O mundo desconhecido das nossas crianças
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O mundo desconhecido das nossas crianças - Egídio Santanchè
TÍTULOS DOS ORIGINAIS: Il mondo sconosciuto dei nostri figli
© Città Nuova Editrice - Roma - 1986
I problemi dei nostri figli
© Città Nuova Editrice - Roma - 1990
TRADUÇÃO: João Batista Florentino
Theresa Christina Stummer
© Editora Cidade Nova - São Paulo - 1994
REVISÃO: Ignez Maria Bordin
PROJETO GRÁFICO: Lumbudi T. Bertin
CONVERSÃO PARA EPUB: Cláritas Comunicação
FOTO CAPA: Stocxpert
ISBN 978-85-7821-100-4
(Originais: 88-311-7227-1
88-311-7254-9)
3ª edição: 2009
Editora Cidade Nova
Rua José Ernesto Tozzi, 198
Vargem Grande Paulista-SP– Brasil
CEP 06730-000 – Telefax (011) 4158.2252
www.cidadenova.org.br
editoria@cidadenova.org.br
Sumário
Apresentação da edição brasileira
Ano da criança?
Faça-me o favor...
Duas palavrinhas sobre os meios de comunicação
Meu filho e a televisão são uma coisa só
O grilo falante
Tranque o monstro no armário
Nada de novo debaixo do sol!
Mamãe, joãozinho e o super-herói
Escola e ambiente social
Ansiedade? Não, obrigada!
Aconselhar? Sim, mas não exagere
Mas a galinha sabe?
Carlinhos e a professora rejeitada
Uma consideração obrigatória
O invisível
A presença
dos pais
A parte do leão
As três perguntas de sempre
O prato voador
Como nós éramos
Amanhã vai nevar!
Caim e Abel
Não, não é o ciúme
Pai e mãe: há lugar para todos
Afagos ou palmadas?
O domínio do corpo
A supermãe
As flechas caídas
Cuidado com os vasos não-comunicantes!
Aninha informatizada
Não! A cama dos pais, não!
Os circuitos virtuosos
Meus filhos perderam a avó
Ele se divorcia, ela se divorcia. E os filhos?
E o pai reapareceu
As depressões
As fábulas
Auto-erotismo na adolescência
Tempos difíceis para as crianças...
Quem tem medo do lobo mau?
O menino Jesus e maior compromisso
O amigo de cristiano e os imprudentes filhotes de águia
O bom Chiquinho e seus coleguinhas
Ainda sobre o bom Chiquinho
A contestadora disputada
Frutos maduros, ou melhor, em desenvolvimento
Chega de paisagens lunares
Ficar com os avós? Sim e não
A revanche do gladiador
O diálogo continua sempre
APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA
O mundo desconhecido das nossas crianças. O título deste livro talvez traduza a realidade que muitos pais deparam diante de comportamentos inesperados e surpreendentes de seus filhos.
Trata-se de uma coletânea de respostas a perguntas formuladas por mães e pais, às vezes desencorajados pelas dificuldades encontradas no decorrer do processo educativo da vida, mas desejosos de saber como comportar-se com os filhos para ajudá-los a desenvolver ao máximo seus dotes pessoais na convivência familiar e social. Isto principalmente nos primeiros anos de vida, os mais importantes para a formação harmoniosa da personalidade. Assim, o livro não é um tratado de psicopedagogia, mas um interlocutor, um orientador
amigo que, sem deixar de lado a valiosa contribuição das ciências, parte das inúmeras situações que compõem a aventura, tão rica e tão normal, da relação entre pais e filhos no dia-a-dia, envolvendo avós e amigos. Busca desvendar alguns aspectos da psicologia da criança, oferecendo orientações na arte de formá-la como pessoa íntegra e livre, capaz de viver em doação e de assumir a própria vida.
Egidio Santanchè — pediatra e pedagogo italiano, colaborador das revistas Città Nuova (Itália) e Cidade Nova (Brasil), fundamenta suas respostas não só na vasta experiência adquirida em seu consultório, nas escolas e instituições educacionais em que trabalhou, mas sobretudo em suas fortes convicções dos valores humanos inspirados na vivência do Evangelho, à luz da espiritualidade da unidade.
Com este livro, a Editora Cidade Nova deseja oferecer à família mais um instrumento que a ajude a cumprir sua estimulante função de geradora e formadora de homens novos
, tendo em vista uma sociedade renovada que todos almejamos.
Maria do Carmo Gaspar
ANO DA CRIANÇA?
FAÇA-ME O FAVOR...
O Ano Internacional da Criança já passou¹. Em muitos países foram promovidas rumorosas manifestações, quase sempre por adultos. Salvo raríssimas exceções, os princípios sagrados foram reafirmados ao menos teoricamente. Mas, na prática, não se tomaram decisões ou iniciativas capazes de resolver os incontáveis problemas da infância. Os adultos continuam a privá-la de seus mais elementares direitos.
Se em cada comissão fosse nomeado um representante sindical da classe infantil
, quem sabe não se concretizariam inúmeras reformas, há anos previstas apenas no papel, na intenção ou nas declarações daqueles que, de vez em quando, se agitam entre bandeiras e microfones, no burburinho anestesiante das filmadoras.
Como aconteceu com os índios em suas reservas, também as crianças foram muitas vezes expulsas de seus territórios pelas máquinas — e não só por estas —, destituídas de seus direitos fundamentais e obrigadas a se contentarem com declarações de princípios ou, pior ainda, com arremedos de lei.
Quatro exigências vitais da criança — movimento, criatividade-fantasia, afeto e livre comunicação — sofreram tamanhos golpes que, mesmo querendo, pouco pode ainda ser feito, sobretudo nas grandes cidades.
A energia incontida da criança, que a incita a correr continuamente, a tocar e experimentar tudo o que está a seu alcance, choca-se contra duas barreiras freqüentemente intransponíveis. A primeira delas é a mentalidade equivocada do adulto, que vê nessas manifestações de movimento e curiosidade como que um sintoma de doença. «Doutor, o senhor precisa ver que problema! Ele não pára nunca!» Os tapinhas na mão que tocam as coisas são a mortificação e a supressão da primeira liberdade a que a criança tem direito, a liberdade de movimento
. E o resultado é que se formam, já na primeira adolescência, indivíduos apáticos, sem iniciativa e sem criatividade.
Ainda que essa primeira barreira caísse, seria difícil vencer a segunda. As residências modernas não têm espaço. Quem as constrói não pensa nas crianças. Se a máquina de lavar roupa e o televisor têm seu cantinho, com maior razão a criança deveria ter um ambiente próprio, onde pudesse exercer livremente suas atividades, tão diferentes das atividades dos adultos. Uma vez que estes dominam a criança, fazendo uso da força e do é proibido tocar
, seria muito bem-vindo um espaço alternativo
, com paredes para pintar, objetos para quebrar e, ainda, uma caixa de areia (privilégio de poucos felizardos), uma corda ou uma vara, barras de ferro para se pendurar, instrumentos de percussão para fazer barulho sadio (muito menos nocivo aos tímpanos do que o rock que os adolescentes podem ouvir a todo volume). Mas tudo isso, na maior parte dos casos, não passa de um sonho.
O Ano Internacional da Criança poderia, ao menos, ter requisitado aqueles espaços vitais externos que os automóveis desapropriaram impunemente. As áreas verdes agonizam nas grandes metrópoles, sufocadas pelo cimento e pelo asfalto. Se na elaboração dos planos-piloto das cidades estivessem presentes representantes da classe infantil
, para cada dez edifícios haveria uma área verde dedicada aos jogos, com muitas árvores e bichos.
Por que não requisitar algumas praças ou ruas secundárias e expulsar os carros que as congestionam, fechando alguns trechos ao trânsito, a fim de permitir às crianças brincarem — como no tempo de seus avós — de esconde-esconde ou de bola, consumindo toda sua energia, para que depois possam voltar cansados para casa?
Se não é possível requisitar praças e ruas, poder-se-iam recuperar as amplas garagens que, mesmo não sendo o ambiente ideal, ao menos durante a estação das chuvas teriam a vantagem de ser uma área coberta para as crianças brincarem. Com um pouco de criatividade, até a garagem mais abandonada pode se transformar em um fantástico planetário.
Mas, como fazer para os adultos entenderem que é melhor respeitar o sagrado direito de movimento das crianças, mesmo se para isso tiverem de sacrificar um pouco os automóveis?
Os adultos, infelizmente, têm nas mãos uma outra máquina, ainda mais traiçoeira que o automóvel, para sufocar a liberdade de movimento das crianças: o televisor. Esse aparelho é capaz de imobilizar patologicamente o público infantil durante horas a fio, suprimindo — além da liberdade de movimento, tão precioso para seu desenvolvimento normal — também sua segunda liberdade fundamental, a da criatividade-fantasia. Gera-se no pequeno telespectador uma necessidade artificial que toma o lugar das sadias e espontâneas necessidades, com sérios prejuízos à personalidade infantil.
As imagens televisivas são criadas por adultos e, por isso mesmo, são freqüentemente carentes da dimensão mágica da fantasia que permitia às crianças sem acesso à mídia inventar brinquedos maravilhosos, fabricando, por exemplo, torres com rolhas, astronaves com caixas de fósforos, ou ainda modelando um cavalo com miolo de pão. Quando o adulto se intromete nessa brincadeira, não sendo capaz de captar sua linguagem, inevitavelmente acaba com o encanto, com expressões do tipo: «Desde quando isso é uma torre? É uma rolha de garrafa!»Os programas de televisão oferecem, normalmente, pouco espaço para a fantasia e quase nenhum para a criatividade. O grupo de amiguinhos que, em um parque, teria inventado milhares de brincadeiras com pedrinhas, folhas, água... fica debilitado e passivo aos pés do raio fatal da droga-televisão.
Por sua vez, a indústria do consumo explora essa situação já bastante deplorável. O resultado desolador é ver, muitas vezes, as crianças brincarem com caixas coloridas de brinquedos sem graça ou com bonecos de plástico de divindades monstruosas do mal
que, graças à lei da violência publicitária, possuem milhões de pequenos adoradores no mundo inteiro, privados de sua fantasia usurpada por imagens estereotipadas. Essas imagens, produzidas em série e impostas, extinguem lentamente a linguagem das crianças. As expressões, frases e palavras que elas construíam e as imagens que criavam, agora são ofuscadas por mensagens na língua estrangeira
dos adultos, cada vez mais invasiva com a colaboração dos meios de comunicação, nivelando e planejando tudo.
Dessa forma, desaparece também a terceira liberdade, a da livre comunicação. Contribui para isso o fato de que, nos países desenvolvidos e nos grandes centros industrializados do Terceiro Mundo, as crianças são sempre menos numerosas e vivem isoladas, sem outras crianças da mesma idade com quem possam conversar na mesma linguagem. Na maioria das vezes elas são vigiadas e dominadas pelos adultos que, além de estarem distantes de seu mundo, mostram-se cada vez mais apreensivos e nervosos. Poucos são os momentos de verdadeira liberdade em que as crianças, com sua linguagem característica, podem narrar em cores
suas próprias aventuras. As imagens já foram todas pré-fabricadas pelos adultos e transmitidas às crianças do mundo inteiro com uma linguagem artificial e aborrecida. A língua-mãe
, vivaz e colorida, perde seu vigor.
Nas escolas — além do verdadeiro delito que é obrigar as crianças a ficarem trancadas em uma sala durante quatro, cinco horas, sentadas em uma carteira e impedidas de correr pelos corredores durante os brevíssimos intervalos — existe a contínua vigilância que impede o exercício da liberdade de expressão.
No Ano da Criança, pelo menos nas escolas, os odiosos e quase sempre inúteis programas dos adultos poderiam ter sido substituídos por momentos de livre expressão, por possibilidades de contato entre os garotos para se conhecerem e programarem suas próprias atividades, a partir de seu ponto de vista e segundo seus critérios, tão diferentes dos critérios dos adultos. Os grandes
falam em recuperar as brincadeiras e a fantasia infantil e, às vezes, fazem criancices
. Mas se, de fato, eles redescobriram esses valores, por que impedem quem sabe criá-los de colocá-los em prática?
Afeto: é a última liberdade que o Ano da Criança deveria ter protegido. Este direito tão fundamental nunca foi tão pisoteado quanto nos dias