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A "Criança-Problema" na Escola Brasileira Uma Análise do Discurso Pedagógico
A "Criança-Problema" na Escola Brasileira Uma Análise do Discurso Pedagógico
A "Criança-Problema" na Escola Brasileira Uma Análise do Discurso Pedagógico
E-book360 páginas5 horas

A "Criança-Problema" na Escola Brasileira Uma Análise do Discurso Pedagógico

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Sobre este e-book

O livro A criança-problema na escola brasileira investiga as seguintes questões: como se chegou a identificar certos alunos como sendo "crianças-problema"? De que modos se procurou desvendar as causas dos problemas de aprendizado ou de comportamento na escola e que medidas foram recomendadas para o seu enfrentamento?

A partir da análise dos discursos educacionais e da legislação sobre a infância, Ana Laura Godinho Lima demonstra que o surgimento da expressão "criança-problema" nos discursos pedagógicos teve consequências importantes para o modo como os educadores passaram a enxergar os alunos que não aprendem ou não se comportam conforme o esperado. A "criança-problema" serviu para tornar permeável a fronteira entre a normalidade e a anormalidade. Por um lado, deixou-se de considerar que todas as crianças difíceis eram "anormais" ou "deficientes". Passou-se a acreditar na possibilidade de prevenir e mesmo reverter uma série de dificuldades, recorrendo-se, para isso, a medidas educacionais, que deveriam ser postas em prática em conjunto pela escola e pela família. Por outro lado, ampliou-se o controle dos especialistas sobre todas as crianças, que começaram a ser vistas como "crianças-problema" em potencial. Diversas circunstâncias mais ou menos graves passaram a ser entendidas como fatores que poderiam desencadear problemas de ajustamento da criança à escola, desde o divórcio dos pais ou o nascimento de um irmão até a entrada do aluno na puberdade, entre muitos outros. Os discursos educacionais começaram a trazer recomendações para que as crianças fossem submetidas a um regime de observação contínua, em suas dimensões física, intelectual, emocional e moral. Ao menor sinal de desvio, medidas corretivas poderiam ser iniciadas.

Assim, este livro esclarece as condições históricas que tornaram possível o surgimento das atuais práticas de encaminhamento de alunos para diagnósticos especializados. E sugere a substituição da pergunta: qual o problema deste aluno? por esta outra: de quanta conformidade à ordem os educadores e a escola precisam para que seja possível educar uma criança?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de set. de 2018
ISBN9788547316259
A "Criança-Problema" na Escola Brasileira Uma Análise do Discurso Pedagógico

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    A "Criança-Problema" na Escola Brasileira Uma Análise do Discurso Pedagógico - Ana Laura Godinho Lima

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE

    Este livro é dedicado à minha família.

    AGRADECIMENTOS

    À Capes (Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e à Fundação Fullbright, pelo financiamento do estágio de doutorado sanduíche na Universidade de Wisconsin-Madison, realizado no primeiro semestre de 2003.

    À Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pelo financiamento da pesquisa no âmbito da qual foi realizada a revisão e a atualização do trabalho para esta publicação.

    À Denice Barbara Catani, orientadora lendária, inigualável na delicada arte de iniciar jovens universitárias na vida acadêmica. Sob os seus auspícios, tornei-me pesquisadora, professora e adulta. Obrigada por tudo, e também por aceitar escrever o prefácio.

    À Maria Helena Souza Patto, por sua obra e seu ensino. Pelo exemplo de rigor, generosidade e coragem para enfrentar uma ordem do discurso tão duradoura quanto perversa sobre as dificuldades vividas pelos alunos nas escolas públicas brasileiras. A questão de que trata este livro surgiu da leitura de A produção do fracasso escolar e das reflexões feitas nas suas aulas.

    À Carlota Boto, Maria Helena Souza Patto, mais uma vez, Jaime Cordeiro e Jorge do Ó, que me honraram com sua presença na banca de defesa da tese de doutorado e me mostraram, cada um à sua maneira, as contribuições que esta pesquisa tinha a oferecer para o campo educacional.

    À Cynthia Pereira de Souza, pelas contribuições oferecidas no Exame de Qualificação, que se revelaram preciosas tanto para a conclusão da tese quanto para os meus trabalhos posteriores.

    Ao Thomas Popkewitz, pela acolhida calorosa na Universidade de Wisconsin-Madison e por criar todas as condições para que a minha estadia fosse o mais proveitosa possível. As oportunidades de frequentar seu curso de pós-graduação e o Wed-Group significaram uma aventura intelectual que serviu de exemplo para criar o meu próprio grupo de estudos na Faculdade de Educação da USP.

    À Marianne Bloch, Dar Weienberg, Dory Lightfoot, Devorah Keneddy e Amy Sloane, por me receberem no Thursday Group e me introduzirem ao pensamento pós-colonial. Aprendi com vocês que a facilidade para fazer novas amizades, típica das crianças, pode ser preservada e que, na vida adulta, o estudo em comum é talvez a melhor forma de as iniciar. Obrigada pela disponibilidade para discutir esta pesquisa e o convite para participar da escrita do livro The child in the world / the world in the child (2006), que tornou possível a divulgação internacional deste trabalho.

    À Kátia Bautheney, Natália Gil e Graziela Perosa, inteligências amigas à minha disposição.

    Aos integrantes do Grupo de Estudos Pedagogia, psicologia e relações de poder, por sustentarem comigo um espaço potencial de formação, indignação e vivacidade.

    À Ana Gabriela Godinho Lima, pela fotografia.

    APRESENTAÇÃO

    Como se chegou a identificar certos alunos como sendo crianças-problema? De que modos se procurou desvendar as causas dos problemas de aprendizado ou de comportamento na escola e que medidas foram recomendadas para o seu enfrentamento?

    O surgimento da expressão criança-problema nos discursos pedagógicos teve consequências importantes para o modo como os adultos, em especial pais e professores, passaram a enxergar seus filhos e alunos que não aprendem ou não se comportam conforme o esperado. A criança-problema tornou permeável a fronteira entre a normalidade e a anormalidade. Por um lado, deixou-se de considerar que todas as crianças difíceis eram anormais ou deficientes. Passou-se a acreditar na possibilidade de prevenir e mesmo reverter uma série de dificuldades, recorrendo-se, para isso, a medidas educacionais, que deveriam ser postas em prática em conjunto pela escola e pela família. Por outro lado, ampliou-se o controle dos especialistas sobre todas as crianças, que começaram a ser consideradas crianças-problema em potencial, já que diversas circunstâncias mais ou menos graves passaram a ser entendidas como motivos que poderiam desencadear problemas de ajustamento da criança à escola, desde o divórcio dos pais ou o nascimento de um irmão até a entrada do aluno na puberdade, entre muitos outros. Os textos educacionais começaram a trazer recomendações para que as crianças fossem submetidas a um regime de observação contínua, em suas dimensões física, intelectual, emocional e moral. Assim, ao menor sinal de desvio, medidas corretivas poderiam ser iniciadas.

    No primeiro capítulo, explicita-se a proposta de escrever uma história do emprego da expressão criança-problema nos discursos educacionais a partir da perspectiva da governamentalidade (FOUCAULT, 1996). Isso significa investigar o seu surgimento como efeito da formulação de um conjunto de problemas relativos ao governo dos escolares, que se fizeram acompanhar da produção de diagnósticos para elucidar suas causas e de intervenções com o propósito de superá-los.

    O segundo capítulo delineia um quadro geral das preocupações com as crianças no Brasil desde o início do período republicano, com base no estudo da legislação federal e em pesquisas contemporâneas sobre a história dos problemas da infância em duas áreas adjacentes ao campo educacional: a justiça de menores e a assistência social à infância e à família. As questões presentes nesses dois campos, para serem mais bem compreendidas, são situadas no domínio social, o qual, de acordo com Donzelot e outros autores, surgiu na mesma época em que apareceram tecnologias específicas de governo dos indivíduos e da população. Essa perspectiva ajuda a perceber o significado da expressão criança-problema como sendo predominantemente associada aos desajustamentos sociais, nos discursos especializados, especialmente aqueles produzidos nas décadas de 1930 e 1940. Além disso, discorre-se sobre aspectos importantes do ensino republicano no Brasil e procura-se caracterizar brevemente o movimento da Escola Nova, que trouxe o aluno para o centro do debate educativo. Afirma-se que houve duas condições importantes para a formulação dos problemas da criança na escola: por um lado, o ideal da democratização do ensino, que levou à gradativa ampliação do acesso à escolaridade para um público cada vez mais amplo. Nesse processo, grande parte das crianças brasileiras, cujos pais não haviam frequentado a escola e não tinham qualquer familiaridade com seu modo de funcionamento, foram consideradas estranhas e incapazes na escola. Por outro lado, o princípio, caro aos educadores escolanovistas, de que era preciso adaptar o ensino às características individuais do aluno e, para isso, era necessário conhecer tão bem quanto possível as singularidades de cada criança.

    No terceiro capítulo, examinam-se textos veiculados entre os educadores sobre os testes produzidos no âmbito da psicologia experimental, disciplina que se tornou central na elaboração de instrumentos de cálculo e avaliação da inteligência e das aptidões individuais, tendo em vista a classificação das crianças de acordo com as suas capacidades. Nas décadas iniciais do século XX, considerava-se que essa era a ciência capaz de identificar com segurança as crianças com debilidade mental, as quais deveriam ser impedidas de frequentar as escolas comuns. Também se defendeu a classificação dos alunos normais segundo a sua capacidade intelectual, tendo em vista a formação de turmas homogêneas. A análise inicia-se com uma caracterização geral da bibliografia disponível no Brasil dos anos 1920 aos anos 1940 sobre a psicologia experimental e, em seguida, concentra-se na obra Testes ABC para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita (1930), de Lourenço Filho, com o objetivo de observar a maneira como esse célebre educador brasileiro procurou criar uma solução para o governo de uma população que foi considerada especialmente problemática: a dos alunos da primeira série, os quais, em sua maioria, iniciavam aí a sua vida escolar, numa época em que a educação infantil nos jardins de infância atendia a uma parcela diminuta da população. Muitos desses alunos que chegavam pela primeira vez à escola fracassavam em aprender a ler e a escrever , e representavam um problema que desafiava os educadores e a administração escolar.

    No quarto capítulo, examinam-se textos pedagógicos especificamente dedicados ao exame dos problemas de aprendizado e comportamento presentes nos artigos da Revista Educação e em outros textos pedagógicos publicados nas décadas de 1930 e 1940. Os conceitos foucaultianos de disciplina, biopoder, poder pastoral e tecnologias do eu são importantes para essa análise e ajudam a sublinhar as maneiras como os educadores procuraram administrar o comportamento das crianças para transformá-las em indivíduos bem ajustados e autônomos, capazes de exercer o autocontrole em espaços de liberdade regulada. Procura-se demonstrar que a educação da criança-problema no Brasil, desde 1930 e, mais genericamente, a educação e a assistência à infância desde o final do século XIX tem sido pensada em termos de quatro verbos: proteger, prevenir, selecionar e corrigir. Se tudo funcionasse como deveria – o que estava longe de ser o caso, conforme as próprias autoridades educacionais e os especialistas denunciavam em seus textos –, os excluídos da normalidade seriam capturados numa rede complexa de exames, saberes e especialistas, cujo propósito era corrigi-los ou, pelo menos, evitar que se transformassem em ameaças à sociedade e, na medida do possível, torná-los cidadãos úteis para a pátria. Essa rede inicialmente alcançava apenas os ditos anormais, mas logo se ampliou o suficiente para abarcar toda a população escolar. Para os educadores que se dedicaram ao tema a partir da década de 1930, já não bastava criar formas de tratar as crianças com deficiências evidentes, era preciso identificar os sinais mais discretos das dificuldades infantis, pois conflitos inicialmente de pouca importância poderiam tornar-se desvios de personalidade graves no futuro, se não fossem devidamente cuidados.

    A criança-problema que começou a ser objeto da preocupação dos especialistas a partir dos anos 30 não era propriamente anormal no sentido biológico que se costumava dar ao termo, na maior parte das vezes o seu distúrbio não era identificado como hereditário, mas adquirido, provavelmente num contexto social e familiar desajustado. Assim, acreditava-se que seu problema de adaptação era reversível por meio de medidas educativas ou terapêuticas, as quais visavam não apenas a criança, mas mais frequentemente toda a família. No entanto, conforme já se indicou, a introdução da expressão criança-problema nos discursos educacionais teve como efeito a inserção de virtualmente todas as crianças numa categoria de risco, já que uma série de acontecimentos mais ou menos comuns poderiam provocar um desajustamento: a morte da mãe ou do pai, o nascimento de um irmão, uma doença grave, um revés financeiro enfrentado pela família, a separação do casal etc. Embora exista uma proximidade entre o tema desta pesquisa e a educação especial, o interesse aqui é pelo processo a partir do qual os conhecimentos especializados sobre os problemas infantis difundiram-se nas escolas regulares de maneira a submeter todas as crianças, inclusive as que aparentemente não revelavam qualquer distúrbio, ao escrutínio dos especialistas. Idealmente, isso deveria ocorrer ao longo do percurso escolar de todos os alunos, embora as coisas não tenham funcionado exatamente como desejavam as autoridades escolares ou os profissionais que se dedicaram a pensar sobre as questões educacionais e os problemas da infância. Como se procurará explicar adiante, a concretização das tecnologias de diagnóstico, vigilância e tratamento, na maior parte das vezes não pôde ser simplesmente implantada por uma vontade soberana imposta de cima para baixo, sem admitir discussão. Pelo contrário, geralmente era dificultada pela presença de conflitos, divergências e polêmicas, pela escassez de recursos, por atrasos, mal entendidos, interrupções etc.

    Além disso, admitir que toda a população infantil foi, a partir dos anos 30, objeto da razão psicométrica (PATTO, 2000) não significa considerar que o risco de ser considerada problema fosse distribuído uniformemente pela população infantil: as que já eram pobres ou órfãs ou viviam em famílias desestruturadas requeriam maior atenção. Os segmentos mais pobres da sociedade sempre foram considerados como sendo potencialmente mais perigosos. Como observou Passetti, pelo menos desde o início do século XX já estava bastante difundida no Brasil a concepção de que a população pobre, que habitava as periferias e cortiços, tendia a ser composta de famílias desestruturadas e que essas costumavam gerar filhos que se tornariam criminosos. Essa convicção levou o Estado a pretender assumir parcialmente a tarefa de proteger, educar e corrigir a infância e a adolescência, por meio de políticas públicas destinadas a deter a criminalidade nos centros urbanos.

    A difusão da ideia de que a falta de família estruturada gestou os criminosos comuns e os ativistas políticos, também considerados criminosos, fez com que o Estado passasse a chamar para si as tarefas de educação, saúde e punição para crianças e adolescentes. Por isso é que desde o tempo dos imigrantes europeus – que formaram os primeiros contestadores políticos – até o dos migrantes nordestinos – que criaram os mais recentes líderes dos trabalhadores – o Estado nunca deixou de intervir com o objetivo de conter a alegada delinquência latente nas pessoas pobres (PASSETTI, 1999, p. 348).

    O livro A Criança Problema: a higiene mental na escola primária (RAMOS, 1939) mostra muito bem a medida da desproporção entre as preocupações em relação à infância privilegiada e a infância pobre, ao dedicar apenas um capítulo para a análise da criança mimada e quatro à criança escorraçada. Sobre a segunda, afirmava-se: A grande maioria das crianças escorraçadas, como se pode ver nas observações do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental, vem de lares desajustados, de meios economicamente pobres (p. 71). A pobreza, por si só, já era considerada uma forma de desajustamento, a ameaçar o desenvolvimento infantil. Mais do que isso, conforme atesta Maria Helena Patto a respeito do que ainda hoje ocorre nas práticas de diagnóstico das dificuldades escolares, o destino reservado às crianças identificadas como portadoras de problemas também se distinguia conforme a situação socioeconômica da família:

    Como regra, o exame psicológico conclui pela presença de deficiências ou distúrbios mentais nos alunos encaminhados, prática que terá resultados diferentes de acordo com a classe social a que pertencem: em se tratando de crianças da média e da alta burguesia, os procedimentos diagnósticos levarão a psicoterapias, terapias pedagógicas e orientação de pais que visam adaptá-las a uma escola que realiza os seus interesses de classe; no caso de crianças das classes subalternas, ela termina com um laudo que, mais cedo ou mais tarde, justificará a sua exclusão da escola. Nesse caso, a desigualdade e a exclusão são justificadas cientificamente (ou seja, com pretensa isenção e objetividade) através de explicações que ignoram a sua dimensão política e se esgotam no plano das diferenças individuais de capacidade (PATTO, 2000, p. 65).

    Como orientação geral, os educadores das décadas de 1930 e 1940 recomendavam que as histórias familiares das crianças fossem investigadas pelos professores e o comportamento individual manifestado na escola fosse objeto de observações sistemáticas. Na medida em que todos os alunos eram suscetíveis de apresentar problemas de comportamento e/ou aprendizagem, a escola deveria realizar um trabalho conjunto a especialistas da saúde e da psicologia com o objetivo de prevenir o aparecimento de dificuldades, efetuar os diagnósticos e seleções iniciais, contribuir no tratamento, alterando a própria rotina escolar para atender às necessidades específicas de cada criança desajustada. Lourenço Filho defendia a difusão dos conhecimentos especializados entre os professores, afirmando que O educador deve conhecer as crises de ordem geral ou possuir algumas noções gerais de psicologia evolutiva e de psicologia clínica (1974, p. 173). Cada professora, com suas práticas de observação e assistência individual, deveria transformar-se em uma quase-especialista no desenvolvimento infantil e seus entraves. As mesmas observações valiam para as famílias, em especial para as mães, as quais também eram encorajadas a adquirir algum conhecimento sobre o desenvolvimento infantil para que pudessem conduzir de maneira apropriada a educação de seus filhos. Essas observações corroboram a afirmação de Nikolas Rose, segundo o qual os profissionais ‘psi’ caracterizam-se por sua generosidade – eles se sentem felizes em oferecer aos outros o seu vocabulário, suas gramáticas de conduta e seus estilos de julgamento (1999, p. 264). No segundo e no terceiro capítulos do livro, procura-se mostrar como foi feita essa difusão do conhecimento psicológico entre os educadores responsáveis pelas crianças.

    A primeira versão deste texto resultou na tese de doutorado O espectro da irregularidade ronda o aluno: um estudo da literatura pedagógica e da legislação sobre a criança-problema, defendida no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2004. Por uma série de circunstâncias, o trabalho não chegou a ser publicado na íntegra e a discussão central que se propôs a fazer foi pouco considerada em estudos posteriores sobre o tema. Apesar disso, em vista da produção mais recente sobre os alegados problemas de comportamento e aprendizagem na escola e em face da tendência ainda crescente de encaminhamento dos alunos considerados difíceis à avaliação por especialistas, as reflexões que resultaram desta investigação permanecem relevantes. Para a publicação na forma de livro, a versão original foi inteiramente revista e parcialmente reescrita. Novas referências foram acrescentadas, com o objetivo de incorporar informações e discussões decorrentes da produção acadêmica atual sobre as questões aqui tratadas. As modificações essenciais, no entanto, devem-se às reflexões que se seguiram à escrita da tese e transformaram o olhar da autora sobre suas questões. Concluída a revisão, constata-se que uma série de considerações aqui apenas esboçadas poderiam se levar adiante. Haveria mais a ser dito sobre a busca insistente dos especialistas em revelar uma suposta verdade oculta na criança-problema. Cumpriria ainda desenvolver as ponderações sobre a impossibilidade de aprender e a desobediência, as quais, em muitos casos, poderiam ser vistas como manifestações legítimas de resistência a uma ordem escolar que frequentemente se apresenta como pura imposição arbitrária, impedindo quase toda a espontaneidade. Mas esses desdobramentos levariam a adiar indefinidamente a publicação do livro, já excessivamente protelada. Que esses temas se tornem convites para a interlocução com os leitores, que se tornem ensejo para outras pesquisas.

    PREFÁCIO

    Determinar que um aluno é desajustado ou anormal não é uma questão de descobrir uma verdade oculta no seu interior, mas de tomar uma decisão sobre o

    que se vai ou não admitir. E ainda outras decisões acerca do que se fará em relação ao

    estudante cujo comportamento é considerado inaceitável. Enfim, a questão que

    parece se impor é: de quanta conformidade à ordem os educadores e

    a escola precisam para que seja possível educar uma criança?

    Permito-me aqui antecipar as palavras finais do presente livro para apresentá-lo pela sua principal contribuição. O espectro da anormalidade ronda o aluno, como título original deste estudo, quer exprimir a onipresença dos riscos da classificação que estabelece o que é normal e o que não é, nos domínios do comportamento e dos atributos do aluno. O livro mostra que mesmo e ainda quando se buscou superar as distinções que se pautavam pelo normal/anormal, o espectro como fantasma rondava os alunos noutras modalidades de avaliação que acabavam por se impor e denunciar as dificuldades dos adultos para gerir ou governar alguns comportamentos. A política dos muitos adquire no domínio educacional a dimensão técnica e pedagógica que, assentada principalmente, mas não exclusivamente, na psicologia, deve fornecer recursos para lidar com os alunos como categoria escolar da educação de massas e questão a ser administrada pelo Estado.

    O livro de Ana Laura Godinho Lima realiza com muita propriedade uma reconstrução histórica dos complexos processos pelos quais as formas de entender e nomear os alunos constituem-se nas práticas e nas teorias pedagógicas e geram modalidades de comportamentos, em muitos casos alimentando-os. O poder instituinte dos juízos e classificações escolares já foi exemplarmente estudado em diversas obras de Pierre Bourdieu (entre as quais figura o artigo As categorias do juízo professoral). No caso brasileiro, Maria Helena Patto mostrou de forma impecável os efeitos das avaliações nos processos de introjeção da ideia de fracasso e incapacidade para a escola que podem impregnar crianças, principalmente das classes populares.

    Ao tomar como fontes privilegiadas os escritos presentes em periódicos educacionais e em obras da pedagogia e da psicologia elaboradas no início do século XX, a autora alia o rigor no exame das informações a uma rica discussão que se apropria da noção de governamentalidade – com seus supostos e implicações – para melhor compreender a problemática da produção e uso das classificações no âmbito escolar. Não é pouco e nem é fácil. Mas o desafio de elaborar uma reconstituição histórica e um entendimento da natureza referida é enfrentada de forma bem-sucedida. Assim, pela leitura, tem-se a oportunidade de conhecer e refletir sobre os processos de transfiguração de categorias sociais em categorias pedagógicas e escolares, tal como se apresentam e podem ser observadas em formulações elaboradas desde o início do século (e que, em muitos casos, adentraram os nossos dias).

    A obra aqui apresentada enfrenta a deliberação de desmontar as complexas construções que pela definição/nomeação de situações e pessoas colaboram para que, de algum modo, elas exibam os atributos que lhes são imputados. Ian Hacking exemplifica processo semelhante, no domínio das ciências da memória e a propósito das atuais formas de lidar com indivíduos portadores das chamadas múltiplas personalidades. As práticas de nomeação, diagnóstico e tratamento bem como os discursos que os articulam de acordo com ele podem produzir efeitos de intensificação e desdobramentos dos fenômenos, muitas vezes. São modos de formar pessoas, no dizer de Hacking. E, é óbvio, essa hipótese de formação, semelhantemente, ao ser exercida nas situações escolares como nomeação especializada e consagrada, em nosso entender, tem adquirido força progressiva desde o final do século XIX.

    Cabe, ainda, sublinhar que a análise da questão da presença da criança-problema nos discursos pedagógicos ancora-se em sólidas referências teóricas e definiu uma inflexão importante no itinerário de formação da pesquisadora/autora. Inicialmente elaborada como tese de doutorado, inscreveu-se num quadro de importantes transformações da produção histórico-educacional brasileira e ao ser concretizada passou a constituir referência fundamental para os que se interessam pelas formas de criação dos saberes científicos na área. Sua contribuição é, seguramente, significativa e tem se prolongado em estudos que hoje nos ajudam a entender as classificações correntes na pedagogia, seu caráter de derivação dos conhecimentos psicológicos e psiquiátricos e seu alcance formador sobre os alunos.

    Mais razões haveria para convidar à leitura e estas fortaleceriam o que até aqui se tentou mostrar. Antes de ocupar o tempo de ler, reitero apenas o gosto de ler um texto bem ancorado, imaginado e escrito.

    Prof.ª Dr.ª Denice Catani

    Julho/agosto 2017

    SUMÁRIO

    Capítulo 1

    A "CRIANÇA-PROBLEMA: UMA QUESTÃO DE GOVERNO

    1.1 Poder pastoral, tecnologias do eu e autogoverno 

    1.2 O biopoder e a administração de populações de alunos 

    1.3 Os recursos disciplinares na educação da criança-problema 

    1.4 A infância como problema social 

    CAPÍTULO 2

    A CRIANÇA COMO PROBLEMA SOCIAL NO BRASIL

    2.1 As crianças perigosas no Brasil 

    2.2 Assistência social às famílias e às crianças brasileiras 

    2.3 A escola de massas e o ensino republicano no Brasil 

    2.4 A escola nova e o aluno como centro do processo educativo 

    CAPÍTULO 3

    A PSICOLOGIA EXPERIMENTAL NO BRASIL 

    3.1 Testes psicológicos e pedagógicos: tecnologias de governo 

    3.2 Classificação e seleção dos alunos, homogeneização das classes 

    3.3 Governo de uma população problemática: os alunos da primeira série 

    3.4 A aplicação

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