Educação matemática crítica: A questão da democracia
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Sobre este e-book
O trabalho de Ole Skovsmose, entretanto, tem como centro a questão da democracia. O autor dessa obra nos alerta que se a perspectiva democrática não estiver presente na educação matemática, esta será apenas uma domesticadora do ser humano em uma sociedade cada vez mais impregnada de tecnologia. Ole Skovsmose propõe o trabalho com projetos - também conhecido como modelagem na educação matemática, a partir do trabalho inicialmente desenvolvido por Rodney Bassanezi - como uma possível saída para que a questão democrática se apresente na sala de aula. - Papirus Editora
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Educação matemática crítica - Ole Skovsmose
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1
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA VERSUS EDUCAÇÃO CRÍTICA
[1]
marker Introdução
Várias vezes tem sido enfatizado que a educação matemática – entendida como pesquisa acerca do processo educacional matemático – tem uma relação complicada com outros assuntos de pesquisa. No que se segue, meu uso do conceito educação matemática
deverá, em alguns casos, ser identificado com o conceito alemão Didaktik der Mathematik, em outros, simplesmente se refere ao processo educacional da matemática.
O desenvolvimento da educação matemática como uma disciplina científica, iniciado no fim dos anos 60, tem conduzido às seguintes questões: 1) quais os objetivos da disciplina?; 2) que métodos científicos deveriam ser usados?; 3) que relações tem esse novo campo com outras disciplinas científicas mais estabelecidas?
Anna Zofia Krygowska (1971, p. 118) descreveu precisamente esses problemas:
A Didática da Matemática está se desenvolvendo como uma típica disciplina de fronteira
. Toda disciplina independente é caracterizada pela especificidade de seus problemas, de sua linguagem e de seu método de pesquisa. Na sua primeira fase de desenvolvimento, o tema de fronteira tem um status vago. Em particular, seus métodos de pesquisa podem ser bastante heterogêneos. Por um lado, a educação matemática desenvolve-se na fronteira da matemática, de sua filosofia e de sua história; por outro, na fronteira da pedagogia e da psicologia.
Em seguida, discutirei um ponto relacionado à questão 3: examinarei as conexões entre educação matemática e teorias educacionais em geral. Na minha opinião, essas conexões parecem ser bastante seletivas. Um ramo importante da educação geral, entrelaçado com uma importante escola de epistemologia e filosofia, é dificilmente mencionado e não é conceituado na educação matemática (EM). Estou pensando na educação crítica (EC), na pedagogia crítica, e em ideias da teoria crítica.[2] E meus postulados básicos são os que se seguem:
(A) É necessário intensificar a interação entre a EM e a EC, para que a EM não se degenere em uma das maneiras mais importantes de socializar os estudantes em uma sociedade tecnológica e, ao mesmo tempo, destruir a possibilidade de se desenvolver uma atitude crítica em direção a essa sociedade tecnológica.
(B) É importante para a EC interagir com assuntos das ciências tecnológicas e, entre eles, a EM, para que a EC não seja dominada pelo desenvolvimento tecnológico e se torne uma teoria educacional sem importância e sem crítica.
Em seguida, vou me concentrar no postulado A, mas o postulado B deverá ser mantido em mente.[3]
marker Educação crítica
A EC tem várias fontes de inspiração. Existe uma forte associação com o entendimento de humanismo e sociedade de Karl Marx, especialmente como exposto pela Escola de Frankfurt[4] (ou teoria crítica). As figuras originadoras dessa escola foram Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Eles trabalharam no Institut für Sozialforschung em Frankfurt am Main; o Instituto foi fundado em 1923 e, entre 1923 e 1929, Carl Grünberg o dirigiu. Sucedeu-o Horkheimer, que, em seu discurso inaugural (1931), apontou três temas que caracterizariam a Escola de Frankfurt:
O primeiro (...) sugere a necessidade de reespecificação das grandes questões filosóficas
em um programa de pesquisa interdisciplinar. O segundo tema, mais implícito, mas tornado mais claro em outros ensaios, é uma proposta de rejeição do marxismo ortodoxo e sua substituição por um entendimento reconstruído do projeto de Marx. O terceiro enfatiza a necessidade de uma teoria social que explique o conjunto de interconexões (mediações) que torna possível a reprodução e transformação da sociedade, da economia, da cultura e da consciência. (Held 1980, p. 33)
Quando os nazistas tomaram o poder na Alemanha, a direção do instituto continuou seu trabalho fora daquele país, especialmente nos EUA. Depois da guerra, Adorno e Horkheimer retornaram, mas Marcuse permaneceu nos EUA. Mais tarde, Jürgen Habermas tornou-se a figura dominante da escola.[5]
Outra fonte de inspiração para a EC, mas muito menos importante, é encontrada na Geisteswissenchaftliche Pädagogik. De um modo fundamental, essa teoria educacional é inspirada pela hermenêutica, como no trabalho de Wilhelm Dilthey.[6] Outros nomes importantes na Geisteswissenchaftliche Pädagogik são Eduard Spranger, Theodor Litt e Herman Nohl. Essa pedagogia dominou as discussões educacionais na Alemanha entre as duas guerras mundiais e novamente depois da Segunda Guerra Mundial.[7] Mais tarde, Wolfgang Klafki, pertencente a essa escola, também mostra inspiração vinda da Escola de Frankfurt.
Alguns dos principais nomes no desenvolvimento teórico inicial da EC são Herwig Blankertz, Wolfgang Lempert (1971), Klaus Mollenhauer (1973) e também Wolfgang Klafki (1971). Basicamente, tentaram desenvolver a pedagogia como uma disciplina de investigação praxiológica, como uma reação à tradição empírico-positivista na pedagogia. Por exemplo, Blankertz tenta relacionar a pedagogia à teoria de interesses de Habermas. Problemas similares são discutidos por Klafki (1971).
Também Oskar Negt (1964) revela uma relação próxima à teoria crítica em sua base teórica, mas dá à EC uma fundamentação mais independente e original quando leva em consideração um espectro largo de aspectos políticos, econômicos e psicológicos. Negt não limita o desenvolvimento da EC primariamente à filosofia, uma tendência caracterizada na primeira fase da EC. Na Escandinávia, a versão de EC de Negt foi discutida em detalhes e desenvolvida por Knud Illeris.[8]
marker Principais pontos da educação crítica
É naturalmente impossível resumir as ideias da EC em poucas afirmações. Tentarei, no entanto, embora possa criar entendimentos errôneos.
Para a EC, a relação entre professor e alunos tem um papel importante. Vários tipos de relação são possíveis, mas a EC enfatiza que um princípio importante é que os parceiros sejam iguais. Paulo Freire tem discutido a relação professor-alunos em conexão com o que chama de pedagogia emancipadora
:
Através do diálogo, o professor-dos-estudantes e os estudantes-do-professor se desfazem e um novo termo emerge; professor-estudante com estudantes-professores. O professor não é mais meramente o o-que-ensina, mas alguém a quem também se ensina no diálogo com os estudantes, os quais, por sua vez, enquanto estão ensinando, também aprendem. Eles se tornam conjuntamente responsáveis por um processo no qual todos crescem. (Freire 1972a, p. 53)
As ideias relativas ao diálogo e à relação estudante-professor são desenvolvidas do ponto de vista geral de que a educação deve fazer parte de um processo de democratização. Se queremos desenvolver uma atitude democrática por meio da educação, a educação como relação social não deve conter aspectos fundamentalmente não democráticos. É inaceitável que o professor (apenas) tenha um papel decisivo e prescritivo. Em vez disso, o processo educacional deve ser entendido como um diálogo.
Sumariamente, podemos especificar o primeiro ponto-chave da EC como envolvimento dos estudantes no controle do processo educacional. Ou, em outras palavras, na EC, é atribuída aos estudantes (e aos professores) uma competência crítica. Essa competência é atribuída principalmente aos estudantes por dois motivos. Primeiro, por razões de fato, uma vez que os estudantes, embora suas experiências sejam falhas, fragmentárias etc., também têm uma experiência geral, que, no diálogo com o professor, permite-lhes identificar assuntos relevantes para o processo educacional; relevantes tanto em relação aos interesses imediatos dos estudantes quanto em relação à perspectiva geral do processo educacional. Em segundo lugar, por razões de princípio, o de que, se uma educação pretende desenvolver uma competência crítica, tal competência não pode ser imposta aos estudantes, deve, sim, ser desenvolvida com base na capacidade já existente.
Um processo educacional envolve pessoas (estudantes, professores), mas naturalmente também um assunto (o currículo). O próximo ponto-chave da EC é a consideração crítica de conteúdos e outros aspectos. Formulado de outra maneira: na EC, ambos, estudantes e professor, devem estabelecer uma distância crítica do conteúdo da educação. Em alemão, esse termo-chave é Fachkritik; a tradução currículo crítico
talvez possa ser usada.
Em um currículo crítico, colocamos princípios aparentemente objetivos e neutros para a estruturação de uma nova perspectiva, pois buscamos revelar tais princípios como algo carregado de valores. Questões relacionadas com um currículo crítico ligam-se ao seguinte:
1) A aplicabilidade do assunto: quem o usa? Onde é usado? Que tipos de qualificação são desenvolvidos na EM?
2) Os interesses por detrás do assunto: que interesses formadores de conhecimento estão conectados a esse assunto?
3) Os pressupostos por detrás do assunto: que questões e que problemas geraram os conceitos e os resultados na matemática? Que contextos têm promovido e controlado o desenvolvimento?
4) As funções do assunto: que possíveis funções sociais poderia ter o assunto? Essa questão não se remete primariamente às aplicações possíveis, mas à função implícita de uma EM nas atitudes relacionadas a questões tecnológicas, nas atitudes dos estudantes em relação a suas próprias capacidades etc.
5) As limitações do assunto: em quais áreas e em relação a que questões esse assunto não tem qualquer relevância?
O último ponto-chave de EC relaciona-se a condições fora do processo educacional. Poderia ser formulado como o direcionamento do processo de ensino-aprendizagem a problemas. O essencial é que o processo educacional está relacionado a problemas existentes fora do universo educacional. Além disso, vários critérios podem ser usados para selecionar esses problemas. Os dois critérios fundamentais são os seguintes. O subjetivo: o problema deve ser concebido como relevante na perspectiva dos estudantes, deve ser possível enquadrar e definir o problema em termos próximos das experiências e do quadro teórico dos estudantes. E o objetivo: o problema deve ter uma relação próxima com problemas sociais objetivamente existentes.
Este último ponto-chave põe em perspectiva os pontos prévios relativos à competência crítica e à distância crítica. O direcionamento a problemas implica que a dimensão do engajamento crítico deve fazer parte da educação.
marker Alternativas na educação matemática
A educação matemática inclui várias ideias muito diferentes, e até mesmo incoerentes, sobre matemática e educação. Para tornar a discussão tão precisa quanto possível, distinguirei três alternativas em EM: 1) estruturalismo; 2) pragmatismo; e 3) orientaçãoao-processo.[9] Mais que isso, mostrarei a extensa contradição entre EM, conforme desenvolvida pelas alternativas (1), (2) e (3) citadas anteriormente, e a EC.
O estruturalismo é caracterizado pelas seguintes afirmações: a essência da matemática pode ser determinada cristalizando conceitos fundamentais por meio da análise lógica das teorias matemáticas existentes; esses conceitos fundamentais podem ser transmitidos para o aprendiz por meio de concretizações apropriadas de acordo com o potencial epistemológico da criança. O ponto de vista estrutural é caracterizado por uma ideia sobre matemática (associada ao nome de Nicolas Bourbaki), uma ideia sobre comunicação e transformação educacional (Jerome S. Bruner) e uma ideia sobre epistemologia (Jean Piaget).
Os pressupostos do estruturalismo exemplificam uma negação quase completa da EC, fato que não parece ter afetado seus proponentes de maneira alguma. Ilustrarei isso com uma citação de Jean Dieudonné (1973, p. 19):
(...) se as pessoas responsáveis por construir o currículo escolar pudessem ser persuadidas a consultar matemáticos profissionais a fim de entender a relevância de suas decisões para a ciência como é praticada na universidade e além, poderíamos ainda testemunhar, um dia, algum ensino sensato de matemática do jardim de infância à universidade.
Aqui, temos uma negação explícita da ideia de competência crítica, e implicitamente também das ideias sobre distância crítica e engajamento crítico.
O estruturalismo mantém uma relação próxima à tradição em pedagogia: Ensinar as disciplinas!
Isso poderia ser interpretado tanto como um princípio que governa a seleção dos assuntos escolares quanto um princípio que governa a apresentação do assunto. Básica nessa tradição é a ideia de que o conhecimento dos estudantes tem de ser construído de acordo com estruturas e conteúdos identificados independentemente dos estudantes.
De acordo com a tendência pragmática em EM, a essência da matemática encontra-se em suas aplicações e, portanto, de um certo modo, fora da matemática. No processo de educação, é, então, extremamente importante ilustrar as várias maneiras de a matemática ser útil. Essa tendência pode ser entendida em sentido amplo, e muitos argumentos foram apresentados em apoio a uma EM dirigida a aplicações.[10] Essa ampla tendência pragmática pode ser interpretada como uma reação ao estruturalismo dos anos 60.
No entanto, a tendência pragmática pode ser também interpretada de maneira muito mais específica. No artigo Mathematics, applicable versus pure-and-applied
("Matemática, aplicável versus pura-e-aplicada), Christopher Ormell (1972a) enfatiza que o trabalho do
Projeto Matemática para o ensino médio realizado em Reading, na Inglaterra, está baseado em uma específica
filosofia prática da matemática, que ele relaciona com a filosofia de Charles Sanders Peirce, que observou:
A matemática é o estudo do que é verdadeiro em estados hipotéticos de