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Ressentir ou Afirmar? Perspectivas Nietzscheanas sobre a Dor
Ressentir ou Afirmar? Perspectivas Nietzscheanas sobre a Dor
Ressentir ou Afirmar? Perspectivas Nietzscheanas sobre a Dor
E-book190 páginas2 horas

Ressentir ou Afirmar? Perspectivas Nietzscheanas sobre a Dor

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Sobre este e-book

O livro Ressentir ou afirmar? Perspectivas Nietzscheanas sobre a dor analisa o sentido do sofrimento na condição humana a partir do pensamento de Friedrich Nietzsche, apresentando duas abordagens sobre como lidamos com essa questão. Segundo Nietzsche, algumas pessoas carregam em si a certeza de que viver bem é permanecer eliminando tudo que gere dano físico ou material. Também não aceitam a perda, porque para elas a felicidade não pode ser interrompida. Entretanto é exatamente nessas pessoas que melhor vemos a fuga do enfrentamento da vida como ela é, não sabendo lidar com o que de humano e vivo permanece em si, e se ressentem com o que recebem da vida. Já outras pessoas superam suas limitações pessoais, e da compreensão dessas superações são capazes de vencer suas dificuldades. Olham para elas e as transpõem. A dor é, para essas pessoas, passível de promover uma valorização da própria vida e daquilo que, por ventura, seja conquistado.

Mas por que nos diferenciamos no trato de questões tão humanas? O que leva uns ao ressentimento e outros à superação? Como abordamos a existência por perspectivas tão diferentes? Nesta obra a autora descreve, por meio das leituras de Nietzsche, os caminhos pelos quais podemos pensar em nós o sofrimento humano.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de out. de 2018
ISBN9788547313678
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    Ressentir ou Afirmar? Perspectivas Nietzscheanas sobre a Dor - Roberta Melo

    Melo

    SUMÁRIO

    CAPÍTULO 1:

    UMA LEITURA SOBRE A EXISTÊNCIA

    1.1 Para uma estética existencial 

    1.2 Razão formalizadora: Moral do senhor e Moral do escravo

    1.3 Niilismo: síndrome de declínio e potência ascendente 

    1.4 Para um alguém que vai além: transvaloração dos valores 

    1.5 Sofrimento – Um caminho para o reencontro consigo mesmo 

    1.6 Ressentimento: marca do último-homem 

    1.7 Onde está o homem da superação hoje? 

    1.8 Esquecendo para se potencializar 

    CAPÍTULO 2:

    O CORPO E A VONTADE DE POTÊNCIA

    2.1 O corpo e seus jogos de forças 

    2.2 Vontade: língua do corpo? 

    2.3 Consciência – a intérprete dos fluxos inconscientes 

    2.4 Consciência e Inconsciente: forças reativas e ativas 

    2.5 O mundo, a vida e a vontade de potência 

    2.6 Os valores e seus sintomas 

    CAPÍTULO 3:

    ÜBERMENSCHEN: O ARTISTA DA EXISTÊNCIA COTIDIANA

    3.1 A construção de uma alma aristocrática

    3.2 O Além-do-homem por Zaratustra 

    3.3 Tornar-se quem se é 

    CAPÍTULO 4:

    PARA OS QUE APRENDERAM A AMAR

    REFERÊNCIAS

    Capítulo 1

    Uma leitura sobre a existência

    1.1 Para uma estética existencial

    Porque nos consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos mais; essa é a lógica⁷. Essa frase escrita por Nietzsche em Ecce Homo representa bem a sua relação com a dor. Vivente em um corpo doente por muito anos, percebia que ao parar de lutar contra a doença, cedia lugar ao seu contrário – à saúde. Essa sua perspectiva sobre a doença pode ser ampliada para outros aspectos da vida – se há, para o ser humano, alguma intenção de possuir uma boa vida, precisa trabalhar para uma prática que chamaremos de afirmação da vida. Em linhas gerais, podemos entender essa afirmação como uma aceitação dela como ela é, ou seja, com dor, sofrimento, alegria, prazer, beleza, encantamento, tensão, ansiedade, raiva, amor, doçura, serenidade, angústia. Tudo isso compõe a existência humana e pode ser experimentado com a sobriedade e a sanidade de quem compreende que sentimentos estão aí para darem sentido à unicidade que é cada ser. É preciso dizer sim à vida em sua plenitude e, para compreendermos melhor essa interpretação da coisas, percorreremos neste capítulo um caminho muito próximo ao que Nietzsche percorreu. Nosso objetivo? Mostrar o que significa afirmar a vida!

    Para começar, é de suma importância a observação do fato de que o pensamento nietzscheano está em contrapartida a todos as filosofias (e religiões) que negam o mundo e a vida remetendo o homem a um além transcendente como resposta para as questões do presente. A criação de modelos de vida, de valores, do próprio conhecimento, estabelece formas fixas para o ethos humano, o que em linhas gerais poderia ser descrito como: a verdade está aqui, siga-me e será feliz. A condição humana para Nietzsche vai muito além dessas fórmulas (que poderíamos chamar de bem intencionadas) para tornar a vida mais tranquila e equilibrada. Segundo ele, somos animais não fixados, experimentadores de si e, por isso, nossa natureza não pode ser definida por nenhuma verdade suprassensível, senão pela própria experiência que guarda uma plasticidade inesgotável. Tomando para si a meta de conduzir o ser humano em direção à própria humanização, considera que todo mundo precisa reconhecer sua exclusividade. Precisa tornar-se senhor de si e, antes de tudo, despertar a reflexão e o discernimento pessoal indispensável para que [...] não percam de vista uma educação mais completa⁸.

    Ele propõe que cada um possa esculpir sua existência como uma obra de arte. Um povo, uma cultura é pensada por Nietzsche a partir do modelo de trabalho da arte – como atividade criadora de belas possibilidades de vida⁹. A vida, nesse sentido, deve ser pensada, desejada da mesma forma que o artista pensa e deseja sua obra, ou seja, deve-se empregar energia para produzir um objeto único. 

    Essa relação entre vida e arte é possível porque a arte pode ser o lugar de análise da vida. Ela pode afirmar a vida em seu conjunto ou reforçar apenas certos aspectos em detrimento de outros. Da mesma maneira, pode esconder muitos outros, tudo em razão da vida, da transfiguração do real. A arte pode tudo, pode até ser mais verdadeira que a história, já dizia Aristóteles. Em suma, ela pode nos libertar, ao passo que a dura e cotidiana experiência do real nos submete e nos diminui, porque nos enquadra e nos limita a um espaço e tempo bem específicos. 

    Pensando o homem então como uma exclusiva obra de arte, em que a vida é uma experiência estética, Nietzsche dá valor não mais ao conhecimento como doador de sentido, mas à criação. Percebe a vida como uma multiplicidade de formas generosas,

    [...] é artista e, como acontece em toda atividade artística, não visa a nada fora da própria atividade. Tal como o pintor que pinta por pintar e o músico que toca por tocar, a vida vive por viver¹⁰.

    A ideia é levar a vida sem se preocupar em dar a ela um sentido – este seria o sentido dela. Para Nietzsche, só como fenômeno estético, a existência e o mundo aparecem eternamente justificados¹¹. Com isso, substitui uma ótica moral sobre a vida para dar sentido à existência pela ótica de uma estética existencial. 

    Rosa Maria Dias esclarece que ele ousa pensar a arte na perspectiva da vida, ou seja, quando o homem faz arte, torna ele mesmo obra de arte. Para compreendermos o que ele quer dizer, é fundamental fazermos o mesmo retorno por ele feito em suas análises sobre os gregos antigos. A vida e a arte aqui são pensadas pelo olhar da Tragédia grega; e mais especificamente por dois impulsos artísticos da natureza definidos por Nietzsche como apolíneo e dionisíaco. As duas divindades gregas Apolo e Dioniso ganham dimensões muito particulares e são identificados como dois mundos da arte. São dois impulsos antagônicos que geram, inclusive, duas faculdades fundamentais no homem. O mundo da arte apolínea seria responsável pela imaginação figurativa, produtora das imagens, como a escultura, a pintura e parte da poesia. Já o mundo da arte dionisíaca ficaria com a potência emocional, que aparece na linguagem musical e na dança. Esses dois impulsos são reconhecidos na vida por meio de dois estados fisiológicos, o sonho e a embriaguez, e são condições necessárias para a produção de arte.

    Para criar, temos de um lado Apolo, deus do sonho, aquele que fez surgir o mundo do caos originário. Como princípio ordenador, domou as forças cegas da natureza submetendo-as a uma regra. Ele é símbolo de toda aparência, de toda energia plástica que se expressa em formas individuais – está nele o princípio de individuação, que permite, além da forma, gerar nas coisas contornos delimitantes, dando o sentido individual. Ele também impõe ao devir uma lei, uma medida, dando a tudo uma cadência própria.

    De outro lado temos Dioniso, deus do caos, da desmesura, da deformidade, da noite criadora do som, deus da música, arte que Nietzsche considera mãe de todas. Esse deus, nascido da fome e da dor, perseguido e dilacerado pelos deuses que lhe são hostis, renasce a cada primavera, cria e espalha alegria. As emoções dionisíacas podem ser encontradas diante de bebidas narcóticas ou diante dos instintos primaveris e gera em quem as sente a impressão de que todas as barreiras entre si e os outros estão rompidas.

    No comportamento humano, esses dois princípios naturais servem de parâmetros valorativos acerca do modo da ação humana e suas consequentes criações no âmbito da vida social. O impulso dionisíaco, negador de qualquer limite, conduz à exaltação, e o apolíneo, baseado em critérios de harmonia, à perfeição formal. Dentro da valoração dos dois princípios, Nietzsche contrapõe o espírito dionisíaco – espírito da vida à apolínea e mortífera razão. Enquanto esta nasce da fuga diante da imprevisibilidade dos eventos da existência real – que procura cristalizar com leis, regras e interpretações variadas –, o dionisíaco aceita a vida em todas as suas formas, compreendidos o caos, o acaso e a falta de significado. Logo, para Nietzsche, Dionísio e Apolo são respectivamente símbolos de vida e de morte, força vital e racionalidade, saúde e doença, instinto e intelecto, escuridão e luz, devir e imobilidade, embriaguez e sonho. Naturalmente desmedido, o impulso dionisíaco enquadrou-se na forma de expressão do apolíneo; este, por sua vez, adquiriu a mobilidade dionisíaca, posto que a sua rigidez poderia conduzir também a vida ao completo declínio. Em nós, tais princípios sobrevivem. Por um lado, há a aparência, a completude sexual, a esperteza, a capacidade de ser e fazer, de se tornar importante e de ser livre. E de outro há a pura razão, a conformação, a lucidez, a sobriedade, o respeito à ordem pública. Aspectos que se misturam e que, segundo Nietzsche, dão substrato para vivermos.

    Além de dar sentido à natureza, à arte e ao próprio ser humano, apolíneo e dionisíaco também atendem a perspectiva do sujeito afetado pelo fenômeno estético. Nietzsche nos lembra aqui do teatro trágico grego, que é definido por ele como mecanismo para suportar a existência. 

    Com a legitimação do teatro trágico, há uma mudança na perspectiva do grego sobre a vida e o mundo. A origem desse teatro está datada entre os séculos IV e V a.C. e teve por influência os cultos em homenagem ao deus Dioniso. Tais cultos eram realizados pelas bacantes (sacerdotisas de Dioniso) que se manifestavam em cortejos entre homens fantasiados de sátiros (criaturas míticas, meio homem, meio bode, que acompanharam Dioniso em sua passagem pela terra na divulgação do preparo do vinho) e mulheres que, em transe coletivo, dançavam, cantavam e tocavam tamborins em sua honra. Nietzsche defende a tese da relação entre a arte do teatro trágico e esse culto satírico a Dioniso. Explica Roberto Machado que:

    [...] o sátiro, ser natural, fictício, fingido, era para o grego a autêntica verdade da natureza, ‘a natureza intocada do conhecimento’, a ‘imagem e o reflexo da natureza em seus impulsos mais fortes’, ‘anunciador da sabedoria do âmago mais profundo da natureza’ […]. Ora, enunciando a verdadeira sabedoria dionisíaca, ele põe em questão a ilusão da cultura apolínea, que reduz o homem civilizado a uma caricatura mentirosa. Assim, o sátiro está para o homem civilizado como a música dionisíaca está para a civilização. E é exatamente no culto dionisíaco dos cortejos embriagados, extáticos das bacantes que o grego se vê transformado, melhor ainda, encantado em sátiro: sob o efeito de tais disposições de ânimo e cognições exulta a turba entusiasmada dos servidores de Dioniso; e o poder dessas disposições e cognições os transforma diante de seus próprios olhos, de modo que vêem a si mesmos como se fossem gênios da natureza restaurados, como sátiros.¹²

    De acordo com Nietzsche, a arte trágica nasce dessa multidão encantada por meio da imitação realizada pelo artista. É assim que chega o momento em que o coro passa a ser construído e apresenta-se em um falso estado natural, com pseudo-seres naturais. O culto reproduz, imita, espelha, simboliza o fenômeno da embriaguez dionisíaca responsável pelo aniquilamento da individualidade e dos princípios apolíneos da medida e da consciência de si. 

    Dentre os cantos que ocorriam nas celebrações dionisíacas, destacava-se o ditirambo – um canto lírico composto por elementos alegres e dolorosos que, além de narrar os momentos tristes da passagem de Dioniso pelo mundo mortal e seu posterior desaparecimento, exprimia, de forma exuberante, uma quase intimidade dos homens com a divindade que lhes possibilitara chegar ao êxtase. Foi desse canto, em coro, que se definiu o trágico e dele resultou a Tragédia, que nasce do espírito da música, da possessão causada por ela. É somente a partir da música que a imitação do dionisíaco torna-se possível. 

    A Tragédia, arte em que a verdade é simbolizada, expressa a verdade dionisíaca por meio da aparência, da ilusão apolínea da beleza. A imitação da embriaguez pelos artistas dionisíacos gerava uma legitimação da existência de uma forma mais duradoura do que a que se tornou possível com a transfiguração apolínea do período homérico. Com o teatro trágico havia um poder natural de cura contra o impulso dionisíaco bárbaro que destruía todos os valores gregos de civilização. A Tragédia proporcionava aos gregos a possibilidade de experimentar o dionisíaco e voltar para o dia a dia, sem a visão pessimista da vida. Expõe sim o abismo, as dores do mundo, mas ao mesmo tempo protege, salva e cura as consequências destrutivas dessa exposição. Ao demonstrar o caráter de transformação existente no mundo e a finitude inerente a todas as coisas, a Tragédia, ao invés de propor ao homem a resignação moral e a renúncia ao agir, incentivaria o espectador à afirmação da vida mesmo nas condições mais adversas. Ensina-o a transformar o horrível em sublime.

    A Tragédia tinha por essência uma espécie de tônico existencial, que reforçava o ânimo do espectador para a vida, para a criatividade contínua, para um novo recomeço da existência, mediante a alegria despertada na compreensão da eternidade da vida. Não havia uma relação com ideais moralizantes, não se disseminava a ideia de que sofrer é punição divina sobre um erro cometido dentro de uma ordem cósmica;

    [...] pelo contrário, [...] a dor era o símbolo que explicitava o valor imanente da vida, mesmo diante das mais atrozes adversidades vivenciadas pela individualidade no seu processo constitutivo, nas suas experiências cotidianas.¹³

    O objetivo da Tragédia estava em uma espécie de arrebatamento do espectador diante da exibição dos terríveis sofrimentos do herói, que motivava o desabrochar de estados de grande exaltação jubilosa. Mas de que maneira esse processo se realizava para os gregos? Por meio do consolo metafísico, conceito elaborado por Nietzsche como meio de explicar o fenômeno existencial que ocorria quando o espectador do trágico, ao visualizar o padecimento do herói, percebia que a vida, apesar das suas contínuas transformações, permanecia ilesa em seu processo criativo. Afinal, para além da expressão singularizada pela individuação que se extinguia por meio do evento da morte, há ainda o homem, a existência, e mesmo a condição humana como um todo permanecendo indestrutíveis. Isso porque o centro engendrador do conjunto das formas de

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