 19, não só permitira a transformação da música em commodity, como também instituíra um sistema de condutas corporais do ouvinte diante dos dispositivos de áudio. A Hernán Ulm, por seu turno, interessava refletir sobre a dimensão política desse fenômeno, já que lhe pareceria inequívoco que os processos por meio dos quais o perceptível é construído derivam de diferentes modos de agenciamentos sociotécnicos. Ao observarmos com atenção aqueles registros fotográficos que tínhamos em mãos e dispúnhamos à maneira warburguiana, parecia-nos evidente que os gestos do operador de telégrafo, de Thomas Edison diante do seu gramofone e de um ouvinte em face ao seu aparelho de som high fidelity, embora se realizassem em contextos históricos particulares; embora também estivessem implicados com a dimensão subjetiva; podiam ser colocados em perspectiva pela forma como a eficácia da experiência auditiva estava inexoravelmente condicionada à disposição daquilo que Marcel Mauss entende como o primeiro e mais natural objeto técnico: o corpo. Ao atar conceitos como fios soltos – gestos, eficácia, técnica, corpo –, o filósofo argentino deles fez luz: Rituais da percepção!, sentenciou.

    Fig. 1 – Operador de telégrafo em um trem. Fonte: STERNE, Jonathan. The audible past: cultural origins of sound reproduction. Durhan: Duke University Press, 2003. p.159.

    Fig. 2 – Anúncio mostra ouvinte diante de um fonógrafo. Fonte: Revista Gramophone, edição de dezembro de 1923.

    Fig. 3 – Anúncio de sistem de som estéreo. Fonte: Fonte: Hi-Fi Magazine. Fevereiro de 1958. pp.50-51.

    O brado do também professor da Universidad Nacional de Salta trazia consigo o timbre de uma outra voz, a do filósofo tcheco sobre o qual então nos debruçávamos. Para Flusser, "A nova magia é ritualização (grifo nosso) de programas visando programar seus receptores para um comportamento mágico programado". A força da rubrica rituais da percepção, portanto, não se dava exatamente no âmbito de uma suposta originalidade conceitual, mas no seu potencial de reunir, em torno de si, um conjunto bastante heteróclito de problemas contemporâneos. Foi justamente no intuito de sedimentar um território comum para discutir tais questões que nasceu a ideia de realizar um colóquio.

    Este livro é uma síntese das atividades desenvolvidas durante o I Colóquio Sentidos e Tecnologias: Rituais da Percepção, realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF) em julho de 2017, com o apoio do CNPq e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFF. Ao longo de quatro dias, reunimos um grupo interdisciplinar de pesquisadores das áreas de Letras, Filosofia, Comunicação, Artes e Antropologia para discutir sobre as implicações estéticas e políticas dos modos contemporâneos de agenciamento da percepção e construção de subjetividades. Embora a emergência desse problema já se configure desde os estudos do impacto da modernidade sobre os modos de existência – o que alça Walter Benjamin à figura de decano nessa seara –, o desenvolvimento das tecnologias digitais, da portabilidade dos dispositivos técnicos e da proliferação de novas modalidades de comunicação de massa, em curso desde o início dos anos 1980, vem demandando a formulação de novos problemas, tais como: em que medida os sentidos, como a visão e a audição, estão radicalmente inscritos em um processo histórico de construção? (Jonathan Crary; Jonathan Sterne); quais são as implicações éticas e políticas da institucionalização, na modernidade, de mecanismos de controle e administração do ciclo biológico dos corpos e das populações? (Michel Foucault); que operações analíticas nos permitiriam compreender os modos como a dimensão material das formas comunicacionais influi sobre o próprio processo de construção de sentidos? (Hans Ulrich Gumbrecht); de que modo o estudo das condições materiais e intelectuais de produção de informação revelam como as próprias infraestruturas técnicas que possibilitam nosso discurso se inscrevem sobre a nossa consciência? (Friedrich Kittler; Vilém Flusser); o que as imagens realmente querem? Qual é a lógica que as constitui? O que exatamente media o regime daquilo que se faz visível? (W.T.J. Mitchell; Gottfried Boehm; Hans Belting); em que medida os objetos técnicos e as subjetividades neles inscritas são expressões de agenciamentos sociais ritualizados dentro de uma lógica capitalista? (Deleuze e Guattari).

    Rituais da percepção se revela, como os artigos deste livro visam a mostrar, como um termo de vocação antropofágica, com habilidade e voracidade para assimilar criticamente um conjunto bastante diverso de temas: da construção de ambiências no cinema de Harry Kümel (Erick Felinto) à relação entre ritmo, imagem e pensamento na poesia de Emily Dickinson (Adalberto Müller); do problema do caráter medial das imagens (Roberto Rubio) à articulação entre memória e performance nas cantigas do Ceilão (Kenneth David Jackson); da dimensão política da imagem técnica na construção de subjetividades (Yamila Volnovich) ao papel da própria tecnologia no processo de dessubjetivação do indivíduo (Guilherme Foscolo); da relevância do princípio composicional do livro como aspecto gerador de sentido (Diana Klinger) às intercessões entre texto, som e performance na poesia e música contemporâneas chilenas (Fernando Pérez Villalón). Até mesmo análises da dimensão simbólica dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e do festival dos Bois-Bumbás de Parintins, no Amazonas (Maria Laura Cavalcanti) se oferecem ao domínio dos rituais da percepção, pois o que essa miríade de perspectivas revela, ao fim e ao cabo, é a ampla plasticidade desse termo, que, refratário a conceituações e à própria designação conceito, se constitui como uma espécie de campo epistêmico; como um locus de operações e atitudes críticas que, embora heterogêneas, são dirigidas a um problema comum: a reflexão sobre as implicações da relação entre técnica e percepção nos campos da produção estética, da construção de subjetividades e das práticas sociais e culturais.

    I Colóquio Sentidos e Tecnologias: Rituais da Percepção teve também por objetivo colocar em curso um outro rito, o de internacionalização das universidades brasileiras, por meio da criação da Red Latinoamericana de Prácticas y Medios de la Imagen (https://www.imagenlat.org), que hoje reúne pesquisadores do Brasil (UFF, UFRJ, UERJ, UFSB, UFGD, CES/JF), da Argentina (UNSa, UBA, UNA), do Chile (UAH, UACh) e conta com interlocutores nos EUA, na Alemanha e na Espanha. Nesse sentido, agradecemos a dois colaboradores ibéricos, Ana García Varas, da Universidad de Saragoza, e Sergio Martínez Luna, da Universidad Carlos III de Madrid, que enriqueceram este livro com os seus respectivos textos.

    Um ritual, como a leitura deste livro colocará em evidência, é um ato coletivo de crença. Dentro dessa perspectiva, é fundamental agradecer a todos aqueles que acreditaram nesse projeto, que a ele deram suas inestimáveis contribuições: Elisa Duque, Denílson Lopes, Baruc Martins, Paulo Custódio de Oliveira, Santiago Álvarez, Pedro Drumond, Laura Navallo, Isabela Abreu, Marcos Arraes, Carolina Leal, Lucas Murari, Sayd Mansur, Leonardo da Silva, Naiana Amorim, Santiago Godoy, Sabrina Nascimento, Gonzalo Morales, María Jesús Schultz e o grupo de monitores do curso de Letras da UFF que gentilmente nos auxiliou ao longo do evento. Reiteramos, uma vez mais, nosso agradecimento ao CNPq, que oportunizou a realização deste rito voltado à celebração da potência do pensamento. E, at last but not least, nossa especial gratidão é dirigida a Adalberto Müller, fiador espontâneo deste projeto; pajé-mor deste ritual.

    Alex Martoni

    Rituais da percepção: construções políticas do sensível

    Hernán Ulm

    Da percepção como um ritual

    Todo esto no son sino aproximaciones al tema. Estando en el hospital tuve una especie de revelación. Estaba enfermo en Nueva York y me preguntaba dónde era que yo había visto andar a las mujeres como a mis enfermeras. Por fin me di cuenta que era en el cine. Cuando volví a Francia me di cuenta, sobre todo en París, de lo frecuente que era esa forma de andar; las chicas eran francesas pero andaban del mismo modo. La moda de andar americana nos estaba llegando a través del cine. Me encontraba, pues, ante una idea que se podía generalizar. La posición de los brazos y manos mientras se anda constituye una idiosincrasia social y no es sólo el resultado de no sé qué movimientos y mecanismos puramente individuales, casi enteramente físicos.

    MAUSS, Marcel; Técnicas y movimientos corporales, en Sociología y antropología; Madrid: Tecnos; 1979; p. 339 (o texto, publicado em 1936, remete a uma palestra ministrada em 1934).

    Segundo um lugar comum do pensamento contemporâneo, não é possível nos confrontamos às questões políticas sem considerarmos, ao mesmo tempo, as questões estéticas que elas pressupõem. Por isso, há algum tempo, tento pensar o território do sensível – no sentido deleuziano: um território feito de vetores de clausura tanto como de linhas de fuga e um sensível composto de afetos e perceptos – analisando, através da fórmula rituais da percepção, os processos pelos quais a unidade perceptiva é construída no interior de diferentes agenciamentos sociotécnicos. Procuro salientar, assim, que um agenciamento se expressa por meio de um jogo de forças que disputam por aquilo que consideramos o perceptível.

    Nesse sentido, a percepção, longe de ser natural ou inocente ou pura, é resultado da submissão (consciente ou inconsciente) a um conjunto de regras de caráter coletivo que define o que, para cada agenciamento, pode ou não ser percebido (não há, deste modo, percepção privada). Esses conjuntos de regras (discursivas e não-discursivas, de caráter prático e que tem por finalidade a produção de um sistema de crença intersubjetivamente compartilhada) constituem um ritual (segundo o pensamento de Marcel Mauss). O conceito de ritual, restrito inicialmente à análise do sagrado e do religioso, foi relido na antropologia contemporânea, sob a perspectiva complementar do performativo e da performance, expandindo os seus limites para abranger todo tipo de condutas regidas por um sistema de regras que produzem efeitos imanentes a elas mesmas: desse modo, um processo ritual não é verdadeiro ou falso por relação a alguma coisa exterior a ele (por relação a objetos que ele teria de capturar ou configurar), senão eficaz ou ineficaz (bem ou mal sucedido) em relação àqueles objetos e (às condutas em relação a eles) que as próprias regras concebem. É a própria imanência que constrói um horizonte comum de sentido. Assim, seguindo esse modelo, quero propor que a percepção pode ser considerada como o efeito de um processo ritual que produz uma sensibilidade comum: somente quando se aceita o caráter performativo das regras que organizam o sensível, alguma coisa aparece à percepção e, apenas na medida em que alguma coisa aparece, o processo ritual resulta eficaz na produção da percepção.

    Só na medida em que acreditamos na força performativa das regras é que pertencemos à comunidade sensível que o próprio processo produz. Assim, o corpo próprio (como unidade sensível de nós mesmos) é efeito performático das regras: apenas como performance bem-sucedida o corpo pode ser reconhecido como tal (ou seja, o efeito performático e a performance mais marcantes dos rituais da percepção são aqueles pelos quais, ao mesmo tempo em que se cria uma comunidade, fornece-se um modelo de subjetividade para os agentes que participam dela). Dito de outro modo, nossos corpos (e o mundo no qual há corpos), sendo apenas sem órgãos ou desorganizados, têm que ser construídos cada vez por algum agenciamento de acordo com o ritual que lhe corresponde. Nessa medida, um agenciamento pode se descompor analiticamente a partir das regras dos rituais da percepção que compõem a sensibilidade. Se, parafraseando Foucault, as regras organizam as tensões em conflito que produzem modos de subjetividade, um ritual permite estudar o conjunto de forças em disputa na constituição do corpo sensível (atendendo a todas as metáforas que se enunciam nos discursos políticos e sociais). Assim, na medida em que se define o que pode aparecer, um ritual desenha também a fronteira do que não poderá aparecer na ordem do corpo comunitário: corpos abjetos, no dizer de Judith Butler, que não fazem parte do que se considera digno de ser percebido.

    Como o indica Déotte (La época de los aparatos, 2003), no modo de aparecer estão em questão as dignidades do que aparece e do que não aparece: o que não segue as regras, o que não observa o ritual, será indigno de aparecer e ficará fora do percebido (nem sequer terá a aparência sutil das sombras e dos fantasmas). Por sua vez, uma mudança na ordem das regras faz com que a percepção (e a crença no mundo sensível que nela se organizava) entre em crise reclamando um esforço por restaurar as condições do perceptível, seja mediante uma exigência maior na observância às regras do ritual perceptivo, seja pela invenção de novas regras e, assim, de um novo ritual da percepção. A crise pode dizer respeito à insatisfação dos agentes diante das crenças que o ritual instituía ou à incapacidade das regras para salvar alguma incongruência do perceptível decorrente de um conflito na ordem do aparecer; ou, enfim, a crise também pode ser sentida como esgotamento das crenças que eram construídas pelo ritual: atingindo os modos como alguma coisa aparece no horizonte do perceptível e os modelos de subjetividade que esboçam o ritual. Resumindo, essas mudanças têm como resultado uma mutação na ordem do sensível, dos afetos e perceptos e, por isso, dos modos de nos constituir legitimamente como subjetividades. Por isso, há sempre uma incomensurabilidade, uma descontinuidade entre agenciamentos, de acordo com o ritual da percepção de que se trate. Nesse sentido, podemos fazer uma história (ou melhor, uma genealogia) do presente analisando nossos próprios rituais perceptivos. Há um ritual digital da percepção? O que é uma percepção no interior dos processos técnicos de produção de imagens? E que tipo de subjetividade aparece como efeito desses rituais tecnológicos de produção da percepção? Seria o nosso presente analisável em termos de rituais da percepção disjunta, nos quais os sentidos – longe de concorrerem numa unidade sensível, longe de construírem o corpo como unidade sensório-motriz, mantêm-se no afastamento indefinido do que não tem ponto de convergência, um regime da heterogeneidade dos sentidos e do sentido pelos sentidos, um regime em que o que olhamos, o que dizemos, o que ouvimos o que cheiramos e o que tateamos estão submetidos a regras intransferíveis? Um ritual que já havia sido diagnosticado pelas Correspondances de Baudelaire, pelo diletantismo de Huysman? Um ritual que exaspere as dessemelhanças dos sentidos? Rituais que repartem as disjunções entre imagens?

    E, na medida em que os rituais da percepção organizam as tensões e os conflitos que atravessam um agenciamento, o ato de se afastar das regras – caso isso seja possível – teria como resultado se voltar imperceptível – agora no sentido deleuziano e guattariano do conceito? Ou, como o disse Foucault, poderíamos atingir as forças de subjetivação que atravessam todo agenciamento ou dispositivo nos apropriando de suas regras? Um devir imperceptível do corpo diante das formas de sujeição que poderia ser atingido por meio da estética de si, ou das artes como trabalho dos afetos e dos perceptos puros contra os efeitos de normalização do senso comum? Não seria que, se os rituais definem os modos reconhecidos das subjetividades, estas, por sua vez, têm um devir para além daqueles rituais? E, ainda, a partir de qual elemento analisar esses rituais, sem abdicar da imanência, fugindo de suas sujeições?

    Os rituais da percepção: entre a arte e a técnica

    Hay efectos estéticos de prácticas sociales y rituales que pueden ser más consistentes que muchas producciones de arte contemporáneo

    Justo Pastor Mellado em http://justopastorvalparaiso.blogspot.com.ar/

    Em Antropologia da performance, Victor Turner sustenta que a insuficiência do estruturalismo, evidenciada na segunda metade do século XX, foi decorrente do obscurecimento do modelo renascentista segundo o qual no interior da moldura do quadro-janela aparece o perceptível como espacialização (o espaço, vazio e homogêneo, assegura o aparecer e o caráter intercambiável do que aparece – condição que se repete cada vez que se nos exige que apresentemos o marco conceptual da pesquisa). Assim, a estrutura (como a quadrícula da representação do Renascimento) garante a ordem de todas as relações diferenciais que constituem o espaço social, determinando o aqui e o agora de qualquer fenômeno. Fora da quadrícula, o imperceptível, o irrepresentável. Tal epistemologia do espaço teria impedido pensar as relações sociais como processos se compondo no tempo (ou, apenas teria concebido o tempo sob o modelo geral da espacialização): a proposta de Turner, a partir da noção de dramatização (e das fases que constituem o drama), tenta perceber os fenômenos sociais como processos se reconstituindo incessantemente no tempo.

    O modelo perceptivo renascentista entra em crise na medida em que, desde finais do século XVIII a unidade espaço-temporal da percepção explode se desagregando e fragmentando o sensível em estilhaços cuja unidade não pode ser reconstruída (o fragmentário, antes de ser uma opção filosófico-literária, é a condição da percepção contemporânea). A suspensão da narração (indicada por Benjamin de modo complementar ao declínio da aura) era decorrente, segundo o filósofo alemão, da fratura do aqui e agora como unidade espaço-temporal. Benjamin diagnostica, desse modo, a emergência de uma nova percepção que estaria marcada por suas disjunções. Num livro central para este ensaio, Jonathan Crary mostra as mudanças que aconteceram no âmbito da percepção no final do século XVIII e que tiveram como efeito a mutação do espectador para observador, salientando os limites da câmera obscura como modelo geral da percepção clássica. Roger Chartier analisou as mudanças decorrentes das transformações do objeto livro como tecnologia de comunicação ao longo da história, tanto como das práticas de leitura que modificavam o sentido geral do lido; Flusser, por sua vez, mostrou a incomensurabilidade das formas de percepção espaço-temporais, tomando como eixo de análise as mutações espaço-temporais ocorridas entre as imagens analógicas, a escrita, a fotografia e os meios digitais na produção de subjetividade.

    Partindo desses exemplos, gostaria de propor que é possível considerar os objetos técnicos como efeitos dos rituais da percepção. O que é, no final das contas, um quadro renascentista (ou um livro, ou uma câmera fotográfica) senão o resultado de regras práticas (discursivas e não-discursivas) que ritualizam a sensibilidade e produzem (no caso do Renascimento, como o tem mostrado Michel Baxandall) uma percepção individuada. Basta que nos confrontemos com um quadro (para além do seu sentido artístico) ou que leiamos os textos de Alberti ou Leonardo, ou as aulas de Piero dela Francesca, dentre outros, para notar que a representação em perspectiva é uma ritualização da percepção que produz uma subjetividade individuada e interiorizada. Basta que nos confrontemos com um livro para ter uma percepção contínua do tempo como linearidade. Esses objetos técnicos não determinam, mas expressam as condições ritualizadas da percepção no interior de um agenciamento; e, de tal modo, os rituais da percepção se fazem analisáveis pelos objetos técnicos que os expressam.

    Desse modo, os agenciamentos podem ser diagnosticados de dois modos complementares: 1) pelo estudo dos objetos técnicos que permitem dar conta de uma percepção normalizada por um ritual a partir do qual uma comunidade se reconhece a si mesma e fornece modelos do aparecer. Esses objetos podem ser considerados como quase objetos-rituais (ou objetos quase-rituais), na medida em que fornecem um modelo de crença coletiva e de subjetividade; 2) Pela emergência de novos objetos e novas tecnicidades que, colocando em crise um ritual precedente, dramatizaram as incongruências sensíveis no interior de um agenciamento, que, ao longo dessa dramatização, aprofundam a brecha entre o que pode ou não ser já percebido. Desse modo, um conflito entre velhos e novos objetos poderia ser pensado também como um conflito na ordem do perceptível e como uma tentativa por restaurar as condutas e as ordens de crença (o que pode ser lido, por acaso, no texto de apresentação do daguerreótipo de François Arago).

    Essas duas modalidades (a percepção normalizada e as crise da percepção) podem ser analisadas pelo modo em que determinados objetos expressam modificações no modo de perceber o espaço e o tempo (da máquina fotográfica ao cinema e deste à tela do computador) e das metáforas a partir das quais esses objetos são apropriados na ordem do simbólico (ou deixam de fazer sentido tanto em metáforas e se apresentam como simples metais, como moedas sem valor): por acaso, as metáforas que indicam que alguns objetos têm memórias (e que definem se eles estão mortos ou vivos), ou aquelas outras que permitem a interconectividade em tempo real, on-line, ou, também, as metáforas por meio das quais nós poderíamos apagar a memória, resetar nossa vida, deletar amores perdidos, etc.

    Uma terceira opção permite pensar as linhas de fuga dentro desses rituais: definindo as artes como o trabalho do pensamento que interrompe os fluxos cotidianos da sensibilidade (esses fluxos que cada agenciamento normaliza, ritualizando-os). Podem-se analisar os modos historicamente variáveis da percepção pelas diversas formas em que o sensível resulta interrompido (para além da tradição acadêmica de considerar as obras de arte como portadoras de qualidades ou características submetidas a algum tipo de valoração mais ou menos idealizada, qualquer objeto ou ação produzindo tal interrupção da sensibilidade pode ser considerado como arte: eles mesmos são propiciadores de uma crise ou nos permitem analisar profundamente as condições do que se considera uma percepção normal num agenciamento dado). Nesse sentido, haveria um devir artístico dos objetos técnicos como um jogo de inversão das regras ou

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